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Processo n.º 202/2020 Data do acórdão: 2020-4-23
Assuntos:
– condenação do arguido em factos não descritos na acusação
– nulidade da decisão condenatória
– art.o 360.o, n.o 1, alínea b), do Código de Processo Penal
– repetição do julgamento
S U M Á R I O
Tendo o tribunal a quo acabado por condenar – sem feitura, pelo menos, de qualquer prévia comunicação – o 1.o arguido em factos sobre a comparticipação entre este arguido e a 2.a arguida na actividade de tráfico de droga, não descritos concretamente no libelo acusatório, é nula a decisão condenatória do crime de tráfico de estupefacientes do 1.o arguido, por comando do art.o 360.o, n.o 1, alínea b), do Código de Processo Penal, cabendo ao mesmo tribunal recorrido repetir o julgamento do crime de tráfico de estupefacientes do 1.o arguido.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 202/2020
(Autos de recurso penal)
Recorrente (1.o arguido): A







ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 408 a 423 do Processo Comum Colectivo n.° CR3-19-0338-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, o 1.o arguido A ficou condenado como co-autor material (concretamente, com a 2.a arguida e ainda com outrem), de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos art.os 8.o, n.o 1, e 18.o, da actualmente vigente Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto, com decidida atenuação especial da pena, em cinco anos de prisão, e como autor material de um crime de consumo ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 14.o, n.o 1, da mesma Lei, em quatro meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, em cinco anos e três meses de prisão única, com pena acessória de interdição de entrada em Macau por seis anos.
Inconformado, veio recorrer esse arguido para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, na sua motivação apresentada a fls. 433 a 441v dos presentes autos correspondentes, no seu essencial, que ele não foi co-autor da 2.a arguida, pelo que o Tribunal sentenciador não deveria ter imputado a ele, para efeitos da decisão jurídica da causa penal em questão, a quantidade concreta da droga transportada pela 2.a arguida para Macau, tendo padecido, pois, a decisão condenatória da Primeira Instância dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, e de erro notório na apreciação da prova, rogando, a final, que se invalidasse essa decisão condenatória, com nova medida da pena.
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 447 a 451v, no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 473 a 475, apontando, mormente, a violação, pelo Tribunal recorrido, do disposto nos art.os 339.o e 340.o do Código de Processo Penal (CPP).
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O Tribunal a quo deu praticamente por provada toda a matéria fáctica então imputada inclusivamente ao 1.o arguido e à 2.a arguida.
2. Na fundamentação probatória do acórdão condenatório recorrido, o mesmo Tribunal teceu (no último parágrafo da página 18 do respectivo texto, a fl. 416v) considerações no sentido de fazer imputar ao 1.o arguido, para efeitos incriminatórios da sua actividade de tráfico de droga, a quantidade de droga transportada pela 2.a arguida para Macau.
3. Antes de tecer essas considerações, o mesmo Tribunal chegou a referir, na parte inicial da mesma fundamentação probatória, concretamente nas páginas 14 a 15 do texto do acórdão recorrido, o teor das declarações prestadas pelo 1.o arguido e pela 2.a arguida na audiência de julgamento.
4. Da análise dessas declarações dos dois arguidos em causa, não resulta, para qualquer leitor, do tipo de homem médio, desse texto decisório, que o 1.o arguido e a 2.a arguida tenham combinado, por acordo entre eles dois, com divisão de tarefas e conjugação de esforços, em praticar a actividade de tráfico de droga.
5. Da leitura do teor de toda a matéria de facto dada por provada no mesmo acórdão recorrido, não resulta que o 1.o arguido e a 2.a arguida tenham combinado concretamente, por acordo entre eles dois, com divisão de tarefas e conjugação de esforços, em praticar a actividade de tráfico de droga, mas sim que houve dois grupos de traficantes de droga, um por banda do 1.o arguido (em comparticipação nomeadamente com um indivíduo conhecido por “X”) (cfr. os factos provados 1, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 10, 11, 12 e 19 (apenas na primeira parte)), e outro por banda da 2.a arguida (em comparticipação com um indivíduo conhecido por “Y”) (cfr. os factos provados 2, 15, 16, 17, 18 e 19 (só na segunda parte)).
6. Da acta da audiência de julgamento então realizada perante o Tribunal recorrido (lavrada a fls. 375 a 378), não resulta que esse Tribunal tenha feito a comunicação da suspeita de verificação de factos concretos sobre a existência de acordo prévio concreto entre o 1.o arguido e a 2.a arguida, com divisão de tarefas e conjugação de esforços, para prática da actividade de tráfico de droga.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Desde já, improcede o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, esgrimido pelo 1.o arguido à decisão judicial recorrida.
É que da leitura da fundamentação fáctica da mesma decisão condenatória, se vê que o Tribunal já investigou todos os factos constitutivos do tema probando dos autos, sem qualquer lacuna (e sobre o alcance e sentido do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, cfr., por exemplo, de entre muitos outros, os acórdãos deste TSI, de 22 de Julho de 2010, do Processo n.o 441/2008, e de 17 de Maio de 2018, do Processo n.o 817/2014).
O 1.o arguido não deixou de apontar à decisão condenatória recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova, aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
Pois bem, sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto, aquando da tomada da sua decisão de dar por provada a factualidade concretamente descrita como provada na fundamentação fáctica do acórdão recorrido.
Improcede, assim, esta parte do recurso do 1.o arguido.
O que sucedeu no caso dos autos foi, antes, outro problema: é ter o Tribunal recorrido acabado por condenar – sem feitura, pelo menos, de qualquer prévia comunicação – o 1.o arguido em factos sobre a comparticipação entre o próprio 1.o arguido e a 2.a arguida na actividade de tráfico de droga, não descritos concretamente no libelo acusatório então deduzido contra esses dois arguidos.
É, pois, nula a decisão condenatória do crime de tráfico de estupefacientes do 1.o arguido, por comando do art.o 360.o, n.o 1, alínea b), do CPP.
Essa nulidade não influencia a já condenação do crime de tráfico de estupefacientes da 2.a arguida, posto que a decisão da medida da pena desse seu crime não ficou afectada pela consideração do Tribunal recorrido em fazer imputar ao 1.o arguido a quantidade da droga por ela transportada.
A consequência legal dessa nulidade da decisão condenatória não importa o reenvio do processo para novo julgamento, mas sim a repetição da audiência de julgamento do crime de tráfico ilícito de estupefacientes do 1.o arguido ora recorrente.
Procede, pois, o recurso parcialmente, o que prejudica o conhecimento do remanescente alegado na motivação do recurso, a propósito da rogada nova medida da pena.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar parcialmente provido o recurso, declarando nulo o acórdão condenatório da Primeira Instância somente na parte referente à condenação do 1.o arguido recorrente em sede do tipo legal de tráfico ilícito de estupefacientes, devendo o mesmo Tribunal a quo repetir o julgamento deste crime então imputado ao 1.o arguido.
Pagará o recorrente a metade das custas do seu recurso e duas UC de taxa de justiça, correspondente ao decaimento concreto parcial do recurso.
Macau, 23 de Abril de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



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