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Reclamação nº 2/2020/R


I – Relatório

A, arguido condenado na primeira instância no processo CR3-19-0279-PCC, não se conformando com a decisão condenatória que lhe aplicou a pena de 9 anos de prisão, veio interpor recurso ordinário para o Tribunal de Segunda Instância, mediante o requerimento motivado que deu entrada na secretaria do Tribunal Judicial de Base em 04FEV2020.

Por despacho do Exmº Juiz titular do processo de condenação, o recurso não foi admitido com fundamento na extemporaneidade – vide as fls. 667 e v. dos autos principais.

Notificado do despacho que não admitiu o recurso por ele interposto do despacho, vem, mediante o requerimento dirigido ao Juiz titular do processo que não admitiu o recurso, ao abrigo do disposto no artº 96º/1 do CPC, ex vi do artº 4º do CPP, invocar, o justo impedimento para justificar a interposição do recurso fora do prazo legal.

Em face do invocado justo impedimento, o Exmº Juiz titular do processo do TJB proferiu o seguinte despacho de não atendimento do invocado justo impedimento e manutenção da decisão de não admissão do recurso:
  Fls. 678 a 679 :
  Vem o ilustre mandatário judicial do 1º arguido A invocar justo impedimento, sobretudo da influência da epidemia do novo corona vírus, para a interposição tempestiva do recurso.
  Dispõe-se no artigo 97º do Código de Processo Penal:
Artigo 97.°
(Renúncia ao decurso e prática de acto fora do prazo)
  1. A pessoa em benefício da qual um prazo for estabelecido pode renunciar ao seu decurso, mediante requerimento endereçado à autoridade judiciária que dirigir a fase do processo a que o acto respeitar, a qual o despacha em 24 horas.
  2. Os actos processuais só podem ser praticados fora dos prazos estabelecidos por lei, por despacho da autoridade referida no número anterior, a requerimento do interessado e ouvidos os outros sujeitos processuais a quem o caso respeitar, desde que se prove justo impedimento.
  3. O requerimento referido no número anterior é apresentado no prazo de 5 dias (alterado para 10 dias pelo art. 6° do Decreto-Lei n.º 55/99/M), contado do termo do prazo legalmente fixado ou da cessação do impedimento.
  4. A autoridade que defira a prática de acto fora do prazo procede, na medida do possível, à renovação dos actos aos quais o interessado teria o direito de assistir.
  Por um lado, não foi alegado qualquer justo impedimento no próprio recurso apresentado. Por outro, só no dia 11 de Março de 2020 se apresentou o requerimento de justo impedimento, momento em que tinha manifestamente decorrido o prazo legal previsto na norma supra citada, contado da cessação de todos os impedimentos por ora invocados. Assim sendo, é de concluir que o requerente não chegou a cumprir o disposto no n.º 3 do artigo n.º 97º do CPP para efeitos de alegação tempestiva de justo impedimento. Não está verificado, assim, o pressuposto formal para a apreciação do mérito dessa questão de justo impedimento. (no mesmo entendimento, cfr. o Acordão do processo n.º 643/2019 do TSI)
  Nestes termos, é de manter a decisão de não admitir o recurso interposto.
  Notifique.

Notificado desse despacho, veio o arguido formular a presente reclamação nos termos seguintes:
A, arguido nos autos à margem referenciados, notificado do despacho de V. Exa. de fls. 667, que não admitiu o recurso por si interposto para o Tribunal de Segunda Instância, vem, nos termos do art.º 395º, nº 2 do C.P.P., apresentar
RECLAMAÇÃO
do mesmo, dirigido ao Senhor Presidente do Tribunal “ad quem”, o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
Excelentíssimo Senhor Presidente
do Tribunal de Segunda Instância
1. Vem a presente reclamação apresentada do despacho do Mº Juiz do T.J.B. que não lhe admitiu o recurso apresentado, alegadamente fora de prazo (despacho de fls. 667).
2. Justificou o Mº Juiz do Tribunal “a quo” a entrega da motivação de recurso um dia depois do respectivo termo.
3. Contrapôs o arguido recorrente que Macau viveu, durante as semanas de 3 a 9 de Fevereiro e 10 a 16 de Fevereiro, um período extremamente difícil de ponto de vista de saúde pública; e que o seu mandatário e todos os funcionários do seu escritório, seguindo as instruções do Senhor Chefe do Executivo - que exortou os residentes da R.A.E.M. a não saírem de casa - permaneceram em casa até ao dia 17/02/2020.
4. Não obstante todos as dificuldados que do facto advieram, o mandatário do ora reclamante, nos dias 3 e 4 de Fevereiro, conseguiu o apoio logístico necessário para finalizar a tradução do acórdão de 1ª Instância e ultimar a motivação de recurso, que deu entrada precisamente no dia 4 de Fevereiro p.p..
5. Os factos supra referidos constituem, sem margem para dúvidas, um “justo impedimento”, generalizado em termos sociais, dos quais resulta que a Justiça terá sempre que ponderar se se deve optar pelo formalismo processual ou, pelo contrário, pelas consequências negativas de um confinamento social.
E tal confinamento foi o que sucedeu ao mandatário do reclamante, o ora signatário, pessoa socialmente responsável, que se manteve, tanto quanto possível, na sua residência.
6. Aliás, a decisão do Conselho dos Magistrados Judiciais, de 1 de Fevereiro de 2020, “para evitar a concentração de pessoas e o rísco de propagação de doenças infecciosas”, ordenou o cancelamento das “audiências marcadas para os dias 3 a 7 de Fevereiro de 2020, com excepção das leituras que já foram marcadas, (e) das audiências dos processos com carácter urgente...”.
7. Isto é, a feitura de uma motivação de recurso, não obstante referente a “réus presos”, não encaixa na designação de “audiência de processo urgente”, quanto mais não seja porque não se trata de uma audiência “stricto sensu”.
8. O confinamento domiciliário foi dirigido a todos os residentes da R.A.E.M., incluindo, por isso, o signatário e todos aqueles que consigo colaboram no seu escritório.
9. A questão é tão simples quanto esta: uma directriz governativa, de saúde pública, é ou não um “justo impedimento” que, de forma generalizada, deve prevalecer quando em contraposição com um prazo judicial?
10. Afigura-se óbvia ao reclamante a resposta, tendo em conta que o excepcional prazo judicial, alegadamente violado, foi estipulado em seu benefício; e que uma epidemia, constituirá sempre um impedimento que deverá sobrepôr-se a toda e qualquer marcha processual, porquanto o que está em causa são seguramente interesses de saúde pública que não podem ser descurados.
11. Ao que acresce ainda a inaplicabilidade à presente situaçào do disposto no art.º 97º do C.P.P., porquanto, por um lado, o “justo impedimento” aí referido é uma situação pontual - enquanto aquela dos presentes autos é uma situação geral que a toda a comunidade se impõe - ; e, por outro lado, a epidemia do “corona vírus”, por ter virado pandemia a nível mundial, é um facto que não carece de prova.
12. Entende, por isso, o reclamante que se aplica aos presentes autos o disposto no art.º 96º do C.P.C., “justo impedimento”, por força do disposto no art.º 4º do C.P.P., porquanto aquela epidemia - e as respectivas consequências - é um “evento não imputável nem à parte nem aos seus representantes”.
  Nestes termos,
  Requer a V. Exa. se digne considerar a situação supra referida como um justo impedimento, revogando o despacho do Mº Juiz do Tribunal “a quo” e substituindo-o por outro que admita o recurso interposto do acórdão final.
  Assim se fazendo JUSTIÇA!

II – Fundamentação

Antes de mais, é de realçar que são tidos por inócuos, em sede e para o efeito da apreciação da presente reclamação, tanto o requerimento, dirigido ao Exmº Juiz titular do processo da 1ª Instância, da justificação da interposição do recurso fora do prazo legal com o invocado justo impedimento, apresentado pelo arguido, ora reclamante, depois de notificado do despacho que lhe não admitiu o recurso com fundamento na extemporaneidade, como a decisão do mesmo Juiz titular que não aceitou a justificação, pois o despacho contra o qual o reclamante pretende reagir agora mediante a presente reclamação é o despacho de fls. 667, que é justamente e tão só o primeiro despacho que não admitiu o recurso interposto pelo arguido, ora reclamante, com fundamento na extemporaneidade – vide o ponto 1. do requerimento da reclamação.
Essencialmente falando, a única questão que nos cabe resolver é saber se as medidas de confinamento impostas e recomendadas pelo Governo da RAEM constituem, de per si, circunstâncias impeditivas da interposição do recurso dentro do prazo legal.

De acordo com os elementos existentes nos autos, o arguido foi pessoalmente notificado da sentença condenatória em 10JAN2020 na audiência para leitura do Acórdão.

O arguido tem-se encontrado preventivamente preso.

Tratando-se de acto processual relativo a arguidos presos, os prazos processuais correm no período de féria judiciais – artº 93º/1 e 2-a) do CPP.

Assim, o prazo legal de 20 dias para a interposição de recurso inicia-se em 11JAN2020 e termina em 30JAN2020. Todavia, sendo os dias 30 e 31JAN2020 dois dias de dispensa de serviço de todos os funcionários públicos, incluindo o pessoal dos Tribunais, o último dia do prazo passa a ser o dia 03FEV2020 que é o primeiro dia útil seguinte aos dias de dispensa de serviço.

O requerimento motivado do recurso foi apresentado à secretaria do Tribunal a quo em 04FEV2020, ou seja, no dia seguinte ao terminus ad quem do prazo.

Objectivamente falando, o recurso foi interposto fora do prazo.

É este o entendimento em que se apoiou o Exmº Juiz para decidir não admitir o recurso.

Em sede da reclamação dessa decisão, o reclamante vem alegar que, tendo seguido as medidas e as instruções de confinamento impostas aos residentes pelo Governo da RAEM, nomeadamente a exortação a não sair de casa e permanecer em casa, e tendo em conta as deliberações do Conselho dos Magistrados Judiciais datadas de 01FEV2020 que, para evitar a concentração de pessoas e o risco de propagação de doença infecciosas, determinaram o cancelamento das audiências marcadas para os dias 3 a 7 de Fevereiro de 2020, com excepção das leituras que já foram marcadas, (e) das audiências dos processos com carácter urgente, o seu mandatário e todos os funcionários e colaboradores do seu escritório permaneceram em casa até ao dia 17FEV2020, aquele só conseguiu o apoio logístico necessário para finalizar a tradução do acórdão de 1ª instância e ultimar a motivação de recurso para ser entregue precisamente no dia 04FEV2020.

É verdade que os actos processuais podem ser praticados fora dos prazos estabelecidos por lei, a requerimento do interessado e ouvidos os outros sujeitos processuais a quem o caso respeitar, desde que se prove justo impedimento – o artº 97º/2 do CPP

A lei processual penal não define o que se deve entender por justo impedimento.

Há que recorrer às normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal – artº 4º do CPP.

Já o CPC diz-nos o que é justo impedimento.

Considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do acto – artº 96º/1 do CPC.

Diz o artº 97º/3 do CPP que o requerimento referido no número anterior, ou seja, para a prática tardia do acto, é apresentado no prazo de 5 dias, contado do termo do prazo legalmente fixado ou da cessação do impedimento.

Dai decorre que impende sobre o sujeito processual interessado na prática do acto o ónus de requerer a admissão tardia fundamentada no comprovado justo impedimento e que ele só deve ser admitido a praticar o acto fora do prazo se alegar e provar os factos constitutivos do justo impedimento no prazo de 5 dias, contado do termo do prazo legalmente fixado ou da cessação do impedimento.

In casu, o recorrente, ora reclamante, veio dizer que a epidemia do coronavírus, é um evento que não carece de prova nem imputável nem à parte nem aos seu representantes.

Ao que parece, o reclamante está a insinuar que a epidemia do coronavírus é um facto notório que não carece de alegação nem da prova, e que o Tribunal deveria ter tido em conta ex oficio.

É verdade que face ao disposto no artº 434º/1 do CPC, não carecem de alegação nem de prova os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral.

Não temos dúvidas quanto ao carácter notório da epidemia do coronavírus, do impacto causado pela epidemia nos meios sociais da RAEM e das medidas de confinamento adoptadas pelo Governo da RAEM.

Apesar de serem notórios estes factos todos, de per si, não têm a virtualidade de impedir de todo em todo a elaboração do requerimento motivado do recurso e a entrega atempada na secretaria do Tribunal a quo.

É também do nosso conhecimento que, não obstante a exortação a não sair e ficar em casa, a saída dos residentes não foi absolutamente proibida, e que segundo as deliberações do Conselho dos Magistrados Judiciais, os serviços de atendimento nas secretarias dos Tribunais se mantinham em funcionamento nos horários de expediente normais durante este período, nomeadamente para a entrega de peças processuais e a prática dos actos processuais por parte dos sujeitos processuais.

Tal como o próprio reclamante alegou, o atraso da entrega do requerimento motivado de recurso deveu-se às dificuldades do apoio logístico necessário causadas pelo facto de o seu mandatário e os seus colaboradores terem seguido as instruções e exortações do Governo da RAEM e terem efectivamente permanecido em casa até ao dia 17FEV2020.

Ora, estes factos concretos, se tivessem sido demonstrados ao Exmº Juiz ora reclamado, no momento da interposição de recurso ou no prazo de 5 dias a que se refere o artº 97º/3 do CPP, teriam, cremos nós, sido já tidos em conta e considerados realmente como impeditivos da apresentação atempada da motivação de recurso.

Todavia, não foram alegados e provados pelo reclamante no prazo de 5 dias, contado do termo do prazo legalmente fixado ou da cessação do impedimento nos termos prescritos no artº 97º/3 do CPP.

Assim, a falta do cumprimento do ónus de justificação atempada leva-nos a concordar com o despacho, ora reclamado, do Exmº Juiz titular do processo de 1ª instância, que não admitiu o recurso com fundamento na extemporaneidade.

Sem mais delongas, é de concluir que bem andou o Exmº Juiz titular do processo de 1ª instância, ao concluir como concluiu pela inadmissibilidade do recurso interposto com fundamento na extemporaneidade.

Resta decidir.

III – Decisão

São bastantes as razões acima expostas, cremos nós, para que indefiramos, como indeferimos, a reclamação deduzida, confirmando na íntegra o despacho reclamado.

Custas pelo reclamante, com taxa de justiça fixada em 6 UC.

Cumpra o disposto no artº 597º/4 do CPC, ex vi do disposto o artº 4º do CPP.

R.A.E.M., 24ABR2020

O presidente do TSI
Lai Kin Hong
Recl. 2/2020-10