Processo nº 503/2018
Data do Acórdão: 14MAIO2020
Assuntos:
Autorização de residência temporária
Técnicos especializados
Poder discricionário
Conceito indeterminado
SUMÁRIO
1. Os tribunais administrativos não podem sindicar as decisões tomadas pela Administração no exercício de poderes discricionários, salvo nos casos extremos de erro grosseiro ou manifesto ou quando sejam infringidos os princípios gerais que limitam ou condicionam, de forma genérica, a discricionariedade administrativa, designadamente os princípios constitucionais; o princípio da imparcialidade, o princípio da igualdade, o princípio da justiça, o princípio da proporcionalidade, o princípio da boa fé, etc..
2. Ao exigir que os requerentes, para além de serem os técnicos especializados, sejam considerados de particular interesse para a Região Administrativa Especial de Macau por virtude da sua formação académica, qualificação ou experiência profissional, o artº 1º/-1) do Regulamento Administrativo nº 3/2005 emprego um conceito indeterminado.
3. Não se tratando de interpretação de um conceito consistente em descrições puramente fácticas, cujo sentido e alcance são facilmente captáveis por quem domina mais ou menos a língua utilizada para a redacção da lei, a compreensão do sentido e do alcance do conceito indeterminado pressupõe um exercício interpretativo e valorativo pelo órgão decisor, com vista à sua integração na previsão da norma.
4. Ao contrário do que sucede com a discricionariedade, que é um poder derivado da lei que se consubstancia na liberdade reconhecida à Administração de escolher uma solução de entre várias soluções juridicamente admissíveis, o legislador, quando empregar conceitos indeterminados na previsão da norma, não está a conferir ao aplicador de direito qualquer liberdade de escolher de entre várias soluções legalmente admissíveis, mas sim fixar-lhe um quadro de vinculação, se bem que mitigado pela possibilidade casuística do seu preenchimento.
5. O preenchimento do conceito indeterminado constitui portanto a actividade vinculada à lei, e consequentemente sindicável por via contenciosa.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 503/2018
I
Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM
A, devidamente identificado nos autos, vem recorrer do despacho do Senhor Chefe do Executivo que lhe indeferiu o pedido, formulado ao abrigo do Regulamento Administrativo nº 3/2005, da concessão da autorização temporária, para ele e o seu cônjuge, na modalidade de técnicos especializados considerados de particular interesse para a RAEM, alegando e pedindo:
1.ª - A decisão ora recorrida fez errada interpretação e aplicação da al. 3) do art. 1.º do Regulamento Administrativo 3/2005 de 4 ABR.
2.a - Consequentemente, atento esse vício de violação de lei, a decisão a quo configura-se como um acto anulável, ex vi do art. 124.º do C.P.A., invalidade que aqui se invoca como fundamento específico para a sua revogação por V. Ex.as, conforme o permitem, entre outros, o art. 20.º e a al. d) do n.º 1 do art. 21.º do C.P.A.C.
3.ª - Ao ter sido postergada a consideração holística e global de todo o material hábil à tomada crítica da melhor e mais justa decisão possível no caso concreto, documentada e levada ao procedimento, o acto a quo mostra-se também ferido de dois vícios geradores da sua anulabilidade atenta a violação frontal dos princípios da imparcialidade na sua dimensão positiva e da justiça - cfr. art. 7.º e 122.º n.º 2 al. d) do C.P.A. -, invalidades que aqui se invocam como fundamentos específicos para a sua revogação por V. Ex.as, conforme o permitem, entre outros, o art. 20.º e a al. d) do n.º 1 do art. 21.º do C.P.A.C.
NESTES TERMOS, deverá ser dado provimento a este recurso, determinando-se a anulação do acto recorrido, atentos os três vícios de violação de lei invocados geradores da sua anulabilidade.
Citado, veio o Senhor Chefe do Executivo contestar pugnando pela improcedência do recurso – vide as fls. 37 a 41 dos p. autos.
Por despacho do Relator, foi indeferido o pedido da inquirição da testemunha arrolada pelo recorrente.
Não foram apresentadas alegações facultativas
Em sede de vista final, o Dignº Magistrado do Ministério Público emitiu o parecer pugnando pela improcedência do recurso – cf. as fls. 53 a 54 dos p. autos.
Fica assente a seguinte matéria de facto com relevância à decisão do presente recurso:
* O recorrente é titular do Passaporte da Austrália;
* Encontra-se contratado, em regime de trabalhador não residente, por B Limited, para desempenhar as funções de piloto de helicóptero;
* Requereu, ao abrigo do disposto no artº 1º/-3) do Regulamento Administrativo nº 3/2005, a concessão da autorização temporária, na modalidade de técnicos especializados considerados de particular interesse para a RAEM;
* Requerimento esse que foi indeferido por despacho do Senhor Chefe do Executivo, datado em 23MAR2018; e
* De acordo com as informações fornecidas pela Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais, na pendência do procedimento administrativo que culminou com a prolação do despacho ora recorrido, existiam 2 indivíduos com habilitações literárias idênticas às do recorrente e 1 indivíduo que se pretende candidatar ao posto de trabalho idêntico ao do recorrente – vide fls. 29 a 31 (conforme a numeração feita pela entidade administrativa) do processo instrutor.
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O processo é o próprio e inexiste nulidades.
Os sujeitos processuais gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.
Inexistem excepções ou questões prévias que obstam ao conhecimento do mérito do presente recurso.
Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143), são, de acordo com o alegado no petitório do recurso, as seguintes questões que constituem o objecto da nossa apreciação:
1. Da violação da lei; e
2. Da violação dos princípios da imparcialidade e da justiça.
Então apreciemos.
1. Da violação da lei
O recorrente entende que a Administração fez errada interpretação e aplicação do artº 1º/-1) do Regulamento Administrativo nº 3/2005.
Diz este normativo que podem requerer autorização de residência temporária na Região Administrativa Especial de Macau, nos termos do presente diploma, as pessoas singulares não residentes, contratadas por empregadores locais como quadros dirigentes e técnicos especializados, que por virtude da sua formação académica, qualificação ou experiência profissional, sejam considerados de particular interesse para a Região Administrativa Especial de Macau.
Na óptica do recorrente, dadas as suas experiências profissionais na pilotagem de helicóptero, a escassez de pilotos de helicóptero na RAEM, assim como a crescente necessidade de serviços de transporte aéreo por helicóptero na RAEM, ao decidir como decidiu indeferindo o seu pedido de autorização de residência temporária, a Administração fez errada interpretação e aplicação desse normativo do citado artº 1º/-1) do Regulamento Administrativo nº 3/2005.
Ora, atendendo à forma como foi redigido esse normativo, salta à vista que ele comporta a “discricionariedade” e “conceito indeterminado”, pois é bem óbvia a intenção do legislador de conferir à Administração o poder discricionário para decidir do pedido de autorização de residência temporária, depois de a mesma ter concluído pela verificação dos pressupostos de factos capazes de preencher o conceito indeterminado de particular interesse para a Região Administrativa Especial de Macau.
Da redacção desse normativo resulta que a lei não impõe o deferimento necessário da autorização de residência temporária às pessoas que satisfizerem o exigido pelo conceito indeterminado, mais sim conferir à Administração uma certa margem de liberdade para decidir, em cada caso concreto, autorizar ou não a pretensão de residência temporária dos não residentes, depois de valorar as condições do requerente e avaliar a conveniência e a oportunidade da eventual autorização para a prossecução dos interesses públicos da RAEM.
Tradicionalmente falando, os tribunais administrativos não podem sindicar as decisões tomadas pela Administração no exercício de poderes discricionários, salvo nos casos extremos de erro grosseiro ou manifesto ou “quando sejam infringidos os princípios gerais que limitam ou condicionam, de forma genérica, a discricionariedade administrativa, designadamente os princípios constitucionais; o princípio da imparcialidade, o princípio da igualdade, o princípio da justiça, o princípio da proporcionalidade, o princípio da boa fé, etc..” – Freitas do Amaral, in Curso do Direito Administrativo, II, Almedina, pág. 392.
Tal como sensatamente destacou o Ministério Público no seu douto parecer emitido em sede de vista final, dado não ser posto em dúvida o argumento de “澳門特別行政區不乏從事航空領域而具有相關專業資格的人員”, não podemos deixar de concluir tranquilamente que o despacho em questão não eiva de erro grosseiro, intolerável injustiça ou total desrazoabilidade, por isso não infringe nem o preceito na alínea 3) do art.1º do Regulamento Administrativo n.º3/2005 nem os princípios da imparcialidade e de justiça.
Concordamos, pois a Administração limitou-se a agir dentro da margem de liberdade que lhe é legalmente conferida.
Na verdade, no tipo das situações idênticas à do caso sub judice, está sempre ao dispor da Administração a alterativa de autorização de permanência a título de trabalhador não residente.
Por outro lado, a lei exige que os requerentes, para além de serem os técnicos especializados, sejam considerados de particular interesse para a Região Administrativa Especial de Macau por virtude da sua formação académica, qualificação ou experiência profissional.
Doutrinariamente falando, estamos perante um conceito indeterminado.
Não se tratando de conceito consistente em descrições puramente fácticas, cujo sentido e alcance são facilmente captáveis por quem domina mais ou menos a língua utilizada para a redacção da lei, mas sim conceitos cujo preenchimento requer um juízo valorativo da situação concreta, feito pelo aplicador de direito, com vista à sua integração na previsão da norma.
A captação do sentido e do alcance e a integração desses requisitos previstos no citado artº 1º/-1) do Regulamento Administrativo nº 3/2005 pressupõe efectivamente um exercício interpretativo e valorativo pelo órgão decisor.
E ao contrário do que sucede com a discricionariedade, que é um poder derivado da lei que se consubstancia na liberdade reconhecida à Administração de escolher uma solução de entre várias soluções juridicamente admissíveis, o legislador, quando empregar conceitos indeterminados na previsão da norma, não está a conferir ao aplicador de direito qualquer liberdade de escolher de entre várias soluções legalmente admissíveis, mas sim fixar-lhe um quadro de vinculação, se bem que mitigado pela possibilidade casuística do seu preenchimento.
O preenchimento do conceito indeterminado constitui portanto a actividade vinculada à lei, e consequentemente sindicável por via contenciosa.
Todavia, como já decidimos supra que, à Administração é legalmente conferida a margem de liberdade de decidir quanto à autorização de residência temporária e a Administração movem dentro da margem de liberdade, o que já nos dispensa de avaliar as condições pessoais do requerente para emitir o juízo, por ser desnecessário, quanto à satisfação ou não do exigido pelo conceito indeterminado, uma vez que o uso legal do poder discricionário já conduz, de per si, à improcedência desta parte do recurso.
2. Da violação dos princípios da imparcialidade e da justiça
O recorrente alegou no petitório do recurso que em face do que antecede, a decisão a quo violou de forma flagrante e intensa os princípios da imparcialidade na sua dimensão positiva e da justiça……
Todavia, conforme se vê nas alegações de recurso, o que antecede estes juízos conclusivos não é mais do que fundamento para tentar convencer o Tribunal da verificação do vício da violação da lei, de per si, não nos permite perceber o iter por via do qual o recorrente chegou à conclusão de que a decisão a quo violou de forma flagrante e intensa os princípios da imparcialidade na sua dimensão positiva e da justiça.
Assim, é de subscrever a sensata observação do Ministério Público no seu douto parecer, onde destacou que convém ter presente que a arguição da violação dos princípios da imparcialidade e de justiça é manifestamente vaga, pois o recorrente não alegou qualquer facto concretos para substanciar tal arguição. De outro lado, é flagrantemente despropositada a invocação violação da alínea d) do n.º2 do art.122º do CPA, visto que não se descortina, de todo em todo lado, a ofensa do conteúdo essencial do direito fundamental do recorrente.
Sem mais delonga, é de improceder in totum o presente recurso.
Em conclusão:
6. Os tribunais administrativos não podem sindicar as decisões tomadas pela Administração no exercício de poderes discricionários, salvo nos casos extremos de erro grosseiro ou manifesto ou quando sejam infringidos os princípios gerais que limitam ou condicionam, de forma genérica, a discricionariedade administrativa, designadamente os princípios constitucionais; o princípio da imparcialidade, o princípio da igualdade, o princípio da justiça, o princípio da proporcionalidade, o princípio da boa fé, etc..
7. Ao exigir que os requerentes, para além de serem os técnicos especializados, sejam considerados de particular interesse para a Região Administrativa Especial de Macau por virtude da sua formação académica, qualificação ou experiência profissional, o artº 1º/-1) do Regulamento Administrativo nº 3/2005 emprego um conceito indeterminado.
8. Não se tratando de interpretação de um conceito consistente em descrições puramente fácticas, cujo sentido e alcance são facilmente captáveis por quem domina mais ou menos a língua utilizada para a redacção da lei, a compreensão do sentido e do alcance do conceito indeterminado pressupõe um exercício interpretativo e valorativo pelo órgão decisor, com vista à sua integração na previsão da norma.
9. Ao contrário do que sucede com a discricionariedade, que é um poder derivado da lei que se consubstancia na liberdade reconhecida à Administração de escolher uma solução de entre várias soluções juridicamente admissíveis, o legislador, quando empregar conceitos indeterminados na previsão da norma, não está a conferir ao aplicador de direito qualquer liberdade de escolher de entre várias soluções legalmente admissíveis, mas sim fixar-lhe um quadro de vinculação, se bem que mitigado pela possibilidade casuística do seu preenchimento.
10. O preenchimento do conceito indeterminado constitui portanto a actividade vinculada à lei, e consequentemente sindicável por via contenciosa.
Tudo visto, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência julgar improcedente o recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 6 UC.
Registe e notifique.
RAEM, 14MAIO2020
Lai Kin Hong Mai Man Ieng
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
503/2018-11