Processo nº 559/2019
Data do Acórdão: 29ABR2020
Assuntos:
Despacho tabelar
Posse
Usucapião
Herdeiro legitimário
Decisão-surpresa
Princípio do dispositivo
SUMÁRIO
1. Não tendo sido concretamente decidida no saneador a questão da legitimidade das partes, a apreciação meramente tabelar nele feita nunca forma caso julgado e portanto, não tem a dignidade de impedir a posterior apreciação da legitimidade das partes pelo Tribunal, ex ofício ou a requerimento de qualquer das partes.
2. A fundamentação onde se diz que não cobrindo a posse que têm os Autores a totalidade do bem cujo direito real que pretenderam adquirir por usucapião, não está em contradição com a decisão que não reconhece aos Autores como únicos titulares da totalidade do direito real em causa.
3. Não tendo exercido a posse sobre a totalidade do bem, os Autores não podem adquirir, com fundamento nessa posse, a totalidade do direito real sobre o mesmo bem, por via de usucapião e ao abrigo do disposto no artº 1212º do CC.
4. Ora, como se sabe, ao autor cabe formular a pretensão de tutela jurisdicional que visa obter e expor as razões de facto e de direito em que a fundamenta (artº 389º/1-c) do CPC) e sobre o réu recai o ónus de impugnação específica dos factos articulados na petição pelo autor (artº 410º/1 do CPC) .
5. Na matéria de facto, o juiz tem de cingir-se às alegações das partes, ao passo que na indagação, interpretação e aplicação do direito o tribunal age livremente (artº 567º do CPC).
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 559/2019
Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I
A, B, C e D, todos devidamente identificados nos autos, intentaram uma acção ordinária, registada sob o nº CV3-17-0074-CAO, do 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, contra herdeiros de F ou F1, e demais interessados incertos, nos autos representados pelo Ministério Público nos termos do disposto no artº 51º do CPC, pedindo que, com fundamento na usucapião, fossem declarados únicos e legítimos titulares do domínio útil sobre o prédio situado em Macau, na Taipa, com entrada pelo nº 21 da Rua dos XXXXXX, Taipa, anteriormente com o nº 16 da mesma Rua, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº**** a fls. 152v do Livro B21, e omisso na matriz predial urbana, foi proferida a seguinte sentença julgando improcedente a acção:
I) RELATÓRIO
A (A), titular do BIRM nº5******(3), casada com ZZZ no regime de comunhão de adquiridos, residentes na Rua dos XXXXXX, nº21, Taipa;
B (B), titular do BIRM nº5******(1), casada com YYY no regime de seperação de bens, residentes no Flat C, 1/F, ...... Court, ...... Mansion, 5 ...... Road, ......, Hong Kong;
C (C), titular do BIRM nº5******(8), solteiro, residente na Rua dos XXXXXX, nº21, Taipa
D (D), titular do BIRM nº5******(6), solteira, residentes na Rua dos XXXXXX, nº21, Taipa, vêm intentar a presente
ACÇÃO ORDINÁRIA contra
Herdeiros incertos de F ou F1 (F或F1的不確定繼承人); e
Interessados incertos (不確定利害關係人).
com os fundamentos apresentados constantes da p.i., de fls. 2 a 12.
Concluiu pedindo que seja julgada procedente por provada e, em consequência, serem os Autores declarados, para todos os efeitos legais, nomeadamente para a inscrição da titularidade junto da Conservatória do Registo Predial de Macau, como titulares do domínio útil sobre o prédio com entrada pelo nº21 da Rua dos XXXXXX, Taipa, anteriormente com o nº16 da mesma Rua, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº**** a fls. 152v do Livro B21, e omisso na matriz predial urbana.
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O MºPº contestou a acção com os fundamentos constantes de fls.579 a 580 dos autos, impugnando todos os factos articulados e o valor de acção indicado pelos Autores, entendendo que o valor deverá ser fixado em MOP$6.390.000,00.
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Saneados os autos no saneador, fixa-se o valor de causa em MOP$6.390.000,00 e foram seleccionados os factos assentes e os factos que se integram na base instrutória.
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Foi realizado o julgamento com a intervenção do Tribunal Colectivo.
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O Tribunal é competente em razão da matéria, hierarquia e internacionalmente e o processo é próprio.
As partes gozam de personalidade e capacidade jurídicas e são legítimas.
Não existem excepções, nulidades ou outras questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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II) FACTOS
Dos autos resulta assente a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
Da Matéria de Facto Assente:
- Existe o prédio urbano, objecto da presente acção, sito na Rua dos XXXXXX nº21 tinha anteriormente o nº16 da mesma Rua. (alínea A) dos factos assentes)
- Alteração do número policial ocorreu por deliberação de 23 de Maio de 1934 da então Comissão das Ilhas conforme a Acta nº20 da referida comissão cuja certidão se juntou sob designação de documento nº1 e que à semelhança dos demais aqui se dá por integralmente reproduzido – doc. 1. (alínea B) dos factos assentes)
- O aludido prédio tem a área de 49 metros quadrados e os limites assinalados na planta cadastral nº61******, conforme a NE com a Rua dos XXXXXX nº23 (nº4***), a SE com a Rua ...... nº14 (nº23***), a SW com a Rua dos XXXXXX nº19 (nº4***) e Travessa ...... nº1 (nº20***) e a NW com a Rua dos XXXXXX, cfr. Planta cadastral junta sob designação de documento nº2 – doc. 2. (alínea C) dos factos assentes)
- O aludido prédio, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº**** a fls. 152v do Livro B21, conforme certidão do registo predial junta sob designação de documento nº3 – doc. 3. (alínea D) dos factos assentes)
- Com inscrição do domínio directo a favor da RAEM conforme resulta da apresentação nº*** de 3 de Maio de 1898 – (cfr. doc. 3). (alínea E) dos factos assentes)
- O terreno onde se encontram implantado o prédio com o número 21 (antigo número 16), acha-se inscrito no livro de registos de Foros, modelo vinte e um (M/21) sob número 79, a favor de F ou F1, conforme certidão da Direcção dos Serviços de Finanças junta como documento nº4 (doc. 4). (alínea F) dos factos assentes)
- O prédio em causa nos presentes autos está omisso na matriz. (alínea G) dos factos assentes)
- Os Autores são filhos de G, aliás G1, também conhecido por G2 ou G3 e de H, também conhecida por H1, conforme certidões de nascimento juntas sob designação de documento nº5, nº6, nº7 e nº8 – doc. 5, 6, 7 e 8. (alínea H) dos factos assentes)
- A Autora A nasceu no dia 9 de Janeiro de 19** – cfr. doc. 5. A Autora B nasceu no dia 20 de Novembro de 19** – cfr. doc. 6. O Autor C nasceu no dia 19 de Agosto de 19** – cfr. doc. 7. A Autora D nasceu no dia 26 de Agosto de 19**- cfr. doc. 8. (alínea I) dos factos assentes)
- O pai dos Autores, G, aliás G1, também conhecido por G2 ou G3 era casado com a senhora I, ou I1 – cfr. doc. 11. (alínea J) dos factos assentes)
- O pai dos Autores, G, aliás G1, também conhecido por G2 ou G3, faleceu em 17 de Dezembro de 1959, conforme certidão de óbito e da pública-forma do assento de óbito juntas como documentos nº9 e 10 – docs. 9 e 10. (alínea K) dos factos assentes)
- A senhora I, ou I1 faleceu em 5 de Julho de 1967, conforme pública-forma da certidão narrativa de óbito junta sob designação de documento nº11 – doc. 11. (alínea L) dos factos assentes)
- A mãe dos ora Autores, H, também conhecido por H1, faleceu no dia 22 de Março de 2015, conforme certidão de óbito junta como documento nº12 – doc. 12. (alínea M) dos factos assentes)
Da Base Instrutória:
- O pai dos Autores, G, aliás G1, também conhecido por G2 ou G3, casou com a Senhora I, ou I1, segundo as tradições e costumes chineses. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
- O que consta da certidão do registo predial constante de fls. 617 a 626. (resposta ao quesito 1º-A da base instrutória)
- Por altura do casamento com a Senhora I ou I1, o pai dos Autores adquiriu o nº21 da Rua dos XXXXXX por contrato verbal ao seu anterior proprietário. (resposta ao quesito 2º da base instrutória)
- O pai dos Autores passou a residir no número 21 (artigo n°16) da Rua dos XXXXXX desde que se casou com a Senhora I ou I1. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
- Não obstante ser casado com a Senhora I ou I1, o pai dos ora Autores mantinha uma relação com a mãe dos ora Autores, a Senhora H, também conhecida por H1. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- Tendo sido nessa casa que os Autores nasceram e passaram a sua infância. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
- E onde reside o Autor C, com a autorização e concordância dos outros irmãos, aqui também Autores, que o visitavam e ali fazendo refeições e dormindo ocasionalmente. (resposta ao quesito 6º da base instrutória)
- O pai dos, enquanto vivo, e os ora Autores depois da morte do seu pai, ocuparam-se da realização das obras manutenção e reparação que se mostravam necessárias no prédio, nomeadamente, pintura do interior e exterior e reparação de algumas torneiras e portas, substituição de fechaduras e torneiras. (resposta ao quesito 7º da base instrutória)
- Os Autores, pelo menos, desde 1977, pagaram as taxas telefónicas e depois as contas relativas aos serviços telefónicas para o exterior. (resposta ao quesito 8º da base instrutória)
- Pagando o pai dos Autores e depois os ora Autores as despesas inerentes ao consumo de água e electricidade do imóvel. (resposta ao quesito 9º da base instrutória)
- … e bem assim como o foro e contribuição predial, pagos pelo menos desde 1946, ainda pelo pai dos ora Autores, até 1982. (resposta ao quesito 10º da base instrutória)
- Foram os Autores que solicitaram a colocação de um toldo no imóvel e entre 1971 a 1978 procederam ao pagamento da taxa devida. (resposta ao quesito 11º da base instrutória)
- … e nele recebem a sua correspondência pessoal. (resposta ao quesito 12º da base instrutória)
- Nunca G, aliás G1, também conhecido por G2 ou G3, e nem os Autores, foram abordados por quem quer que seja reclamar quaisquer direitos sobre o aludido prédio. (resposta ao quesito 13º da base instrutória)
- Os AA. e seus pai sempre exercitando todos os actos referidos de forma a serem conhecidos por todos. (resposta ao quesito 14º da base instrutória)
- Quer os comerciantes, quer os moradores dos prédios vizinhos, viam o pai dos Autores e estes como donos e legítimos proprietários do nº21 da Rua dos XXXXXX. (resposta ao quesito 15º da base instrutória)
- … sem oposição de quem quer que seja. (resposta ao quesito 16º da base instrutória)
- Desde que adquiriu o imóvel ao seu anterior proprietário que o pai dos Autores, G, aliás G1, também conhecido por G2 ou G3, e depois da morte deste, os AA., sempre praticaram os actos supra aludidos na íntima convicção de que fruíam o referido prédio porque o mesmo lhe pertencia e em relação ao seu domínio útil. (resposta ao quesito 17º da base instrutória)
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III) FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Cumpre analisar os factos tidos por assentes e aplicar o direito.
Vêm os Autores pedir que lhes sejam declarados como titulares do domínio útil do prédio como o nº21 da Rua dos XXXXXX na Taipa (anteriormente nº16 da mesma Rua), descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau, sob o n.°****, a fls. 152v do Livro B-21.
Da legitimidade dos interessados incertos
Segundo os factos da p.i., os Autores fundamentaram o seu direito no exercício de poder de facto sobre o prédio com o n°21 da Rua dos XXXXXX na Taipa, que se encontra registado a favor do F ou F1, pretendem a aquisição do domínio útil sobre o prédio contra os herdeiro desconhecidos de F ou F1 e os interessados incertos.
Prevê-se o art°58° do C.P.C. que “Na falta de indicação da lei em contrário, possuem legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor.
Assim, conforme os factos delineados pelos Autores, a relação jurídica controvertida deverá ser estabelecida entre os herdeiros desconhecidos do F ou F1, titular da propriedade.
Ademais, dos factos alegados pelos Autores, não se relatam quaisquer factos que configuram os interessados incertos como sujeitos da relação material controvertida, não se vê a razão donde justifica a legitimidade dos últimos.
Daí se resulta que falta a legitimidade passiva desse réu, pelo que esse Réu deverá ser absolvido da presente instância.
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Posse
A única questão a resolver nos presentes autos reside-se é saber se os Autores gozam da posse do prédio e a duração do tempo que perdura a posse permite à usucapião.
Vejamos.
“Posse é o poder que se manifesta quando alguém actual por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.” (art°1251° do C.C. 66 e art°1175° do C.C.99)
Sobre a posse, a doutrina dominante tem entendido que o conceito da posse, acolhido no art°1251° e ss do C.C. 66 (com a redacção idêntica dos art°1175° e ss do C.C. 99), deve ser entendido de acordo com a concepção subjectivista, em que se exige dois elementos “corpus” e “animus”. O corpus, traduz-se como os actos materiais praticados sobre a coisa, com o exercício de certos poderes sobre a coisa, enquanto o anímus, que consiste na intenção por parte de quem a exerce, de se comportar como titular do direito real correspondente aquele domínio de facto ou aos actos praticados. (Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, 2ª edi, Vol III, pag.5 e Orlando Carvalho, RLJ, 122°-65 e ss)
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No que diz respeito ao corpus, estão assentes que o pai dos Autores adquiriu o prédio com nº21 da Rua dos XXXXXX na Taipa (anteriormente nº16 da mesma Rua), descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau, sob o n.°****, a fls. 152v do Livro B-21, por contrato verbal ao seu anterior proprietário durante a instância do casamento com a Senhora I ou I1, e, passou o casal a residir no referido prédio, tendo o pai deles falecido em 1959.
Os Autores nasceram da relação extra-matrimonial que o pai deles tinha com a sua mãe H, no mencionado prédio, no período mediante entre 1951 a 1957 e passaram aí sua infância.
A I e a mãe dos Autores já faleceram nos anos 1967 e 2015, respectivamente.
Actualmente, reside o Autor C no prédio referido, na concordância dos restantes Autores.
Conforme esses factos, o prédio iludido tem sido usado e gozado pela família dos Autores, inicialmente pelo seu pai e actualmente por um dos Autores.
Vem comprovado igualmente que o pai dos Autores e os Autores, realizaram as obras de manutenção e de reparação necessária do prédio, pagaram o foro, desde 1964 e contribuição predial do prédio até 1982, pagaram as taxas telefónicas, as despesas inerentes ao consumo de água e electricidade do imóvel.
De acordo com esses factos dados como provados, pode deduzir-se que, desde a compra pelo pai dos Autores na data não posterior a 1951, o pai deles exercia e depois, os Autores exercem um conjunto dos actos materiais sobre o prédio em causa. Analisados esses actos praticados pelo pai e pelos Autores, não se vê diferença entre estes e os que o proprietário praticaria. Portanto, dúvidas não havemos que existe o elemento de “corpus”
No que tocante ao elemento “animus,”, também se acha verificado a partir dos factos acima provados.
Com efeito, estatui-se que “Em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto.” (art°1252°, n°2 do C.C.66 e art°1176°, n°2 do C.C99)
Diz Mota Pinto que “A prova do exercício do poder de facto faz presumir a existência do animus.” (Cfr. Direito Reais, 1971, 191)
Nesse sentido, decide-se o Acórdão do TSI n° 292/2004, de 17 de Março de 2005, “O animus mais não é que essa intenção jurídico-real. Admite-se até que a intenção de domínio não tenha de explicitar-se e muito menos por palavras: o que importa é que se deduza do próprio modo de actuação ou de utilização da coisa”.
Resulta-se dos factos assentes que o pai adquiriu o prédio como o seu anterior proprietário, a partir daí exercia os actos materiais sobre o mesmo, após o seu falecimento, passaram os autores a praticar os actos materiais em relação ao prédio, tendo o pai deles e os Autores conhecidos pelos moradores vizinhos como dono do prédio. Daí se podemos concluir que quer o pai deles quer os Autores se considerem a si mesmos como legítimos adquirentes do prédio e por essa razão, exercia e exercem os poderes de facto sobre o prédio.
Pelo que, há de considerar que existe animus possidendi por parte dos Autores.
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Aquisição da posse
Para além da existência da posse, importar saber a forma e o momento da aquisição da posse pelos Autores, visto que é a partir desse momento é que faz a contagem do prazo da posse.
Preceitua-se o disposto da alínea a) do art°1263° CC66 (actual art°1187° do CC99) que “A posse adquire-se pela prática reiterada, com publicidade dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito.”
A aquisição da posse está condicionada, mas não se limite, com a demonstração dos elementos de corpus e animus. Para o efeito, a lei exige mais dois requisitos: a prática reiterada e a publicidade.
No que tocante a reiteração, tem entendido que o que releva para o apossamento é a intensidade da actuação, e não o tempo, para criar o controlo material sobre a coisa.
Assim, diz José Alberto C. Vieria, in Direitos Reais, que “Este (apossamento) requer que o possuidor esteja em condições de actuar duradouramente sobre a coisa ou seja, de a conservar debaixo do seu poder. Isto não quer dizer, porém, que a posse tenha de se manter duradouramente para que haja apossamento, mas que deve existir essa possibilidade abstracta.”
No caso em causa, assente está que o pai dos Autor comportava-se como o dono do prédio em nome próprio desde a aquisição, procedendo as obras de reparação, suportando os encargos inerentes, sendo reconhecidos como dono por todos, sem oposição ou contestação de ninguém.
Não obstante de que não foi apurado exactamente, a data da aquisição do prédio por ele, mas ficou provado que os Autores nasceram entre 1951 a 1957, daí podemos deduzir que o início do exercício do poder de facto era, pelo menos desde 1951, que se mantinha até 1959, data do seu falecimento. O pai dos Autores manteve o domínio do prédio durante cerca de 9 anos, atento ao modo com que se efectuou, o domínio material integra-se, inequivocamente, no requisito da prática reiterada.
Por outro lado, esses actos eram actuados pelo pai dos Autores à vista de todos, facilmente perceptíveis por todos, o controlo material é, sem dúvida, feito, pela forma pública.
Assim, mostram-se preenchidos os requisitos essenciais, é de afirmar que o pai dos Autores adquiria a posse sobre o prédio nº21 da Rua do XXXXXX na Taipa (anteriormente nº16 da mesma Rua), ao abrigo do preceito acima transcrito.
Sucessão da posse
Nos termos do art° 1256° do C.C. (actual art° 1180°), “Por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa.”
Com a morte do pai dos Autores, a posse exercida pelo pai deles passa para os seus sucessores desde o momento da morte, sem necessidade da apreensão material da coisa.
Na perspectiva dos Autores, a posse passou directamente para eles na qualidade dos herdeiros legítimos do seu pai.
Essa afirmação só é verdadeira se somente os Autores e mais ninguém têm a qualidade dos herdeiros.
Para responder a essa pergunta, urge aquilatar quem eram os herdeiros do pai dos Autores, de acordo com a lei de sucessão aplicável.
Lei de sucessão aplicável
Ora bem, o pai dos Autores faleceu em 1959, antes da entrada em vigor do Código Civil de 1966, certamente não é aplicável o regime desse Código. Será aplicável o Código Civil de Seabra? Também não.
Conforme os poucos factos alegados pelos Autores, o pai deles casou com a I segundo o uso e costume chinês, embora não seja alegada expressamente, cremos que o local de casamento é Macau, visto que ficou provado que o pai dos Autores comprou o prédio situado em Taipa por altura do casamento.
O regime jurídico aplicável na matéria familiar e sucessão em relação aos chineses na altura eram: i) Código de Uso e Costume Chineses, aprovado em 17 de Junho de 1909; ii) Decreto n°36987, publicado em 14 de Agosto de 1948; iii) Código Civil de Seabra.
Como o pai dos Autores faleceu em 1959, assim, sobre os direitos de família e sucessórios, é aplicável o regime regulado pelo Decreto n°36987.
De acordo com o art°2° desse Decreto, “Os chineses naturais de Macau que não forem portugueses de nacionalidade, e bem assim, os indivíduos de nacionalidade chinesa, ficam sujeitos às leis civis chinesas em tudo o que se refere a direitos de família e sucessórios.”
Na altura da sucessão, estava em vigor somente o Código Civil Chinês promulgado em 1930, dada à sucessão do regime político da China, a nova lei de sucessão da República Popular da China só foi publicada em 1985.
Assim, entendemos que, durante esse lapso temporal, deverá ser aplicável o regime jurídico de família e de sucessão regulado nesse Código.
Segundo o disposto do art°1138° do Código Civil Chinês de 1930, são sucessíveis, para além do cônjuge, i) os descendentes ii) irmãos; iii) pais; e iv) avôs.
Aplicável essa norma ao caso do pai dos Autores, na altura da sucessão, eram os seus herdeiros, para além dos Autores, filhos deles, mais a sua cônjuge sobreviva, a I.
Não constam dos autos elementos sobre se entre o pai dos Autores e a sua mulher I foi estipulado o regime convencionado de bens, segundo o regime legal de bens vigente na altura1, a mulher não tem direito sobre o bem adquirido pelo marido.
Mesmo sem contar a meação do cônjuge, conforme o disposto do n°1 do art°1144° do mesmo Código, as partes da sucessão da cônjuge sobreviva e dos filhos são divididas em partes iguais.
Por isso, a sucessão da posse ocorreu em relação a todos os herdeiros legítimos do pai dos Autores, a posse continua nos seus sucessores no conjunto.
Assim, a continuação do exercício da posse pelos Autores, na qualidade dos herdeiros, não é de considerar como posse própria mas posse em conjunto em benefício a todos os herdeiros, incluindo a I.
Até à partilha, o prédio é o bem deixado pelo pai dos Autores, que se mantém em situação de comunhão. A essa comunhão é aplicável subsidiariamente o regime de compropriedade.
Dispõe-se o art°1403° do C.C. 66, que “1. Existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa. 2. Os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes; as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta da indicação em contrário do título constitutivo.”
Por outro lado, preceitua-se o art°1406° do C.C. 66 , “1. Na falta de acordo sobre uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito. 2. O uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título.”
Como a posse do pai, com a sua morte, transferiu-se, no conjunto, para os Autores e a I, qualquer deles podia usar a totalidade do bem. No entanto, o uso da coisa comum pelo qualquer dos herdeiros não constitui posse exclusiva sobre a totalidade do bem.
Nesse sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07/04/2011, “Sendo o comproprietário possuidor em nome alheio, relativamente à parte da coisa que excede a sua quota, não pode adquirir, por usucapião, sem inverter o título de posse, que tem subjacente a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse, em nome próprio. A inversão por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía impões que o primeiro torne, directamente, conhecida da pessoa em cujo nome possuía, a sua intenção de actuar como titular do direito, sendo uma oposição categórica, traduzida em actos positivos, materiais ou jurídicos, mas inequívocos.”
Não sendo exclusivos os direitos dos Autores sobre a herança, a posse que os Autores têm exercido sobre a herança por uso ou fruição dele, desde o momento da morte do seu pai, é meramente posse precária, por tolerância do outro herdeiro, a não ser haver inversão do título da posse.
Nos autos, não foram demonstrados factos que sejam susceptíveis de integração da inversão do título da posse, através dos actos inequívocos de oposição, enquanto herdeiros da posse, contra a I, nem que foram alegados quaisquer factos que permitiram saber que houve alteração do intuito subjectivo de que a posse dos Autores passa a ser exclusiva, particularmente após a morte do I em 1969, pois, se a I deixasse herdeiros, eles também tem direito a suceder à sua parte.
Como a I era mulher do pai dos Autores e não era mãe dos Autores, a quota-parte do direito pertencente à I não se transferiu automaticamente para a esfera jurídica dos Autores, carece de haver novos factos para que se opere a modificação do elemento subjectivo.
Assim, não se pode considerar, mesmo com a prova do exercício dos actos materiais pelos Autores, que estes exerciam e exercem posse exclusiva sobre a totalidade do bem porque não houve oposição inequívoca por parte deles contra a outra herdeira ou os seus herdeiros que tinha direito na sucessão do imóvel deixado pelo G.
Dest’arte, sendo a posse dos Autores precária e não exclusiva, e na falta de alegação dos factos da inversão do título, essa posse não poderá conduzir a usucapião do direito real por parte dos Autores em relação ao prédio em apreço.
Nestes termos, julga-se improcedente o pedido dos Autores.
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IV) DECISÃO
Nos termos e fundamento acima expostos, julga-se a presente acção improcedente por não provado e consequentemente, decide:
- Absolver os Interessados incertos da instância por ilegitimidade;
- Absolver os Réus Herdeiros incertos de F ou F1 do pedido formulado pelos Autores A, B, C e D.
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Custas pelos Autores.
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Registe e Notifique.
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據上論結,本法庭裁定訴訟理由不成立,裁決如下:
- 駁回原告A、B、C及D對不確定利害關係人的起訴;
- 裁定原告針對F或F1的不確定繼承人提起的訴訟請求不成立,並開釋此等被告。
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訴訟費用由原告承擔。
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依法作出通知及登錄本判決。
Não se conformando com o decidido, vieram os Autores recorrer da mesma para este Tribunal de Segunda Instância.
Os Autores formularam para o efeito as seguintes conclusões:
I. Não podem os Recorrentes conformar-se com a decisão recorrida estando em crer que, salvo o devido respeito, a mesma se encontra inquinada do vício de nulidade e de errada interpretação e aplicação de lei conforme infra melhor se explanará, não sem antes proceder ao enquadramento da sobredita decisão;
II. Salvo o devido respeito por melhor opinião, deverá ser reconhecida força vinculativa à decisão tomada, em sede de Despacho Saneador, sobre a legitimidade das partes, o que exclui a possibilidade da mesma ser novamente examinada e de serem tomadas decisões contraditórias ou incompatíveis com aquela;
III. Tendo o despacho saneador de fls 587 e ss transitado em julgado, tornou-se caso
julgado formal, ficando logo decidido definitivamente nos autos que todas as partes são legítimas;
IV. O Tribunal a quo nunca poderia proferir sentença contraditória, nomeadamente
absolvendo os Réus incertos por ilegitimidade.
V. Ao fazê-lo a decisão recorrida mostra-se em violação do princípio do caso julgado formal e do preceituado nos artigos 575º e 580º do CPC pelo que, nesta parte, deverá ser revogada.
VI. A decisão recorrida mostra-se ainda inquinada do vício de erro de julgamento por errada aplicação do Código Civil Chinês de 1930, o qual veio a ser revogado em 1949 aquando da criação da Republica Popular da China.
VII. Não poderá aplicar-se, em Macau, uma Lei revogada na sua origem.
VIII. Tendo em conta que a lei de sucessão da Republica Popular da China só foi publicada em 1985, à data do óbito do pai dos autores, ou seja, em 1959, ocorria um vazio legal cujo preenchimento terá necessariamente de fazer-se com recurso às regras de integração de lacunas por recurso à analogia.
IX. A única solução viável é a de aplicar o único código que se encontrava em vigor em Macau naquela data e que se aplicava a todos os cidadãos naturais de Macau que fossem portugueses de nacionalidade, qual seja o Código Civil de 1897, mais conhecido por Código de Seabra.
X. Nos termos do artigo 1969º do Código de Seabra, o cônjuge integrava tão só a 4ª classe dos sucessores legítimos, após os descendentes (1ª classe), os ascendentes (2ª classe) e os irmãos e seus descendentes (3ª classe).
XI. Nos termos do art. 2003º (redacção do Decreto n.º 19 126) inserido na secção VI, relativa à sucessão do cônjuge sobrevivo e dos transversaes, "na falta de descendentes, ascendentes e irmãos e descendentes destes, sucedera o cônjuge sobrevivo, excepto achando-se judicialmente separado de pessoas e bens por culpa sua",
XII. Acrescentando o § único que "na falta de descendentes e ascendentes, nos termos dos artigos 2000º e 2002º, o cônjuge sobrevivo será usufrutuário da herança do cônjuge falecido, se ao tempo da morte deste não estivessem divorciados ou separados de pessoas e bens, com sentença transitada em julgado."
XIII. Ainda em abono da aplicação do Código de Seabra por recurso à analogia - por ser o único código que se encontrava em vigor à data do óbito - importará apelar à lei das Sucessões e os Princípios do Código Civil chinês que anos mais tarde - mais precisamente em 1985 e 1986 - foram aprovados na Republica Popular da China.
XIV. Nos termos do Artigo 36º da Lei de Sucessões da RPC, quando se tratar de sucessão da herança deixada fora do território da Republica Popular da China, os bens móveis serão regulados pela Lei do domicílio do autor da sucessão e os bens imóveis serão regulados pela lei do local da situação dos bens.
XV. O mesmo resulta do Artigo 149 dos Princípios Gerais do Código Civil segundo o qual à sucessão legal da propriedade móvel aplica-se a lei do domicílio, ao passo que à da propriedade imóvel se aplica a lei da sua localização.
XVI. A lei da RPC, posteriormente aprovada, determina que as questões sucessórias referentes a bens imóveis sitos em Macau deverá ser regulada pela Lei de Macau dando primazia ao princípio da lex rei sitae.
XVII. Dúvidas não restam que o Código Civil Chinês de 1930 não é de aplicar ao caso da sucessão por óbito do pai dos Autores, porquanto o mesmo se encontrava à data revogado, sendo de aplicar, por recurso à analogia e dando primazia ao principio da lex rei sitae actualmente acolhido pela legislação da RPC, o Código de Seabra.
XVIII. Apenas os Autores eram herdeiros legítimos de seu pai de G, aliás G1, e I não era herdeira.
XIX. A decisão recorrida incorreu num erro de julgamento, e deverá assim ser revogada e substituída por outra que julgue procedente o pedido dos Autores.
XX. Os factos provados apontam necessariamente no sentido de ser exercida pelos Autores uma posse perfeita, em nome próprio.
XXI. É a própria decisão recorrida que afirma para que dúvidas não existam que os Autores têm animus possidendi.
XXII. Ao procederem relativamente ao prédio dos autos como sendo coisa sua, os Autores actuam com animus e corpus de verdadeiros possuidores e não de meros detentores ou possuidores precários (por tolerância de quem quer que seja!)
XXIII. Os autores exercem sobre o prédio em discussão nos autos actos materiais de posse que se concretizam quer no poder de facto que exercer sobre o mesmo colocando a coisa em seu poder, quer na intenção de agirem como seus donos.
XXIV. Tendo em conta a factualidade provada e a convicção do tribunal a quo plasmada na decisão da matéria de facto, tudo levava a crer que a decisão apontava para a procedência do pedido dos Autores.
XXV. Tendo o Autores comprovadamente a posse do prédio, caracterizada pelo corpus e pelo animus, tendo essa posse sido adquirida pela prática reiterada, com publicidade, de diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade, podendo até ler-se na decisão recorrida que "analisando os actos praticados pelos Autores não se vê grande diferença entre estes e os que o proprietário praticaria", nunca poderia o Tribunal ter concluído e decidido que a posse dos Autores é precária e não exclusiva e que não existem factos referentes à inversão do título.
XXVI. Em momento algum os Autores alegaram que a posse passou directamente para eles na qualidade de herdeiros legitimários.
XXVII. Como resulta claro dos factos alegados nos art. 43º e seguintes da petição inicial, após a morte do seu pai e da Senhora I, os Autores passaram a exercer em nome próprio a condição de proprietários do domínio útil do prédio em questão.
XXVIII. Porventura, esta errada interpretação dos factos alegados pelos Autores pelo Tribunal a quo tenha conduzido a tão manifesta contradição não apenas com a fundamentação da decisão recorrida, mas também com tudo o que aconteceu durante o processo, designadamente na fase de instrução e decisão da matéria de facto, e que urge colmatar.
XXIX. A sentença é assim necessariamente nula por oposição entre os fundamentos e a decisão - alínea c) do artigo 571º do CPC;
XXX. A decisão recorrida fez uma errada interpretação e aplicação do preceituado nos artigos 1175º, 1179º, 1187º, 1190º e 1212º do Código Civil de Macau.
XXXI. A decisão recorrida parte de pressupostos errados, no sentido de que parte de pressupostos fácticos que não correspondem aos alegados pelos Autores.
XXXII. Como resulta muito claro da petição inicial, os Autores alegam que após a morte do seu pai e da Senhora I, passaram a exercer EM NOME PRÓPRIO a condição de proprietários do domínio útil do prédio em questão. Cfr. art. 43º e 44º da petição inicial)
XXXIII. E que nessa qualidade praticaram actos materiais de posse que acabaram por demonstrar há posse boa para usucapir, (cfr. arts. 45º a 55º da petição inicial),
XXXIV. E que essa posse é pública e pacífica, mostrando-se preenchidos todos os pressupostos para aquisição do prédio por via de usucapião.
XXXV. De acordo com a matéria de facto alegada e provada, os Autores nunca actuaram com animus de detentores mas sim com animus de possuidores sobre o prédio.
XXXVI. Tendo em conta a factualidade provada - em especial que os Autores sempre agiram na íntima convicção de que fruíam o prédio porque o mesmo lhes pertencia - não restam dúvidas de que a prática reiterada dos actos materiais exigida pela alínea a) do artigo 1187º se mostra preenchida, pelo menos, desde 1971, data a partir da qual se provou que os Autores solicitaram a colocação de um toldo no imóvel e procederam ao pagamento da taxa devida, procedendo ao pagamento das taxas das despesas inerentes ao consumo de água e electricidade do imóvel, tudo na íntima convicção de que fruíam o referido prédio porque o mesmo lhe pertencia conforme resulta da resposta ao quesito 17º da base instrutória.
XXXVII. Desnecessário se torna apelar ao instituto da sucessão na posse quando se alegou e provou que os Recorrentes actuam, EM NOME PRÓPRIO, sobre o prédio em discussão nos autos há mais de 20 anos.
XXXVIII. Da factualidade alegada e apurada resultou claro que os Autores usam o prédio a que se reportam os autos como sendo coisa sua, praticando sobre o mesmo, em nome próprio, diversos actos que em nada diferem daqueles que seriam praticados por um proprietário, o que é feito à vista de todos e sem oposição de ninguém e sempre na convicção da coisa ser sua.
XXXIX. Ao actuarem da forma descrita e provada, os autores actuaram com corpus e com animus de proprietários e não apenas de herdeiro.
XL. Durando a sua posse há muito mais de 20 anos - o que ultrapassa o período máximo necessário que a lei prevê para que os seus efeitos possam operar, e sendo a mesma exercida de forma pública, pacifica, contínua e de boa-fé é susceptível de lhes ser atribuído um título originário de aquisição - a usucapião.
XLI. A decisão recorrida deverá ser revogada por errada interpretação e aplicação do preceituado nos artigos 1175º, 1179º, 1187º, 1190º e 1212º do Código Civil e em consequência substituída por outra que dando provimento ao peticionado declare os Autores, para todos os efeitos legais, nomeadamente para a inscrição da titularidade junto da competente Conservatória do Registo Predial de Macau, como titulares do domínio útil sobre o prédio com entrada pelo nº 21 da Rua dos XXXXXX, Taipa, anteriormente com o nº 16 da mesma Rua, descrito na encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº **** a fls 152V do Livro B21 e omisso na matriz predial urbana, por o terem adquirido por usucapião.
XLII. O Tribunal a quo ao decidir como decidiu proferiu uma verdadeira decisão surpresa!
XLIII. Salvo o devido respeito, não poderia o Tribunal a quo decidir como decidiu sem antes dar aos Recorrentes a oportunidade para sobre se pronunciarem sobre essa matéria ou mesmo não sem antes convidá-los a aperfeiçoar o seu articulado.
XLIV. Em face do entendimento anteriormente preconizado na decisão - ou seja, de que a I era também herdeira do pai dos Autores - o Tribunal veio na fase final de todo o processo entender que o articulado inicial dos Autores padece de insuficiências
XLV. O Tribunal a quo, não obstante entender que a petição inicial dos Autores continha, nesta matéria, imprecisões, não conferiu aos Recorrentes a possibilidade de suprir essas aludidas insuficiências.
XLVI. A decisão ora posta em crise foi uma verdadeira decisão surpresa, o que não se aceita à luz dos princípios processuais consagrados.
XLVII. A proibição de decisão surpresa é um corolário do princípio do contraditório previsto no nº 3 do artigo 3º do CPC e que se traduz em facultar às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre todas as questões, de direito ou de facto, que em cada momento se mostram em discussão nos autos, o que inclui, necessariamente, aquelas questões que o juiz pondere decidir com base em fundamentos que não tenham sido previamente considerado pelas partes.
XLVIII. Na génese da proibição da decisão surpresa está essencialmente em causa (i) evitar que seja tomada qualquer decisão com fundamento que as partes não tenham sequer equacionado como solução ou que (ii) tenha sido invocado por uma das partes e a outra não tenha podido exercer o seu direito de contraditório.
XLIX. Em momento algum dos presentes autos se suscitou a aplicação do Código Civil Chinês de 1930 - entretanto revogado - para daí retirar a qualidade de herdeira de I!
L. Antes de proferir a decisão, o Tribunal deveria ter concedido oportunidade aos ora Recorrentes de se pronunciarem sobre a questão suscitada e, se fosse caso disso, a aperfeiçoar o seu articulado.
LI. O Tribunal a quo não tomou nenhum dos aludidos caminhos proferindo uma decisão surpresa em violação do princípio do contraditório e da cooperação e do seu poder-dever de convidar os Recorrentes a se pronunciarem sobre questões nunca antes suscitadas e se fosse caso disso a vir aos autos suprir eventuais insuficiências da sua alegação inicial.
LII. No caso concreto, os factos alegados pelos Recorrentes são, no seu conjunto, suficientes à procedência das suas pretensões, e nessa medida permitirão que outros factos, não alegados mas também essenciais a essa procedência, sejam adquiridos por complementaridade, através do mecanismo processual previsto no art. 5º, n.º 3 do CPC.
LIII. A petição dos Autores é clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir. Porém, se há um entendimento de que foram omitidos factos que a decisão recorrida julgou relevantes e/ou essenciais para o reconhecimento do seu direito, deveria o Tribunal a quo, nessas circunstâncias, ter determinado que os Autores aperfeiçoassem a petição inicial, suprindo as omissões detectadas, sendo que só depois é que poderia extrair as consequências de tal omissão caso as insuficiências não fossem convenientemente supridas.
LIV. Só assim se garantiria um processo justo e equitativo.
LV. O processo civil não se compadece com espartilhos formais e dessa forma, afigura-se que ocorreu in casu, efectivamente, “a omissão de um acto (...) que a lei” prescreve, a qual pode “influir no exame ou na decisão da causa”, o mesmo é dizer que, face ao artigo 147.º n.º 1 do CPC, estamos na presença de uma nulidade processual, e que desde já se invoca.
LVI. E dessa forma, impõe-se a anulação da decisão recorrida, devendo o Tribunal a quo convidar os Autores a suprir as “insuficiências” de alegação que entende existir.
Nestes termos, e nos mais em Direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente recurso nos termos supra explanados, fazendo V. Exas. dessa forma inteira e sã
JUSTIÇA!
Notificado o Ministério Público, que representa os Réus incertos nos termos do disposto no artº 51º do CPC, não respondeu ao recurso.
II
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
Não há questões que temos de conhecer ex oficio.
De acordo com o vertido nas conclusões tecidas na petição do recurso, os Autores, ora recorrentes, trouxeram a esta instância de recurso as seguintes questões:
1. Da violação do caso julgado formal;
2. Da lei de sucessão aplicável no momento do falecimento do pai dos Autores;
3. Da nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão;
4. Do erro na interpretação e na aplicação do preceituado nos artºs 1175º, 1179º, 1187º, 1190º e 1212º do Código Civil; e
5. Da nulidade processual por omissão de convite a aperfeiçoamento de articulado e da violação dos princípios do dispositivo, do contraditório e da cooperação.
Identificadas as questões que constituem o objecto da nossa apreciação, passemos então a debruçar-nos sobre elas.
1. Da violação do caso julgado formal
No princípio da sentença recorrida, o Tribunal a quo julgou ilegítimos os interessados incertos, absolvendo-os da instância, nos termos seguintes:
Da legitimidade dos interessados incertos
Segundo os factos da p.i., os Autores fundamentaram o seu direito no exercício de poder de facto sobre o prédio com o n°21 da Rua dos XXXXXX na Taipa, que se encontra registado a favor do F ou F1, pretendem a aquisição do domínio útil sobre o prédio contra os herdeiro desconhecidos de F ou F1 e os interessados incertos.
Prevê-se o art°58° do C.P.C. que “Na falta de indicação da lei em contrário, possuem legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor.
Assim, conforme os factos delineados pelos Autores, a relação jurídica controvertida deverá ser estabelecida entre os herdeiros desconhecidos do F ou F1, titular da propriedade.
Ademais, dos factos alegados pelos Autores, não se relatam quaisquer factos que configuram os interessados incertos como sujeitos da relação material controvertida, não se vê a razão donde justifica a legitimidade dos últimos.
Daí se resulta que falta a legitimidade passiva desse réu, pelo que esse Réu deverá ser absolvido da presente instância.
Vieram agora os Réus, ora recorrentes, questionar a legalidade desse segmento decisório, com fundamento na violação do caso julgado formal e do disposto no artº 580º do CPC.
Na óptica dos recorrentes, tendo o Tribunal a quo julgado no despacho saneador que as partes …… são legítimas, e tendo o Ministério Público apresentado contestação em representação dos interessados incertos sem nunca suscitar qualquer questão sobre a ilegitimidade dos incertos, a questão da legitimidade dos interessados incertos já foi decidida e não poderia ter sido de novo apreciada nos mesmos autos, sob pena de violação do caso julgado formal e do disposto no artº 580º do CPC que impõe soluções a casos julgados contraditórios da seguinte maneira:
1. Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que transitou em julgado em primeiro lugar.
2. É aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual.
Compulsados os autos, nomeadamente as fls. 588, verifica-se que, não tendo sido suscitada a excepção da ilegitimidade de partes, o Tribunal a quo não fez no saneador mais do que uma apreciação tabelar sobre os pressupostos processuais, nomeadamente quanto à legitimidade das partes.
Ora, reza o artº 429º do CPC:
1. Realizada a tentativa de conciliação ou, se ela não tiver tido lugar, logo que findem os articulados ou tenha decorrido o prazo a que se referem os n.os 2 e 3 do artigo 427.º, o juiz profere no prazo de 20 dias, e sendo caso disso, despacho destinado a:
a) Conhecer das excepções dilatórias e nulidades processuais que tenham sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente;
b) Conhecer imediatamente do mérito da causa,……
2. No caso previsto na alínea a) do número anterior, o despacho constitui, logo que transite, caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas.
3. ……
4. ……
Da interpretação a contrario do nº 1-a) e do nº 2 desse artigo cuja epígrafe é Despacho Saneador, resulta que, não tendo sido concretamente decidida no saneador a questão da legitimidade das partes, a apreciação meramente tabelar nele feita nunca forma caso julgado e portanto, não tem a dignidade de impedir a posterior apreciação da legitimidade das partes pelo Tribunal, ex ofício ou a requerimento de qualquer das partes.
Quanto à invocação da violação do disposto no artº 580º do CPC, também não têm razão os recorrentes, pois o saneador tabelar carece da dignidade para ser considerada como uma verdadeira “decisão”, o que obsta à existência das duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, pressupostos da aplicação das normas do invocado artº 580º do CPC.
2. Da lei de sucessão aplicável no momento do falecimento do pai dos Autores
A propósito da sucessão da posse exercida pelo pai dos Autores, o Tribunal a quo entende ser aplicável o Código Civil Chinês promulgado em 1930, por remissão expressa operada pelo artº 2º do Decreto nº 36987 de 14AGO1948.
Na óptica do Tribunal a quo, face ao regime de sucessão mortis causa estabelecido naquele código chinês, a Senhora I, cônjuge sobrevivo do pai dos Autores, sucedeu, juntamente com os ora Autores, na posse do domínio útil do prédio em causa.
A fim de afastar a Senhora I da sucessão legitimária na posse do domínio útil do prédio em causa, os recorrentes vieram a defender a não aplicabilidade do Código Civil Chinês promulgado em 1930 à sucessão do pai dos Autores, falecido em 1959, por este Código ter sido entretanto revogado pelas autoridades da RPC em 1949 e, em vez desse código e por vacatio legis nesta matéria entretanto vivida na China, ser subsidiariamente aplicável o Código de Seabra, nos termos do qual, o cônjuge sobrevivo integrava tão só a 4ª classe dos sucessores legítimos, após os descendentes (1ª classe), os ascendentes (2ª classe) e os irmãos e seus descendentes (3ª classe).
Os recorrentes apoiaram a sua tese no facto objectivo de o Código Civil Chinês promulgado em 1930 ter sido entretanto revogado na RPC em 1949, facto esse que, na óptica dos recorrentes, determinou necessariamente a não aplicação desse Código em Macau em relação a chineses aqui residentes e a aplicação subsidiária do Código de Seabra.
Mas não têm razão os recorrentes.
Ora, independentemente da veracidade dos factos alegados pelos recorrentes, nomeadamente o facto de o Código Civil Chinês promulgado em 1930 ter sido entretanto revogado em 1949, o certo é que a alegada revogação desse Código na jurisdição da RPC não acarretou automaticamente a não aplicação desse Código em Macau.
O Decreto 36987 de 24JUL1948 dispõe que sujeita às leis civis portuguesas e chinesas, respectivamente, os indivíduos naturais de Macau que forem portugueses de nacionalidade e os chineses naturais da mesma colónia que não forem portugueses de nacionalidade, bem como os indivíduos de nacionalidade chinesa.
Essa norma do Decreto 36987, das duas uma, ou é tida como regra de conflito determinativa da lei aplicável aos chineses na matéria civil, ou é considerada como a vontade expressa das autoridades portuguesas para acolher o conteúdo normativo do regime da sucessões consagrado no Livro da Família e Sucessões do Código Civil Chinês, promulgado em 26DEZ1930 e vigente na altura da promulgação do Decreto 36987 para ser aplicado a um determinado grupo étnico residente na então colónia sob a administração portuguesa.
Em qualquer das hipóteses, por razões que passamos a expor infra, Código de Seabra não pode ser a lei aplicável à sucessão do pai dos Autores.
Na 1ª hipótese, estamos perante uma regra de conflito.
Como se sabe, o direito internacional privado, enquanto direito de conflitos, não tem em vista regular directamente as relações privadas internacionais, mas sim se limita a indicar as ordens jurídicas estaduais que hão-de reger essas relações.
Para o efeito, é através da regra de conflito que se indica qual é a ordem jurídica estadual onde o intérprete-aplicador de direito deve ir encontrar a norma aplicável ao caso concreto.
Na óptica dos recorrentes, o Código Civil Chinês de 1930 que a norma de conflito constante do Decreto 36987 de 1948 indica como lei aplicável já foi entretanto revogado pelas autoridades da RPC em 1949, portanto este código não é aplicável à sucessão do pai dos Autores, e dada a vacatio legis nesta matéria vivida na ordem jurídica chinesa, deve ser subsidiariamente aplicável o Código de Seabra, nos termos do qual a Senhora I não é herdeira legitimária.
Ora, se a norma do Decreto 36987 de 1948 é tida por regra de conflito, duas soluções são defensáveis.
Todavia, nenhuma das soluções, que passamos a defender infra, joga a favor da tese dos recorrentes que defende a aplicação in casu do Código de Seabra.
Na primeira solução, não obstante a alegada revogação do Código Civil Chinês de 1930 em 1949, o certo é que foi promulgada em 1950 a lei matrimonial中華人民共和國婚姻法(1950年), por órgão competente da República Popular da China, que vigorava até à sua revogação pela lei matrimonial de 1980 - vide http://www.npc.gov.cn/wxzl/wxzl/2001-05/30/content_136774.htm
Nos termos do disposto no artº 12º desta lei, 夫妻有互相繼承遺產的權利, ou seja, o cônjuge tem direito de suceder reciprocamente na herança deixada pelo outro cônjuge.
Ou seja, a matéria da sucessão do cônjuge estava regulada na ordem jurídica estadual que a norma de conflito constante do Decreto 36987 de 1948 indica.
Não havendo qualquer vacatio legis na ordem jurídica estadual que indicou como aplicável a norma de conflito constante do Decreto 36987 de 1948, não é de aplicar subsidiariamente o Código de Seabra.
Na segunda solução, é algo duvidosa a não aplicação ao caso sub judice do Código Civil Chinês de 1930 determinada pela cessação da vigência do mesmo no Continente Chinês, quer pela sua alegada revogação em 1949 quer pela promulgação da acima referida Lei Matrimonial em 1950.
Pois, como se sabe, a regra de conflito de um país só indica, através da regra de conflitos, uma ordem jurídica de um Estado estrangeiro que tenha reconhecido.
Não obstante a implantação da República Popular da China em 1949, o certo é que Portugal só veio a reconhecer o Governo da República Popular da China em 06JAN1975.
Enquanto não tiver reconhecido o Governo da República Popular da China, a lei civil chinesa a que se alude a regra de conflito consagrada no Decreto 36987 pelas autoridades portuguesas para ser aplicada aos chineses na então colónia sob a sua administração não pode deixar de continuar a ser o referido Código Civil Chinês de 1930.
Pois se não tivesse reconhecido a realidade da substituição do Governo da República da China pelo Governo da República Popular da China no exercício da soberania da China, as autoridades portuguesas naturalmente não iriam reconhecer ou não deveriam ter reconhecido a validade dos actos legislativos emanados pelos órgãos desse último governo como lei chinesa aplicável e a sua legitimidade de praticar actos da soberania na China, nomeadamente o de fazer cessar a vigência das leis em vigor produzidas por órgãos competentes daquele Governo que não tenha deixado de reconhecer.
Assim, no caso sub judice, as autoridades portuguesas da então colónia de Macau deviam manter-se indiferentes à revogação, em 1949, por órgão do Governo, lato sensu, da República Popular da China, do Código Civil Chinês de 1930 no continente chinês.
Portanto, enquanto não tiver reconhecido o Governo da República Popular da China, as autoridades portuguesas não deixaram de indicar a ordem jurídica da República da China com a lei aplicável aos chineses residentes na sua então colónia.
Tendo o pai dos Autores falecido em 1959, muito antes do reconhecimento do Governo da República Popular da China em 1975, o Código Civil Chinês de 1930 deveria ter sido considerado a lei civil aplicável.
Ora, em qualquer das soluções, ambas defensáveis, temos sempre uma lei chinesa aplicável, ou a Lei Matrimonial de 1950 ou o Código Civil Chinês de 1930, e em face ao disposto em ambos os diplomas, o cônjuge sobrevivo, a Senhora I, é sempre considerado herdeiro legitimário.
Logo, cai por terra toda a tese dos recorrentes, simplesmente apoiada no alegado facto objectivo da revogação do Código Civil Chinês de 1930 em 1949 e na consequente aplicação subsidiária do Código de Seabra.
Já na segunda hipótese, também independentemente da veracidade dos factos alegados pelos recorrentes, nomeadamente o facto de o Código Civil Chinês promulgado em 1930 ter sido entretanto revogado em 1949, o certo é que a alegada revogação desse Código na jurisdição da RPC não acarretou automaticamente a cessação da vigência desse Código em Macau, uma vez que a aplicação deste Código de 1930 aos chineses residentes em Macau se deveu ao acolhimento do regime da sucessão nele consagrado pela vontade expressa das autoridades portuguesas através da remissão feita pelo Decreto nº 36987 de 14AGO1948.
Tendo sido querido pelas autoridades portuguesas para ser aplicado a um determinado grupo étnico residente na então colónia sob a administração portuguesa, o conteúdo normativo desse Código de 1930 permanecia vigente mesmo que tivesse deixado de estar em vigor na RPC.
Como um exemplo notório em paralelo podemos citar o Código da Dinastia Qing (大清律例), já revogado com a implantação da República da China em 1911, mas uma parte normativa reguladora da matéria matrimonial, acolhida pelas então autoridades britânicas de Hong Kong, mantinha-se em vigor em Hong Kong em relação a chineses ali residentes até 1971, altura em que veio a ser expressamente revogada por órgãos competentes de Hong Kong.
No fundo, o Decreto nº 36987 de 14AGO1948 não fez mais do que copiar o Código Civil Chinês de 1930 e fê-lo parte integrante da lei interna de Macau.
Assim sendo, a vida do conteúdo normativo “copiado” e depois feito “integrado” no ordenamento jurídico interno de Macau não fica condicionada pela continuação da vigência do Código de 1930 na RPC após 1949.
Em qualquer das hipóteses, ou pela Lei Matrimonial de 1950 promulgada pelo órgão competente da República Popular da China, ou pelo Código Civil Chinês de 1930, ou pelo conteúdo normativo desse Código feito integrado pelas autoridades portuguesas na ordem jurídica interna da sua ex-colónia, a Senhora I é sempre a herdeira legitimária do pai dos Autores.
Improcede essa parte do recurso.
3. Da nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão
Em síntese, para os recorrentes, os fundamentos do Acórdão da decisão de facto, onde se conclui pela existência tanto do corpus como do animus dos Autores e a decisão recorrida onde se afirma que há-de considerar que existe animus possidendi por parte dos Autores, estão em manifesta contradição com o não reconhecimento da posse exercida pelos Autores sobre o direito real do prédio em causa, conducente à improcedência do pedido dos Autores.
Na fundamentação da decisão de matéria de facto, diz o Colectivo que as provas produzidas levaram o Tribunal a formar uma convicção positiva quanto à matéria fáctica tanto “corpus” com “animus” do prédio pelo pai dos Autores e pelos Autores. – vide as fls. 633v dos p. autos.
Ao passo que na sentença recorrida, a Exmª Presidente do Colectivo fundamentou a improcedência do pedido dos Autores nos termos seguintes:
Com a morte do pai dos Autores, a posse exercida pelo pai deles passa para os seus sucessores desde o momento da morte, sem necessidade da apreensão material da coisa.
Na perspectiva dos Autores, a posse passou directamente para eles na qualidade dos herdeiros legítimos do seu pai.
Essa afirmação só é verdadeira se somente os Autores e mais ninguém têm a qualidade dos herdeiros.
Para responder a essa pergunta, urge aquilatar quem eram os herdeiros do pai dos Autores, de acordo com a lei de sucessão aplicável.
……
……na altura da sucessão, eram os seus herdeiros, para além dos Autores, filhos deles, mais a sua cônjuge sobreviva, a I.
……
Mesmo sem contar a meação do cônjuge, conforme o disposto do n°1 do art°1144° do mesmo Código, as partes da sucessão da cônjuge sobreviva e dos filhos são divididas em partes iguais.
Por isso, a sucessão da posse ocorreu em relação a todos os herdeiros legítimos do pai dos Autores, a posse continua nos seus sucessores no conjunto.
Assim, a continuação do exercício da posse pelos Autores, na qualidade dos herdeiros, não é de considerar como posse própria mas posse em conjunto em benefício a todos os herdeiros, incluindo a I.
Até à partilha, o prédio é o bem deixado pelo pai dos Autores, que se mantém em situação de comunhão. A essa comunhão é aplicável subsidiariamente o regime de compropriedade.
Dispõe-se o art°1403° do C.C. 66, que “1. Existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa. 2. Os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes; as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta da indicação em contrário do título constitutivo.”
Por outro lado, preceitua-se o art°1406° do C.C. 66 , “1. Na falta de acordo sobre uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito. 2. O uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título.”
Como a posse do pai, com a sua morte, transferiu-se, no conjunto, para os Autores e a I, qualquer deles podia usar a totalidade do bem. No entanto, o uso da coisa comum pelo qualquer dos herdeiros não constitui posse exclusiva sobre a totalidade do bem.
Nesse sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07/04/2011, “Sendo o comproprietário possuidor em nome alheio, relativamente à parte da coisa que excede a sua quota, não pode adquirir, por usucapião, sem inverter o título de posse, que tem subjacente a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse, em nome próprio. A inversão por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía impões que o primeiro torne, directamente, conhecida da pessoa em cujo nome possuía, a sua intenção de actuar como titular do direito, sendo uma oposição categórica, traduzida em actos positivos, materiais ou jurídicos, mas inequívocos.”
Não sendo exclusivos os direitos dos Autores sobre a herança, a posse que os Autores têm exercido sobre a herança por uso ou fruição dele, desde o momento da morte do seu pai, é meramente posse precária, por tolerância do outro herdeiro, a não ser haver inversão do título da posse.
Nos autos, não foram demonstrados factos que sejam susceptíveis de integração da inversão do título da posse, através dos actos inequívocos de oposição, enquanto herdeiros da posse, contra a I, nem que foram alegados quaisquer factos que permitiram saber que houve alteração do intuito subjectivo de que a posse dos Autores passa a ser exclusiva, particularmente após a morte do I em 1969, pois, se a I deixasse herdeiros, eles também tem direito a suceder à sua parte.
Como a I era mulher do pai dos Autores e não era mãe dos Autores, a quota-parte do direito pertencente à I não se transferiu automaticamente para a esfera jurídica dos Autores, carece de haver novos factos para que se opere a modificação do elemento subjectivo.
Assim, não se pode considerar, mesmo com a prova do exercício dos actos materiais pelos Autores, que estes exerciam e exercem posse exclusiva sobre a totalidade do bem porque não houve oposição inequívoca por parte deles contra a outra herdeira ou os seus herdeiros que tinha direito na sucessão do imóvel deixado pelo G.
Dest’arte, sendo a posse dos Autores precária e não exclusiva, e na falta de alegação dos factos da inversão do título, essa posse não poderá conduzir a usucapião do direito real por parte dos Autores em relação ao prédio em apreço.
Nestes termos, julga-se improcedente o pedido dos Autores.
Sintetizando o que foi dito na fundamentação da sentença recorrida, verifica-se ser muito claro e coerente o raciocínio nela exposto, que é seguinte:
* O pai dos Autores adquiriu a posse;
* Com a morte do pai dos Autores, a posse passou a ser exercida pelos herdeiros, incluindo os Autores, sem necessidade da apreensão material da coisa;
* Não sendo os únicos herdeiros do seu pai, os Autores, limitaram-se a suceder uma certa quota-parte da posse adquirida pelo seu pai e transmitida mortis causa aos seus herdeiros, quais são os Autores e a Senhora I, cônjuge sobrevivo do seu pai;
* Estes não adquiriram ex novo a posse sobre a totalidade do domínio útil do prédio, mas sim somente sucederam uma certa quota-parte de um comunhão hereditário indiviso;
* Os Autores não são os únicos co-possuidores;
* Ao longo dos anos após a morte do pai dos Autores, não houve factos demonstrativos de que os Autores chegaram a inverter o título da posse contra a Senhora I, passando a exercer a posse como se fossem únicos e exclusivos possuidores; e
* Não cobrindo a totalidade do bem que pretenderam adquirir por usucapião, a posse que têm os Autores não poderá conduzir ao reconhecimento dos Autores com únicos e exclusivos titulares do direito real na sua totalidade.
Obviamente, a fundamentação nestes termos redigida não está em contradição com a decisão de improcedência da acção.
Improcede assim a arguição da nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão.
4. Do erro na interpretação e na aplicação do preceituado nos artºs 1175º, 1179º, 1187º, 1190º e 1212º do Código Civil
Vieram os recorrentes defender que conforme alegaram na petição inicial, após a morte do seu pai e da Senhora I, eles passaram a exercer em nome próprio a condição de proprietários do domínio útil do prédio em questão e nessa qualidade praticaram actos materiais de posse que acabaram por demonstrar há posse boa para usucapir. Portanto, ao não interpretar a matéria de facto provada no sentido de que os Autores têm actuado como possuidores e não mero detentores, a sentença fez uma erra interpretação e aplicação do disposto nos artºs 1175º, 1179º, 1187º, 1190º e 1212º do Código Civil.
Não têm razão os recorrentes.
Foi dito na sentença recorrida que, sendo apenas alguns e não todos os possuidores do bem, os Autores são os únicos e exclusivos possuidores e se limitam a exercer a posse precária sobre a quota-parte adquirida mortis causa e possuída pela co-possuidora I e com a tolerância dessa, a posse, não cobrindo a totalidade do bem, reconhecida aos Autores, não lhes permite a adquirir por via de usucapião a totalidade do domínio útil do prédio em causa.
Não tendo exercido a posse sobre a totalidade do bem, naturalmente não podem os Autores adquirir, com fundamento nessa posse, a totalidade do direito real sobre o mesmo bem, por via de usucapião e ao abrigo do disposto no artº 1212º do CC.
Assim, bem andou o Tribunal a quo e nada há de censurar esta parte da sentença recorrida.
Improcede o assacado erro na interpretação e na aplicação dos normativos citados.
5. Da nulidade processual por omissão de convite a aperfeiçoamento de articulado e da violação dos princípios do dispositivo, do contraditório e da cooperação
Final e subsidiariamente, vieram os recorrentes dizer que ao concluir pela aquisição da posse pelos Autores tão só por via hereditária e não pelos seus actos próprios dos Autores e fundamentar a improcedência da acção na falta dos factos demonstrativos da inversão do título da posse por parte dos Autores contra a Senhora I, cônjuge do seu pai, o Tribunal cometeu a nulidade processual por não ter observado as normas que prescrevem o convite para o aperfeiçoamento de articulado e proferiu uma decisão surpresa, violadora dos princípios do dispositivo, do contraditório e da cooperação.
Ora, os Autores defenderam na petição inicial que os factos por eles alegados, se provados, seriam suficientes para conduzir à procedência da acção.
De acordo com a forma como foi configurada a causa de pedir, os Autores não pretenderam fundamentar o seu pedido de aquisição por usucapião na posse adquirida de forma originária sobre domínio útil do prédio em causa, mas sim apenas na posse adquirida por via hereditária, ou seja, derivada.
Pois alegaram na petição inicial que o prédio sub judice encontra-se há mais de 70 anos na posse da família dos Autores, ……tal prédio chegou à posse dos Autores por sucessão na posse ocorrida pela morte do seu pai…… Após a morte do seu pai …… os Autores sucederam-lhe na posse do domínio útil do referido – vide os artºs 29º, 30º e 43º da p. i..
Não obstante não levado à base instrutória por, cremos nós, se tratar da matéria de direito, insusceptível da prova, o assim alegado já habilita o Tribunal a quo a concluir seguramente que a posse invocada é a posse adquirida por via hereditária, isto é, posse da aquisição derivada.
Produzida as provas testemunhais e examinadas as documentais, foi fixada a matéria de facto assente.
Os recorrentes não questionaram a bondade da decisão de facto.
De acordo com o sentido em que foi interpretada a matéria de facto assente, o Tribunal a quo decidiu julgar improcedente o pedido dos Autores da aquisição da totalidade do domínio útil do prédio em causa, por não terem sido comprovados factos demonstrativos da alegada posse, isto é, uma posse, adquirida por via hereditária, sobre a totalidade do direito real que pretenderam adquirir por via de usucapião.
E o que ficou provado apenas tem a virtualidade de levar o Tribunal a quo a concluir pela posse, de aquisição derivada, dos Autores sobre uma determinada quota-parte do direito real, uma vez que, para além dos Autores, sucedeu ao pai destes na posse também a Senhora I, enquanto cônjuge sobrevivo.
Ora, como se sabe, ao autor cabe formular a pretensão de tutela jurisdicional que visa obter e expor as razões de facto e de direito em que a fundamenta (artº 389º/1-c) do CPC) e sobre o réu recai o ónus de impugnação específica dos factos articulados na petição pelo autor (artº 410º/1 do CPC) .
Na matéria de facto, o juiz tem de cingir-se às alegações das partes, ao passo que na indagação, interpretação e aplicação do direito o tribunal age livremente (artº 567º do CPC).
In casu, não temos dúvidas de que a Exmª Presidente do Colectivo, autora da sentença recorrida, se cingiu à matéria alegada na petição e dada provada pelo Colectivo, pautando sempre as suas considerações de direito pela invocada posse de aquisição derivada pelos Autores e pela pretensão destes de aquisição da posse por via hereditária, e tomando em conta factos alegados pelos próprios autores, nomeadamente os demonstrativos da sucessão na posse do seu pai e o facto de o seu pai falecer em estado de casado com a I.
Portanto, o Tribunal a quo limita-se a proceder à qualificação jurídica dos factos trazidos aos autos pelos Autores e averiguar se a situação jurídica qualificada é integrável na previsão da norma que permite a aquisição do direito real do prédio mediante a usucapião.
Nada é de surpresa.
Não se pode olvidar que foram os próprios Autores, ora recorrentes, quem alegaram na petição inicial que o seu pai era casado com a I – vide os artºs 17º, 19º e 21º da p. i..
Ao alegar que o seu pai faleceu no estado de casado com a Senhora I, pessoa diversa da sua mãe, os Autores não deveriam contar com as consequências e efeitos jurídicos que, face à lei poderiam decorrer desse facto alegado? nomeadamente os efeitos jurídicos constitutivos da qualidade de sucessor legitimário da Senhora I quanto aos bens deixados pelo seu pai?
E foi justamente com base no estado de casado do pai dos Autores com a I no momento do seu falecimento, o Tribunal entende que sucederam na posse não só os Autores, como também a Senhora I.
Devendo esta solução jurídica ter sido contada pelos Autores ao alegarem como alegaram que o pai faleceu no estado de casado com I, eles não podem dizer que a fundamentação de facto e de direito contida na sentença se exorbita do âmbito do conhecimento delimitado pelas questões por eles colocadas e pela providência jurisdicional por eles pretendida com a instauração da presente acção, e naturalmente também não podem acusar o Tribunal de ter proferido uma decisão surpresa e de ter violado os princípios do dispositivo, do contraditório e da cooperação.
Quanto ao convite para o aperfeiçoamento, é de salientar que no caso sub judice, os Autores falharam na questão de mérito, e não na questão formal, ou seja, a improcedência da acção deve-se à falta das razões de facto e de direito, e não na simples falta da alegação das razões de facto.
Não se tratando de faltas ou omissões meramente formais, não há lugar a tal convite, concebido pelo legislador para suprir insuficiências formais.
Quanto à questão da inversão do título de posse, entendemos que a boa decisão da causa não pode deixar de passar pela abordagem desta questão.
Ora, ao concluir que, após a morte do pai dos Autores, lhe sucederam por via hereditária na posse do domínio útil do prédio, não só os Autores, como também a Senhora I, cônjuge sobrevivo do seu pai, o Tribunal a quo não pode deixar de analisar e averiguar em que qualidade, após a morte do seu pai, os Autores passaram a praticar os comprovados actos materiais sobre o bem ao longo dos anos, ou seja, enquanto alguns dos beneficiários de um comunhão hereditário ou a partir da certa altura, passaram a adquirir originariamente a posse sobre a totalidade do domínio útil mediante a inversão do título de posse contra a possuidora, a Senhora I, ou eventualmente os herdeiros desta.
Dito por outras palavras, o Tribunal a quo quis dizer que, enquanto alguns dos possuidores, e não todos os possuidores, se não tivessem demonstrado o afastamento da Senhora I,ou dos seus herdeiros legitimários, da titularidade de uma quota parte da posse sobre o domínio útil do prédio, integrada no comunhão hereditário indiviso deixado pelo seu pai, os Autores serão apenas alguns dos possuidores, e não todos os possuidores, o que os não permite adquirir a totalidade do domínio útil sobre o prédio por via de usucapião, dada a existência de um outro possuidor, que é justamente a Senhora I, ou eventualmente os seus herdeiros.
Não se trata de uma questão nova, mas sim uma questão que os Autores deveriam ter prevenido ao alegarem que o prédio sub judice encontra-se há mais de 70 anos na posse da família dos Autores, ……tal prédio chegou à posse dos Autores por sucessão na posse ocorrida pela morte do seu pai…… Após a morte do seu pai …… os Autores sucederam-lhe na posse do domínio útil do referido e que o seu pai faleceu no estado de casado com a Senhora I.
Improcede também esta parte do recurso.
Em conclusão:
1. Não tendo sido concretamente decidida no saneador a questão da legitimidade das partes, a apreciação meramente tabelar nele feita nunca forma caso julgado e portanto, não tem a dignidade de impedir a posterior apreciação da legitimidade das partes pelo Tribunal, ex ofício ou a requerimento de qualquer das partes.
2. A fundamentação onde se diz que não cobrindo a posse que têm os Autores a totalidade do bem cujo direito real que pretenderam adquirir por usucapião, não está em contradição com a decisão que não reconhece aos Autores como únicos titulares da totalidade do direito real em causa.
3. Não tendo exercido a posse sobre a totalidade do bem, os Autores não podem adquirir, com fundamento nessa posse, a totalidade do direito real sobre o mesmo bem, por via de usucapião e ao abrigo do disposto no artº 1212º do CC.
4. Ora, como se sabe, ao autor cabe formular a pretensão de tutela jurisdicional que visa obter e expor as razões de facto e de direito em que a fundamenta (artº 389º/1-c) do CPC) e sobre o réu recai o ónus de impugnação específica dos factos articulados na petição pelo autor (artº 410º/1 do CPC) .
5. Na matéria de facto, o juiz tem de cingir-se às alegações das partes, ao passo que na indagação, interpretação e aplicação do direito o tribunal age livremente (artº 567º do CPC).
Tudo visto, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar provimento ao recurso interposto pelos Autores, mantendo na íntegra a sentença recorrida.
Custas do recurso a cargo dos recorrentes.
Registe e notifique.
RAEM, 29ABR2020
Relator Lai Kin Hong
Primeiro Juiz-Adjunto Fong Man Chong
(Subscrevo a decisão apenas com fundamento na aplicação de Lei Matrimonial de 1950 de RPC, uma vez que o seu art. 12º reconhecia que o cônjuge era herdeiro, e como tal a esposa do pai dos Autores tinha quota-parte no imóvel, objecto de usucapião).
Segundo Juiz-Adjunto Ho Wai Neng
(voto a decisão com a mesma declaração supra).
1 Artigo 1017° do C.C. da R.C. de 1930
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Ac. 559/2019-50