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Processo n.º 336/2018 Data do acórdão: 2020-5-8 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– contradição insanável da fundamentação
– erro notório na apreciação da prova
S U M Á R I O
Para ajuizar da verificação, ou não, do vício de contradição insanável da fundamentação referido na alínea b) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal, o tribunal de recurso só toma a fundamentação fáctica da decisão recorrida como objecto da análise para efeitos da decisão.
Há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do mesmo Código, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 336/2018
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): A





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 269 a 280v do Processo Comum Colectivo n.° CR4-17-0071-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, o arguido A, aí já melhor identificada, ficou condenado como autor material de um crime consumado continuado de burla em valor consideravelmente elevado, p. e p. pelos art.os 211.o, n.o 4, alínea a), e 29.o, n.o 2, do Código Penal, na pena de dois anos e dez meses de prisão, suspensa na execução por três anos, com condenação no pagamento de HKD1.700.000,00 de indemnização a favor da ofendida B, com juros legais desde a data desse acórdão até integral e efectivo pagamento.
Inconformado, veio recorrer o arguido para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando (no seu essencial) e rogando, na sua motivação de recurso apresentada a fls. 338 a 386 dos presentes autos correspondentes, que o acórdão recorrido padece dos três vícios referidos nas alíneas a), b) e c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), para pedir a invalidação do acórdão recorrido, com reenvio do processo para novo julgamento.
Ao recurso respondeu o Ministério Público a fls. 388 a 394v, no sentido de procedência parcial do recurso na parte referente ao assacado vício de erro notório na apreciação da prova.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 414 a 416, opinando pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão recorrido ficou proferido a fls. 269 a 280v, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Na sua motivação do recurso, começou o arguido por suscitar a questão de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, tendo feito referência ao teor dos factos provados 8, 11, 16, 18 e 23 para sustentar a tese dele de falta de indagação, pelo Tribunal recorrido, da questão de saber a quem (à ofendida B? ou ao senhor C?) teria pertencido o dinheiro ou parte (e em quantos?) do dinheiro de HKD1.700.000,00 tido por esse Tribunal como sendo o montante total de prejuízo patrimonial sofrido pela ofendida.
No caso dos autos, o tema probando ficou composto apenas pela matéria fáctica descrita no libelo acusatório, posto que, como se vê no relatório do acórdão recorrido, o arguido não chegou a apresentar contestação escrita. E da leitura também da fundamentação fáctica do mesmo aresto, resulta nítido que o Tribunal sentenciador já investigou todo o tema probando em causa, sem lacuna alguma, pelo que não pode ter existido o vício da alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP no mesmo acórdão (sobre o alcance e sentido do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, cfr., por exemplo, de entre muitos outros, os acórdãos deste TSI, de 22 de Julho de 2010, do Processo n.o 441/2008, e de 17 de Maio de 2018, do Processo n.o 817/2014).
E nota-se que os factos provados 8, 11, 16, 18 e 23, referidos pelo arguido na sua motivação, interpretados no seu conjunto, mostram que a ofendida tinha sofrido o montante de HKD1.700.000,00 de prejuízo patrimonial total.
O arguido apontou também à decisão recorrida o vício de contradição insanável da fundamentação, alegando, nomeadamente, que o Tribunal recorrido não deu atenção, para já, à versão fáctica então apresentada pela testemunha C na carta de participação criminal de fls. 4 a 8 dos autos, versão essa diferente da versão fáctica descrita na acusação do Ministério Público, e há contradição entre os factos provados 8, 16 e 23, por uma banda, e, por outra banda, os factos provados 11, 18 e 24, para além de haver contradição entre os factos provados 16 e 17, por um lado, e, por outro, o facto provado 18.
Vê-se que o arguido alegou esse vício da alínea b) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, com base no desenvolvimento da sua argumentação concretamente tecida para invocar o anterior vício da alinea a) do mesmo n.o 2. No fundo, não deixou de insistir na questão de a quem ter pertencido parte do montante total de prejuízo patrimonial da ofendida.
Da leitura crítica e em global da fundamentação fáctica do acórdão recorrido, não se detecta, aos olhos do presente Tribunal de recurso, qualquer contradição irredutível entre os factos dados por provados pelo Tribunal recorrido, pelo que o acórdão recorrido não pode ter trazido consigo o vício de contradição insanável da fundamentação.
Tal como já se notou acima, os factos provados 8, 11, 16, 18 e 23, interpretados no seu conjunto, mostram que a ofendida tinha sofrido o montante de HKD1.700.000,00 de prejuízo patrimonial total.
E o facto provado 17 não obsta à validade dessa observação, visto que, por exemplo, a circunstância de o cheque n.o HFXXXX03 referido nesse facto provado no montante de HKD1.200.000,00 ter sido passado pelo arguido a favor do senhor C (e não da própria ofendida) não contradiz necessariamente com o facto provado 18 segundo o qual o arguido fez seu o montante de HKD1.200.000,00 da ofendida, já que o facto provado 16 já apontou que a ofendida, através do senhor C, entregou HKD1.200.000,00 ao arguido.
E o mesmo se pode dizer mutatis mutandis em relação ao facto provado 10 (de acordo com o qual o cheque n.o HFXXXX02, no valor de HKD500.000,00, foi passado pelo arguido a favor do senhor C), em relação ao facto provado 11 (à luz do qual o arguido fez seu o montante de HKD500.000,00 da ofendida), uma vez que os factos provados 8 e 9 já explicam o porquê das coisas: a ofendida, através do senhor C, entregou ao arguido parte desse montante de HKD500.000,00; o arguido, não obstante a pedido da ofendida, recusou a pasagem de recibo a favor da ofendida.
Aliás, os factos provados 21 e 22 completam a explicação do porquê das coisas: a passagem dos dois cheques acima referidos não passou de estratagema empregue pelo arguido para burlar dinheiro à ofendida.
Portanto, o facto provado 24 nem é facto provado sem suporte em outros factos concretamente provados.
Não há, pois, o vício de contradição insanável da fundamentação no acórdão recorrido, sem mais indagação por desnecessária, porque, nota-se, para ajuizar da verificação ou não desse vício, o Tribunal de recurso só toma a fundamentação fáctica da decisão recorrida como objecto da análise para efeitos da decisão.
Por fim, o arguido não deixou de suscitar também o vício de erro notório na apreciação da prova.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto. Aliás, esse Tribunal já expôs congruentemente – desde o quinto parágrafo da página 14 até ao segundo parágrafo da página 16, do texto do acórdão recorrido – as razões da formação da sua livre convicção sobre os factos, depois de ter sumariado, nas páginas 9 (a partir do penúltimo parágrafo) a 14 (até ao quarto parágrafo) do mesmo texto, o conteúdo de diversos elementos probatórios, razões essas que já contrariam cabalmente a posição sustentada pelo arguido (com lançamento de um conjunto de perguntas, destinadas a fazer sindicar, mas em vão, a livre convicção do julgador) na sua motivação em torno do esgrimido vício de erro notório na apreciação da prova.
Improcede, pois, o recurso, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada, sendo mesmo de louvar a ora recorrida decisão da matéria de facto, nos termos permitidos pelo art.o 631.o, n.o 5, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do CPP.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o recurso.
Custas do recurso pelo arguido, com nove UC de taxa de justiça.
Comunique à ofendida e ao Processo n.o CR3-19-0292-PCC.
Macau, 8 de Maio de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)

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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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