--- Decisão Sumária nos termos do art.º 407º, n.º 6 do C.P.P.M. (Lei n.º 9/2013). -------------------------------
--- Data: 27/04/2020 ---------------------------------------------------------------------------------------------------------
--- Relator: Juiz Chan Kuong Seng ----------------------------------------------------------------------------------------
Processo n.º 1277/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrentes:
1.o arguido A
2.o arguido B
DECISÃO SUMÁRIA NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA
1. Por sentença proferida a fls. 150 a 157v dos autos de Processo Comum Singular n.° CR4-19-0236-PCS do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), o 1.o arguido A e o 2.o arguido B, aí já melhor identificados, ficaram condenados como co-autores materiais de um crime consumado de usura para jogo, p. e p. sobretudo pelos art.os 13.o e 15.o da Lei n.o 8/96/M, na pena individual de nove meses de prisão (igualmente suspensa na execução por dois anos), e na sanção individual de interdição de entrada nos casinos, igualmente por dois anos e três meses.
Inconformados, vieram os dois arguidos recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
O 1.o arguido alegou, no essencial, e pretendeu o seguinte, na sua motivação de fls. 169 a 182 dos presentes autos correspondentes:
– o Tribunal sentenciador não investigou bem sobre a natureza do negócio de “comparticipação de fichas de jogo nas apostas de jogos”;
– os elementos probatórios dos autos não conseguiram dar por certa a conclusão de haver, entre o ofendido e os arguidos, relação de empréstimo de dinheiro para jogar, até porque o ofendido chegou a declarar nos autos que caso ele perdesse todo o dinheiro nos jogos, não lhe seria necessário devolver o dinheiro pedido emprestado;
– não há prova bastante nos autos a apontar a participação do ora recorrrente na estipulação do acordo de empréstimo, com omissão também de determinado ponto do conteúdo desse acórdão;
– há contradição insanável da fundamentação nos primeiros três parágrafos dos factos provados, nos sexto a nono parágrafos dos factos provados e no décimo parágrafo dos factos provados, os quais, como tais, deveriam passar a ser considerados como não provados;
– e as circunstâncias fácticas apuradas nos autos também não dão para se dar por afirmado o dolo do próprio recorrente na prática do crime de usura para jogo;
– deve ele ser absolvido deste crime, por força do princípio de in dubio pro reo;
– e mesmo que assim não se entendesse, sempre deveria haver diferença nas penas aplicadas aos dois arguidos, atento o grau menor da culpa e da ilicitude dos factos do 2.o arguido;
– e sobre a decisão judicial de destino das fichas de jogo apreendidas nos autos, se o Tribunal sentenciador tenha considerado ilegal o acordo de comparticipação das fichas de jogo para apostas de jogo, então não deveria ter reconhecido tal acordo, no sentido de só declarar parcialmente confiscado o montante total de fichas de jogo encontradas aquando da descoberta do caso dos autos, e se o Tribunal entendesse nulo tal negócio de comparticipação das fichas de jogo, então deveria permitir ao ofendido reaver HKD165.000,00 fichas de jogo, e não apenas HKD55.000,00 fichas de jogo.
O 2.o arguido, na sua motivação de fls. 183 a 196 dos autos, alegou e rogou materialmente nos mesmos termos argumentativos do 1.o arguido recorrente, tendo salientado que fosse como fosse, para efeitos de decisão na medida da pena, a culpa dele e a ilicitude dos factos por si praticados seriam de grau mais leve do que as do 1.o arguido.
Aos recursos, respondeu o Ministério Público a fls. 198 a 204 dos autos, pugnando pela manutenção do julgado.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 218 a 220v, opinando pela improcedência dos recursos.
Cumpre decidir sumariamente do recurso dos arguidos, nos termos permitidos pelo art.o 407.o, n.o 6, alínea b), do Código de Processo Penal (CPP).
2. Do exame dos autos, sabe-se que a sentença ora recorrida se encontrou proferida a fls. 150 a 157v, cujo teor (que inclui a respectiva fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui inteiramente reproduzido.
3. De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao ente julgador do recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, conhecendo:
Da análise da argumentação principal tecida pelos dois recorrentes, resulta nítido que ambos estão a fazer sindicar materialmente da livre convicção do Tribunal recorrido sobre os factos então imputados aos dois.
Entretanto, desde já, há que observar que a fundamentação fáctica da sentença recorrida evidencia já que o Tribunal sentenciador já investigou, sem lacuna alguma, sobre a veracidade de todo o tema probando dos autos (sobre o que se deve entender por objecto do processo ou tema probando a nível do julgamento da matéria de facto, cfr., por exemplo, de entre muitos outros, os acórdãos deste TSI, de 22 de Julho de 2010, do Processo n.o 441/2008, e de 17 de Maio de 2018, do Processo n.o 817/2014).
Por outro lado, os argumentos tecidos pelos dois recorrentes para assacar o vício de contradição insanável da fundamentação à decisão condenatória recorrida têm a ver propriamente com a discordância deles da matéria de facto dada por provada em primeira instância.
Assim, é de ajuizar primeiro se o Tribunal recorrido errou ou não na apreciação da prova.
Há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto.
Aliás, esse Tribunal expôs congruentemente, e até com minúcia, as razões da formação da sua livre convicção sobre os factos – cfr. o teor da mesma fundamentação probatória, tecida nas páginas 9 (a partir dos últimos dois parágrafos desta) a 11 (até ao 3.o parágrafo desta) do texto do aresto impugnado, a fls. 154 a 155 dos autos, no referente à análise crítica das provas dos autos, depois de estar sumariado, a partir do último parágrafo da página 6 até ao 7.o parágrafo da página 9 do mesmo decisório, o conteúdo de diversos elementos probatórios.
Como o resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido não é desrazóavel, improcede também a tese dos dois recorrentes da alegada existência da contradição insanável da fundamentação.
No caso dos autos, ante a matéria de facto provada em primeira instância, é claro que os dois recorrentes, em conjugação de esforços e por divisão de tarefas, acabaram por facultar, não gratuitamente, mas sim onerosamente, fichas de jogo ao ofendido para este jogar em casino, pelo que ficou acertada a decisão condenatória penal recorrida em sede do tipo legal de usura para jogo.
A singela comparticipação de dinheiro ou fichas de jogo para jogar não conduz à incriminação a nível de usura de jogos. Só que no caso dos autos, a matéria de facto provada demonstrou que não se tratou de uma genuína comparticipação de dinheiro ou fichas de jogo para jogar, mas sim um autêntico empréstimo de dinheiro ou fichas de jogo para o ofendido jogar em casino, com cálculo e cobrança de juros do montante “comparticipado” por banda dos arguidos, os quais, praticaram nitidamente, e com dolo, o crime de usura de jogo, em co-autoria material, sendo de frisar que em caso de co-autoria, não se exige que todos os co-autores tenham que participar em todos os elos do plano delinquente.
Quanto à medida da pena, não se vislumbra que haja diferença sensível entre a culpa e a ilicitude dos factos praticados pelos dois arguidos, é que é de respeitar o juízo de valor já emitido pelo Tribunal recorrido em sede da medida concreta da pena. É mesmo de louvar a decisão recorrida nesta parte, nos termos permitidos pelo art.o 631.o, n.o 5, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do CPP.
Há que rejeitar os recursos, sem mais indagação por ociosa ou prejudicada, devido ao espírito do n.º 2 do art.º 410.º do CPP.
Nota-se, por fim, que não é mister conhecer da última parte dos recursos dos dois arguidos no tocante à declaração, tomada pelo Tribunal recorrido, do perdimento parcial das fichas de jogos apreendidas à ordem dos autos, pois os dois recorrentes não têm legitimidade processual, no presente processo, para recorrer por interesse do ofendido para lutar pelo aumento do montante de fichas de jogo a ser devolvidas ao ofendido, nem tão-pouco para pedir a declaração do perdimento total das fichas de jogos apreendidas (em desfavor do ofendido, ao contrário do decidido judicialmente na sentença).
4. Dest’arte, decide-se em rejeitar os recursos.
Custas dos recursos pelos respectivos arguidos recorrentes, com cinco UC de taxa de justiça individual e cinco UC de sanção pecuniária individual (pela rejeição do respectivo recurso).
Macau, 27 de Abril de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
Processo n.º 1277/2019 Pág. 10/10