Processo n.º 349/2020 Data do acórdão: 2020-4-29 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– apreciação da prova
– medida da pena
S U M Á R I O
1. Haverá erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
2. A medida da pena é feita aos padrões vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do Código Penal, dentro das molduras penais aplicáveis.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 349/2020
(Autos de recurso penal)
Recorrente (2.a arguida): B (B)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 285 a 299v do Processo Comum Colectivo n.° CR5-19-0313-PCC do 5.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, a 2.a arguida B ficou condenada como co-autora material, na forma consumada, de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016, de 28 de Dezembro), em seis anos e seis meses de prisão, e de um crime de consumo ilícito de estupefaciente, p. e p. pelo art.o 14.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009 (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016), em quatro meses de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas duas penas, finalmente na pena única de seis anos e oito meses de prisão.
Inconformada, veio recorrer a arguida para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para se insurgir contra a decisão da medida da pena tomada pelo Tribunal sentenciador, alegando e rogando, no essencial, na sua motivação apresentada a fls. 317 a 321 dos presentes autos correspondentes, que a sua pena do crime de tráfico de estupefacientes mereceria ser atenuada especialmente à luz do art.o 26.o do Código Penal (CP).
Ao recurso, respondeu o Ministério Público a fls. 328 a 330, no sentido de manutenção do julgado.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 359 a 361, pugnando pelo não provimento do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão recorrido consta de fls. 285 a 299v, cuja fundamentação, nomeadamente fáctica e probatória, se dá por aqui integralmente reproduzida.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Da leitura da motivação da arguida recorrente, sabe-se que ela pretende, essencialmente, a atenuação especial da pena do seu crime de tráfico de estupefacientes. Para sustentar a procedência desse seu pedido, alegou que a sua situação é subsumível ao art.o 26.o do CP (segundo o qual “É punível como cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso”, e “É aplicável ao cúmplice a pena prevista para o autor, especialmente atenuada”).
A matéria de facto tal como está descrita como provada no texto do acórdão recorrido não sustenta essa tese da arguida, mas sim que ela agiu em co-autoria com o 1.o arguido (cfr. os factos provados 2 a 3, 8, 10 e 16 a 18, sobretudo o facto provado 18). Por isso, para ver se procede essa tese dela, há que ver se os factos constitutivos do tema probando dos autos foram bem ou mal julgados pelo Tribunal recorrido.
Pois bem, sempre se diz que haverá erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do CPP manda atender também aos “elementos constantes dos autos” para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
Portanto, todos os elementos probatórios examinados em sede própria pelo Ente Julgador ora recorrido também têm que ser examinados na presente sede recursória, para se poder aquilatar da ocorrência ou não desse vício de julgamento de factos.
No caso, o Tribunal a quo já teceu no texto do acórdão recorrido a fundamentação probatória da sua decisão sobre a matéria de facto (cfr. em especial o teor das páginas 17 a 19 do texto desse aresto, a fls. 293 a 294).
Pois bem, depois de vistos todos os elementos probatórios constantes dos autos e então examinados e como tal referidos pelo Tribunal recorrido nessa fundamentação probatória do seu acórdão, entende o presente Tribunal de recurso que não é patentemente desrazoável o resultado do julgamento da matéria de facto feito por esse Tribunal nomeadamente na parte respeitante à ora recorrente, pelo que há que julgar a presente causa penal em sintonia com a factualidade dada por assente no texto do acórdão recorrido.
Assim sendo, naufraga logicamente a tese de cumplicidade da arguida recorrente, e como tal improcede também o pedido de atenuação especial da sua pena.
E consideradas todas as circunstâncias já apuradas em primeira instância aos padrões da medida concreta da pena vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, dentro das molduras penais aplicáveis, as duas penas parcelares da arguida, achadas no acórdão recorrido, já não podem admitir mais redução, e o mesmo se pode dizer em relação à pena única aí finalmente imposta à mesma arguida, à luz do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do CP.
Improcede, pois, o recurso.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o recurso.
Custas do recurso pela arguida recorrente, com três UC de taxa de justiça.
Fixam em duas mil patacas os honorários da sua Ex.ma Defensora Oficiosa.
Macau, 29 de Abril de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
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