Processo nº 218/2020
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 02 de Abril de 2020
ASSUNTO:
- Pacto privativo e atributivo de jurisdição
SUMÁRIO:
- A cláusula que num contrato celebrado na China continental relativo a sociedade sedeada na China continental dispõe que as partes podem resolver os litígios nos tribunais da sede da sociedade deve ser entendia como atribuidora de competência exclusiva aos tribunais da China continental e como privativa da jurisdição dos demais tribunais.
O Relator,
Ho Wai Neng
Processo nº 218/2020
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 02 de Abril de 2020
Recorrente: A (Requerente)
Objecto do Recurso: Decisão que julgou incompetência do Tribunal Judicial de Base
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – Relatório
Por despacho de 25/10/2019, julgou-se incompetência do TJB e, em consequência, absolveu-se o Requerido B da instância cautelar e determinou-se o levantamento, após trânsito em julgado do despacho, do arresto decretado.
Dessa decisão vem recorrer o Requerente A, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
I. O Tribunal a quo procedeu à exegese daquela que seria a vontade das partes plasmadas na referida cláusula sendo que, ao fazê-lo, como que "forçou a mão", de certo modo vindo "corrigir" ou "rectificar" soberanamente o sentido conotativo e textual do que consta efectivamente da cláusula 3.3 para um outro sentido diverso que, no alto juízo do tribunal, seria aquele único que, afinal, faria sentido ou seria o natural.
II. As partes souberam bem expressar-se e exprimir as suas vontades e decisões soberanas em forma de texto clausular inserido no contrato e, salvo quando procedam normas imperativas, está vedado ao Tribunal afastar ou sequer tutelar correctivamente as vontades das partes que estejam inequivocamente expressas no respectivo contrato pois esse é um espaço soberano e "livre" das partes, vedado à "modelação interpretativa" de qualquer tribunal.
III. As partes bem souberam distinguir o que quiseram que fosse um "poder", uma "faculdade" ou uma "alternativa" daquilo que fosse uma "obrigatoriedade", uma "vinculação" ou uma "imperatividade", sendo disso exemplo a cláusula 1.3, onde consta por duas vezes a expressão vocabular "podem"; a cláusula 2.1, onde consta a expressão vocabular "podem"; a cláusula 2.2, onde consta por três vezes a expressão vocabular "podem"; a cláusula 2.7, onde consta a expressão vocabular "deve"; a cláusula 2.8, onde consta por duas vezes a expressão vocabular "deve"; ou a cláusula 3.3 (aqui em questão), onde consta a expressão vocabular "pode" (exactamente igual à usada nas cláusulas 1.3, 2.1 e 2.2).
IV. Face ao contrato, face à demonstração de que as partes não incorreram em qualquer ambiguidade expressiva nem tergiversaram quanto ao alcance e significado dos vocábulos que pretenderam utilizar e fazer verter no contrato a fim de, aí, fixarem o sentido das suas vontades convergentes, não caberia ao tribunal recorrido vir fazer derivar o sentido do que consta explicitamente da cláusula 3.3 para um outro sentido não coberto de todo pela letra da cláusula.
V. Na economia do contrato globalmente considerado - que não apenas, ato misticamente, na referida cláusula 3.3 - resulta manifesto que as partes dominam o sentido e o alcance dos meios vocabulares de que se usam para expressar as suas livres e soberanas vontades negociais e sendo inequívoca e monossémica essa vontade e respectiva expressão, passa a ser essa a fonte da vinculação das partes, as quais, nos termos gerais, passam a ficar daí em diante adstritas ao respectivo cumprimento e observância - cfr. artigos 391.º, 392.º, 399.º e 400.º, todos do Código Civil.
VI. Está em causa não a interpretação da vontade das partes - que essa foi expressa, livre e proficiente e inequivocamente expressa no clausulado contratual - mas sim, diferentemente, o incumprimento ou violação ostensiva de uma vinculação contratual livre e claramente assumida precisamente com a celebração do contrato e da qual, agora, a requerida se pretende afastar e repudiar.
VII. As partes são soberanas em reservar ou atribuir jurisdição alternativa ou jurisdição exclusiva a tribunais de determinada ordem jurídica, conquanto tal não ofenda alguma norma imperativa, designadamente normas de competência exclusiva jurisdicional a favor dos tribunais de uma concreta ordem jurídica, não sendo esse o caso.
VIII. A vinculação sediada na cláusula 3.3 não ofende qualquer normativo de tipo imperativo e, como tal, gera uma vinculação válida, eficaz e imediatamente operativa.
IX. Em sede de procedimento cautelar vigora um conhecimento e apreciação tendencialmente perfunctório a cargo dó tribunal, não podendo este Tribunal proceder a uma apreciação de mérito ou fundo.
X. No despacho recorrido o tribunal procedeu a uma análise e apreciação com uma profundidade e com uma densidade técnica de grau muito superior àqueles que são próprios e, sobretudo, que são admissíveis e exigíveis em sede de um simples e mero procedimento cautelar.
XI. Os presentes autos de arresto foram incidentalmente requeridos já na pendência dos autos de execução n.º CV2-19-0022-CEO, sendo que nestes a executada (aqui requerida e recorrida) já deduziu os respectivos embargos de executado e o exequente (aqui requerente e recorrente) já apresentou em 14 OUT 2019 a subsequente Contestação, pelo que, segundo a normal marcha processual, seguir-se-á, em princípio, uma audiência de discussão e julgamento com produção de prova e espaço para amplo contraditório, discussão e, por fim, alegações finais.
XII. Será só nessa sede que se dará cumprimento pleno ao contraditório e se poderá apreciar e conhecer a final de mérito, tanto de facto como de direito - cfr. artigos 3.º, 433.º, 438.º, 556.º, n.º 2, 558.º, 560.º e 562.º, todos do C.P.C.
XIII. Será na acção executiva que caberá dirimir e esmiuçar a fundo se porventura - sem conceder - está ou não em causa a simples inobservância de uma cláusula livre, soberana e esclarecidamente fixada pelas partes e que gerou, pois, a sua vinculação ou se, muito diversamente, está em causa uma divergente interpretação da vontade das partes.
XIV. O despacho a quo mostra-se deslocado na sua sede, sendo prolatado em momento, sede e ambiente processual juridicamente impróprios e extemporâneos pois trata-se tão-somente, em sede cautelar, de acautelar o efeito útil da acção principal e não de antecipar a apreciação profunda e de mérito que nesta última se haverá de efectuar.
XV. Havendo pacto atributivo de jurisdição há que determinar se for intenção das partes fazerem atribuição exclusiva, porque, nos termos do artigo 29º, n.º 2 do Código de Processo Civil de Macau, em caso de duvida, presumindo-se que seja alternativa e não estando fixada suficientemente nos autos de arresto matéria de facto para decidir de direito se a atribuição é exclusiva ou alternativa
XVI. Ao não ter adoptado a ora propugnada interpretação e aplicação das normas jurídicas constantes do 29.º do C.P.C. e artigos 391.º, 392.º, 399.º e 400.º, todos do Código Civil, bem como das normas jurídicas constantes do art. 332.º, n.º 1, e art. 1.º, n.º 2, parte final, 3.º, 433.º, 438.º, 556.º, n.º 2, 558.º, 560.º e 562.º, todos do C.P.C., o Tribunal a quo procedeu à violação das mesmas normas jurídicas, o que se invoca nos termos e para os efeitos das alíneas a) e b) do n.º 2 do art. 598.º do C.P.C., aplicável ex vi do art. 149.º do C.P.A.C.
XVII. O recorrente requer, assim, a revogação do douto despacho de 25 OUT 2019 e, por conseguinte, que prossigam os demais e ulteriores termos do procedimento cautelar.
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O Requerido respondeu à motivação do recurso acima em referência nos termos constante a fls. 230 a 237 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Fundamentação
O despacho recorrido tem o seguinte teor:
“…
O requerido do presente procedimento cautelar veio apresentar oposição ao arresto decretado. Em suma disse que o requerente não tem título executivo; que não há perigo de dissipação de bens de uma sociedade comercial porquanto o requerido deles não pode dispor, que o requerido nunca recebeu do requerente a quantia alegada como crédito do requerente sobre o requerido e que foi violado pacto privativo de jurisdição.
Tendo sido deduzida uma excepção dilatória que, se for procedente, dita a incompetência dos tribunais da RAEM deve ser pela apreciação de tal excepção que se deve começar.
No entanto, sempre se dirá, mesmo antes de averiguar a competência deste tribunal para apreciar o procedimento cautelar, que não pode ser fundamento de oposição o facto de faltar título executivo. O arresto decretado tem por fundamento a existência de um crédito, sumariamente demonstrado, não tem por pressuposto que tal crédito esteja confortado por título executivo. A oposição tem por função trazer ao tribunal factos novos ou provas novas que este não teve oportunidade de considerar antes de decidir sem ter ouvido previamente o requerido (art. 333, nº 1, al. b) do CPC). Mas factos e provas sobre a existência ou inexistência do crédito do requerente e não sobre a titulação deste em documento com força executiva que permita ao requerente dirigir-se logo à execução sem primeiramente se dirigir à acção declarativa. Ora, tendo a oposição por fundamento a falta de título executivo, a mesma terá de ser julgada improcedente se este tribunal se vier a julgar competente para apreciar e decidir.
De igual modo, não pode servir de fundamento de oposição ao arresto o facto de não haver perigo de extravio dos bens de uma sociedade comercial que não garante o crédito do requerente do arresto. Nesta parte, o pressuposto de decretamento do arresto é que haja justo receio de perda da garantia patrimonial do crédito do requerente. Ora, tal garantia patrimonial é constituída pelo património do devedor e não de terceiros (art. 596º do CC). Sendo o arresto um meio de conservação da garantia patrimonial dos créditos, ele só pode “preocupar-se” com o extravio dos bens do devedor, na falta de garantias de terceiros, como é o caso em apreço. Assim, também nada adianta ao requerido falar nos bens da sociedade comercial de que requerente e requerido são sócios.
O requerido atirou ao alvo errado: o requerente invocou um crédito sobre o requerido e um receio de que se perca a garantia patrimonial desse crédito e o requerido disse que o crédito não tem título executivo e que não há perigo de extravio de bens que não garantem o crédito.
O único fundamento substantivo da oposição em apreço que é pertinente á oposição ao arresto decretado é a negação do empréstimo que o requerente invocou como constitutivo do seu alegado crédito. Portanto, a oposição em apreço pode resumir-se à indicação de contraprova sobre o referido empréstimo (art. 333º, nº 1, al. b) do CPC).
Da competência dos tribunais da RAEM para conhecer do presente procedimento cautelar.
A incompetência do tribunal é uma excepção dilatória de conhecimento oficioso cuja verificação implica que o tribunal não conheça do mérito e absolva o requerido da instância cautelar.
No seu requerimento de oposição o requerido, como fundamento processual, veio invocar a violação de pacto privativo de jurisdição dos tribunais da RAEM.
O pacto privativo de jurisdição é um meio de modificação da competência do tribunal (cfr. epígrafe imediatamente anterior ao art. 26º do CPC). Só faz sentido privar de jurisdição aqueles sistemas jurídicos que a detêm. Portanto, primeiramente, antes de averiguar se os tribunais da RAEM foram privados de jurisdição, é necessário averiguar se estes tribunais a tinham, isto é, se tinham competência.
Os tribunais da RAEM têm competência para apreciar e decidir os procedimentos cautelares se aqui puder ser proposta a acção de que tais procedimentos são dependentes (arts. 18º e 328º, nº 6 do CPC). No caso dos autos, o procedimento cautelar é dependente da execução apensa. Para tal execução têm competência os tribunais da RAEM se aqui devesse ser cumprida a obrigação exequenda (art. 25º do CPC). Isto é, a RAEM pode ser o local do cumprimento coercivo da obrigação se aqui for o local de cumprimento voluntário.
A lei que disciplina o local de cumprimento.
Dos autos consta que o contrato de mútuo onde se originou o crédito que o requerente pretende proteger através do arresto foi celebrado na China continental, as partes são cidadãos chineses residentes em Macau e o objecto do contrato reporta-se a sociedades comerciais com sede na China continental.
Estamos pois perante uma relação jurídica plurilocalizada, havendo previamente que defrontar regras de direito internacional privado e só depois as regras aplicáveis sobre a questão do local do cumprimento.
A lei aplicável à substância do negócio é, na falta de estipulação, a lei do lugar da melhor conexão (art. 41º do CC). Não há dúvida que o referido contrato tem melhor conexão com a China continental. Na verdade reporta-se a relações empresariais ali estabelecidas.
Porém, atenta a natureza urgente do presente procedimento não é possível averiguar a norma da lei da China continental sobre o local do cumprimento pelo que, nos termos do art. 22º, nº 2 e 341º, nº 3 do CC, é aplicável o art. 763º do Código Civil de Macau. Assim, a obrigação exequenda deveria ser cumprida no domicílio do credor (requerente) na RAEM, razão por que os tribunais da RAEM têm competência para a execução e para os procedimentos cautelares que dela são dependentes.
Vejamos se os tribunais da RAEM foram convencionalmente privados de jurisdição sobre a questão que se discute no presente procedimento cautelar.
O requerido alegou uma cláusula contratual como fundadora do pacto privativo de jurisdição dos tribunais da RAEM.
As partes estão de acordo quanto à existência da invocada cláusula contratual, mas o requerente veio dizer que tal cláusula não é privativa da jurisdição deste tribunal porquanto refere que as partes podem recorrer aos tribunais do exterior, não dispondo que devem recorrer a tais tribunais.
A questão é, pois, a diferente interpretação que as partes fazem da mesma cláusula contratual.
Com se disse antes, estamos perante uma relação jurídica plurilocalizada, havendo previamente que defrontar regras de direito internacional privado e só depois as regras da interpretação negocial aplicáveis.
A lei aplicável à interpretação da declaração negocial é a mesma aplicável à substância do negócio (art. 34º, nº 1 do CC). E esta é, na falta de estipulação, a lei do lugar da melhor conexão (art. 41º do CC), a China continental.
Pelas razões já ditas é aplicável o regime da interpretação negocial da RAEM que elege como critério interpretativo a impressão do normal declaratário colocado na posição do real declaratário (art. 228º do CC).
Interpretar a declaração negocial é interpretar a vontade negocial das partes exteriorizada e transmitida através de tal declaração. Não a vontade interior, mas a vontade exteriorizada.
Atenta a cláusula em apreço (3-3 do documento de fls. 13 a 18) não se vê como deixar de concluir que dela um normal declaratário concluiria que as partes quiseram atribuir competência exclusiva aos tribunais da localização da sociedade comercial “Shandong Jiajiang”, a China continental. Mesmo sem esquecer o disposto no art. 29º, nº 2 do do CPC. Na verdade, se num contrato celebrado em Macau sobre “questões de Macau” se estabelece a cláusula em apreço atribuindo competência a um tribunal do exterior, a dúvida deve ser resolvida presumindo a competência alternativa. Porém, a cláusula que num contrato celebrado em Macau sobre “questões de Macau” refere que as partes podem recorrer aos tribunais de Macau não deixa dúvidas sobre a vontade de atribuição de competência exclusiva aos tribunais de Macau. Assim, também a cláusula que num contrato celebrado na China continental relativo a sociedade sedeada na China continental dispõe que as partes podem resolver os litígios nos tribunais da sede da sociedade deve ser entendia como atribuidora de competência exclusiva aos tribunais da China continental e como privativa da jurisdição dos demais tribunais. A boa hermenêutica dos textos aconselha a abandonar os sentidos que apontem para o absurdo. Ora, os tribunais da China continental seriam os “naturais” para solucionar as questões empresariais plasmadas no acordo em análise, pelo que não faria sentido escorreito dizer que as partes podem a eles recorrer (a não ser para as proibir de recorrerem a outros). De facto, seria quase como dizer que as pessoas que podem ir a Macau podem ir Macau. E também a boa interpretação aconselha a não concluir por tautologias, que são vícios claros de raciocínio. Ora, o sentido que um declaratário normal há-de deduzir é um sentido depurado de vícios de raciocínio, incongruências e antilogismos.
Pelo exposto se conclui que as partes quiseram privar os tribunais exteriores à China continental da competência para apreciar questões como a que se coloca nos presentes autos.
Julga-se, pois, verificada a excepção de incompetência deste tribunal e, em consequência, absolve-se o requerido da instância cautelar e determina-se o levantamento, após trânsito em julgado deste despacho, do arresto decretado.
Custas pelo requerente.
Registe e notifique….”.
Trata-se duma decisão que aponta para a boa solução do caso, com a qual concordamos na sua íntegra, pelo que ao abrigo do nº 5 do artº 631º do CPCM, é de negar o recurso nesta parte com os fundamentos invocados na decisão recorrida.
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III – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar provimento ao recurso interposto, confirmando o despacho recorrido.
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Custas do recurso pelo Requerente.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 02 de Abril de 2020.
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
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218/2020