Processo nº 187/2020
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 07 de Maio de 2020
ASSUNTO:
- Nulidade da sentença
- Comproprietário da fracção
- Posse
SUMÁRIO:
- Só existe nulidade da sentença por oposição entre fundamentos e decisão quando os fundamentos invocados pelo tribunal conduziriam logicamente ao resultado oposto àquele que foi decidido.
- Se o Autor pediu que fosse condenada a Ré a restituir-lhe a fracção autónoma livre de pessoas e bens o Tribunal a quo decidiu “ordenar a Ré entregar as chaves da fracção autónoma ao Autor e a não impedir o acesso deste à mesma”, não se verifica a nulidade da sentença por excesso da pronúncia, visto que se trata duma decisão que está dentro do âmbito do pedido formulado pelo Autor (a restituição da fracção é mais abrangente, implicando necessariamente a entrega de chaves e a não proibição de acesso à fracção) e que está em conformidade com o direito aplicável vigente.
- O uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título (cfr. nº 2 do artº 1302º do C.C.).
O Relator,
Ho Wai Neng
Processo nº 187/2020
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 07 de Maio de 2020
Recorrente: A (Ré)
Recorrido: B (Autor)
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – Relatório
Por sentença de 19/09/2019, julgou-se procedente a acção e improcedente a reconvenção, em consequência, decidiu:
1. condenar a Ré, A, a reconhecer o Autor, B, como comproprietário da fracção autónoma designada por “A3”, do 3º andar “A” do prédio sito em Macau na Rua Nova da Areia Preta n.º 162 e na Estrada Marginal da Areia Preta n.ºs 46 a 74, Edf. Kin Wa, Bloco XIV, descrito na Conservatória do Registo Predial da R.A.E.M., sob o nº 22464-XIV a fls. 34 do Livro B89M, na proporção de 1/2 indivisa da mesma;
2. ordenar a Ré a entregar as chaves da fracção autónoma ao Autor e a não impedir o acesso deste à mesma; e
3. absolver o Autor dos pedidos reconvencionais formulados pela Ré.
Dessa decisão vem recorrer a Ré, alegando, em sede de conclusões, os seguintes:
1. A douta sentença recorrida enferma do vício de nulidade, por oposição entre os fundamentos de facto e a decisão de improcedência do pedido reconvencional de aquisição da Fracção, por usucapião, deduzido pela ora Recorrente;
2. Na decisão de improcedência do pedido reconvencional o Julgador a quo refere que nada foi alegado para demonstrar que foi invertido o título de posse, o que é, salvo o devido respeito - e muito é -, uma decisão errada porque vai ao arrepio daquilo que se provou nos autos;
3. Está abundantemente provado nos autos que desde Junho de 1993 só a Recorrente usa e inclusivamente habita a totalidade da Fracção, em exclusivo, e que desde essa data se recusa a discutir com o Autor o que quer que seja relativamente à Fracção, por não reconhecer nele direito ou legitimidade para tal, fazendo uma “ocupação do terreno em termos que privam os demais de ocupá-lo também”, na expressão de Antunes Varela (CC Anotado, vol. III, pág. 360);
4. De resto, a Recorrente recursou outorgar em escrituras públicas de divisão da Fracção precisamente por se considerar a dona da totalidade da mesma, como está provado nos autos;
5. A inversão do título da posse operou-se pois logo em 1993, com o abandono pelo Autor da Fracção e da Ré, e com a subsequente reiterada oposição do possuidor, a ora Recorrente, relativamente a intenções de outrem, mais precisamente o Autor, relativamente ao Direito de que a Recorrente se passou a arrogar logo desde 1993 (o direito de propriedade sobre a totalidade da Fracção);
6. A factualidade assente nos autos permite assim, ao contrário do que se decidiu, salvo o devido respeito, erradamente, na sentença ora posta em crise, subsunção ao disposto no artigo 1190º do CC (ou caso se entenda ser aplicável ao caso sub judice o Código Civil de 1966 o artigo 1265º do dito diploma legal) para efeitos de inversão do título da posse na compropriedade;
7. E que consequentemente habilitam a Recorrente a adquirir a totalidade da Fracção por usucapião, nos termos do artigo 1190º do CC (ou caso se entenda ser aplicável ao caso sub judice o Código Civil de 1966 o artigo 1265.º do dito diploma legal);
8. A posse do direito de propriedade pela Recorrente (in casu, quase 24 anos se tivermos em conta a propositura da acção, mais de 25 anos se o referencial for a data da prolação da sentença recorrida), nas circunstâncias e com as características descritas, confere-lhe o direito de invocar a aquisição por usucapião do direito pela actuação do respectivo titular (cfr. artigos 1175.º, 1184.º, 1185.º, 1186.º, 1211.º, 1212.º e 1241.º, todos do CC ou, caso se entenda ser aplicável ao caso sub judice o Código Civil de 1966 nos artigos 1251.º, 1255.º, 1259.º a 1262.º, 1263.º alíneas a) e b), 1268.º e 1287.º desse diploma legal);
9. Ao decidir-se negar provimento ao pedido reconvencional foram violados, salvo o devido respeito, os referidos precitos legais. Para além disso, ao decidir-se como se decidiu, entrou-se - salvo melhor entendimento - em oposição com a matéria de facto assente no processo, o que é causa de nulidade da sentença, conforme dispõe a alínea c) do n.º 1 do artigo 571.º do CPC; Mas mais,
10. A decisão posta em crise no presente recurso é ainda nula porque violadora do Princípio do Dispositivo e representa excesso de pronúncia, na decisão sobre o segundo pedido formulado pelo Autor;
11. Tal pedido era que “Fosse a Ré condenada a restituir ao Autor o referido imóvel, livre de pessoas e bens”;
12. Por outro lado, decidindo o primeiro pedido deduzido pelo Autor, a, aliás douta, sentença recorrida condenava a Ré a reconhecer o Autor como comproprietário da Fracção, na proporção de 1/2 indivisa daquela, reconhecendo assim a Ré como a outra comproprietária. Ora, perante tal decisão o pedido de restituição do imóvel, livre de pessoas e bens, teria de ser jugado improcedente sob pena de violar as regras da compropriedade;
13. A decisão de, ao invés, condenar a Ré a “entregar as chaves da Fracção ao Autor e a não impedir o acesso deste à mesma” modificou ilegitimamente o pedido do Autor e por isso é, salvo o devido respeito, ilegal, enfermando do vício de nulidade, nos termos do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 571.º do CPC;
14. A decisão recorrida consubstancia, nessa parte, uma violação do Principio do Dispositivo, consagrado no artigo 5.º do CPC, pois o Julgador a quo adaptou, modificou, o objecto do pedido - restituição do imóvel livre de pessoas e bens, uma vez que o Autor até qualifica a detenção da Ré como ilícita - e condenou em algo diferente, não peticionado - entrega das chaves e obrigação de não impedir o acesso - relativamente áquilo que o Autor almejava e configurou na sua petição inicial e petitório;
15. Com o que tomou, salvo o devido respeito, uma decisão que se traduz numa condenação ultra petitum, logo nula.
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O Autor respondeu à motivação do recurso acima em referência nos termos constante a fls. 383 a 400 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Factos
Vêm provados os seguintes factos pelo Tribunal a quo:
- Em 28 de Junho de 1991, C e D celebraram um acordo com a Companhia de Construção e Investimento Predial E Limitada (E建築置業有限公司), no qual prometiam comprar e esta, por sua vez, prometeu vender, pelo preço de HK$171,300.00, a fracção autónoma designada por “A3”, do 3° andar “A” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 22464-XIV, a fls. 34, do Livro B89M, inscrito na matriz predial sob o artigo n.º 071683 e constituído em regime de propriedade horizontal (alínea A) dos factos assentes).
- No acto da assinatura do referido acordo, os promitentes compradores, C e D, entregaram à Companhia de Construção e Investimento Predial E Limitada (E建築置業有限公司) a quantia de HK$17,130.00, a título de sinal (alínea B) dos factos assentes).
- Em 27 de Outubro de 1992, os promitentes-compradores C e D cederam ao senhor F a sua posição contratual no referido acordo, cessão essa que foi aceite e autorizada pela Companhia de Construção e Investimento Predial E Limitada (alínea C) dos factos assentes).
- Em 08 de Junho de 1993, o senhor F cedeu a sua posição contratual ao Autor e à Ré, tendo sido esta cessão aceite e autorizada pela Companhia de Construção e Investimento Predial E Limitada (alínea D) dos factos assentes).
- Com vista ao pagamento do preço da referida fracção autónoma designada por “A3”, o Autor e a Ré obtiveram do Banco da China um empréstimo no valor global de HKD$150,000.00 (alínea E) dos factos assentes).
- Tendo para o efeito a Companhia de Construção e Investimento Predial E Limitada, na qualidade de proprietária e promitente-vendedora daquele imóvel, e a Ré e o Autor na qualidade de promitentes-compradores e mutuários, e o Banco da China, na qualidade de mutuante, assinado, em 8 de Junho de 1993, um acordo tripartido de mútuo com promessa de hipoteca (alínea F) dos factos assentes).
- O preço para a aquisição da fracção autónoma designada por “A3” já se encontra integralmente pago à Companhia de Construção e Investimento Predial E Limitada (alínea G) dos factos assentes).
- Logo em 08 de Junho de 1993, o Autor e a Ré receberam as chaves da referida fracção autónoma “A3” (alínea H) dos factos assentes).
- O empréstimo concedido pelo Banco da China para efeitos de aquisição da fracção autónoma acima identificada, foi totalmente liquidado em 08 de Agosto de 1998, tendo sido a Ré quem pagou a quarta prestação e as posteriores (alínea I) dos factos assentes).
- O Autor reside em Hong Kong e não veio a Macau durante o período compreendido entre os anos 1995 a 2011 (alínea J) dos factos assentes).
- Razão pela qual a Ré A ficou a usar toda a fracção autónoma “A3”, como ainda hoje acontece (alínea K) dos factos assentes).
- O Autor intentou, em 21 de Fevereiro de 2013, uma acção para execução específica de contrato-promessa contra a Companhia de Construção e Investimento Predial E Limitada, que correu os seus termos sob o n.º CV1-13-0015-CAO, e na qual foi requerida e deferida intervenção da ora Ré, como co-autora (alínea L) dos factos assentes).
- Depois de citada na referida acção, a aqui ré requereu o apoio judiciário, que seria indeferido pela Comissão de Apoio Judiciário (alínea M) dos factos assentes).
- Em 24 de Novembro de 2016 o Autor, como comprador, e a Companhia de Construção e Investimento Predial E Limitada, como vendedora, celebraram escritura pública da compra e venda de metade da fracção autónoma “A3” (alínea N) dos factos assentes).
- O Autor e a Ré mantiveram um relacionamento amoroso inciado em meados de Janeiro de 1993 e foi esse o motivo pelo qual decidiram adquirir em conjunto a referida Fracção “A3” (alínea O) dos factos assentes).
- Em 2011, o Autor entrou em contacto com a Ré para celebrar a escritura pública de compra e venda com a Companhia de Construção e Investimento Predial E Limitada (resposta ao quesito 1º da base instrutória).
- A Ré recusou-se várias vezes a celebrar a tal escritura de compra e venda (resposta ao quesito 2º da base instrutória).
- Com vista a pôr termo aos autos nº CV1-13-0015-CAO, o ora Autor e a Companhia de Construção e Investimento Predial E Limitada acordaram em celebrar a escritura pública de compra e venda de metade (1/2) da fracção autónoma “A3” correspondente à quota-parte do Autor (resposta ao quesito 4º da base instrutória).
- Posteriormente, em 30/11/2016, o ora Autor enviou cartas de correio normal e com aviso de recepção, e enviou em 02/12/2016 outra mensagem telefónica à Ré para que esta se dirigisse à Companhia de Construção e Investimento Predial E Limitada no sentido de finalizar a outorga da escritura pública da compra e venda da outra metade da fracção autónoma “A3” (resposta ao quesito 5º da base instrutória).
- O Autor não obteve da Ré qualquer resposta (resposta ao quesito 6º da base instrutória).
- A Ré recusou celebrar a escritura pública de compra e venda (resposta ao quesito 7º da base instrutória).
- O Autor, por si ou por interposta pessoa, colocou um aviso na porta do 3º andar “A”, notificando a Ré para proceder à entrega da chave (resposta ao quesito 8º da base instrutória).
- A Ré retirou o aviso, ignorou o pedido de entrega da chave e recusou devolvê-la (resposta ao quesito 9º da base instrutória).
- A Ré ficou ciente da escritura pública outorgada entre o Autor e a Companhia de Construção e Investimento Predial E Limitada e do desejo do mesmo de ter acesso ao gozo e fruição do imóvel (resposta ao quesito 10º da base instrutória).
- A Ré outorgou em 12 de Junho de 2017 com a Companhia de Construção e Investimento Predial E Limitada a escritura pública de compra e venda relativa a 1/2 indivisa da fracção (resposta ao quesito 14º da base instrutória).
- Desde 08 de Junho de 1993 que a Ré vem ocupando e utilizando a Fracção (resposta ao quesito 15º da base instrutória).
- Situação que se manteve, ininterruptamente, até aos dias de hoje (resposta ao quesito 16º da base instrutória).
- Pelo menos, desde Outubro de 1993, até aos dias de hoje a Ré suportou, integral e exclusivamente, todos os custos inerentes à sua conservação e manutenção (resposta ao quesito 18º da base instrutória).
- Pelo menos, desde Outubro de 1993, a Ré tem procedido, a expensas suas, a algumas obras de conservação e de melhoramento na Fracção (resposta ao quesito 19º da base instrutória).
- Que incluíram a pintura de tecto, das paredes interiores e chão da Fracção (resposta ao quesito 20º da base instrutória).
- Mudança de tomadas e fios de electricidade (resposta ao quesito 21º da base instrutória).
- A reparação e substituição de portas e gradeamento da varanda (resposta ao quesito 22º da base instrutória).
- Ou a substituição de alguma canalização (resposta ao quesito 23º da base instrutória).
- Pelo menos, desde Outubro de 1993, sempre foi a Ré quem suportou todos os custos relacionados com o imóvel, designadamente pagando as despesas com os consumos de água, electricidade e telefone (resposta ao quesito 24º da base instrutória).
- Pelo menos, desde Outubro de 1993, foi a Ré quem sempre pagou as rendas pela quota-parte que cabe à Fracção pela concessão por arrendamento do terreno onde está situado o prédio onde a Fracção se encontra, rendas devidas ao Território de Macau, depois RAEM (resposta ao quesito 26º da base instrutória).
- Pelo menos, desde Outubro de 1993, foi a Ré quem sempre pagou a contribuição especial pela quota-parte que cabe à Fracção pela renovação da concessão por arrendamento do terreno onde está situado o prédio onde a Fracção se encontra, que a Ré pagou (resposta ao quesito 27º da base instrutória).
- Pelo menos, desde Outubro de 1993, foi a Ré quem sempre pagou a contribuição predial devida pela Fracção, ao Território de Macau, depois RAEM (resposta ao quesito 28º da base instrutória).
- Pelo menos, desde Outubro de 1993, foi a Ré quem sempre pagou as despesas de condomínio relativas à Fracção (resposta ao quesito 29º da base instrutória).
- Jamais a Ré pagou a quem quer que fosse, muito menos ao Autor, ou à Companhia de Construção e Investimento Predial E Limitada, qualquer renda pela ocupação da Fracção (resposta ao quesito 30º da base instrutória).
- A Companhia de Construção e Investimento Predial E Limitada, que ficou integralmente paga do preço da venda logo em Junho de 1993, não reclamou da Ré qualquer pagamento de renda (resposta ao quesito 31º da base instrutória).
- A ocupação referida na resposta ao quesito 15º, é conhecida por todos e à vista de todos, incluindo o Autor (resposta ao quesito 35º da base instrutória).
- Sem oposição de ninguém (resposta ao quesito 36º da base instrutória).
- De forma ininterrupta (resposta ao quesito 37º da base instrutória).
- A Fracção vale actualmente cerca de HKD$3.700.000,00 (resposta ao quesito 43º da base instrutória).
- O Autor pagou, pelo menos, HK$158.000,00 para a aquisição da fracção “A3” (resposta ao quesito 45º da base instrutória).
- Autor e Ré celebraram o contrato de cessão de posição contratual de compra da fracção “A3” com F, pelo preço total de HKD$318.000,00 (resposta ao quesito 46º da base instrutória).
- Foi pago aoFa quantia de HKD$10.000,00 a título de sina (resposta ao quesito 47º da base instrutória).
- Em 08 de Junho de 1993, o Autor pagou ao cessionário F outro montante de HKD$158.000,00, através do cheque visado emitido a favor deste pela entidade bancária “First Pacific Bank” de Hong Kong (resposta ao quesito 48º da base instrutória).
- Para efeito do saque desse cheque visado, o referido dinheiro foi deduzido da conta aberta em nome do Autor naquela entidade bancária (resposta ao quesito 49º da base instrutória).
- Pelo serviço prestado pela “Agência de Fomento Predial G (G地產公司)”, foi pago a esta, em 8 de Junho de 1993, a quantia de HKD$3.180,00, a título de comissão (resposta ao quesito 50º da base instrutória).
- Pelas despesas emergentes de decorações da fracção “A3”, com o primeiro orçamento avaliado inicialmente em HKD$17.900,00, foi pago em 11 de Junho de 1993 ao respectivo empreiteiro, através da “Agência de Fomento Predial G (G地產公司)”, o montante parcial de HKD$5.000,00 (resposta ao quesito 51º da base instrutória).
- Porém, por causa das obras adicionais posteriormente aditados, o preço das obras foi aumentado (resposta ao quesito 52º da base instrutória).
- Também foi pago o remanescente da primeira obra e o preço das obras adicionais de decoração através da empresa “Agência de Fomento Predial G (G地產公司)” (resposta ao quesito 53º da base instrutória).
- Em finais de Setembro ou inícios de Outubro de 1993, o relacionamento amoroso do Autor e a Ré terminou (resposta ao quesito 55º da base instrutória).
- Já em Fevereiro de 1996, a Companhia “E”, na qualidade da promitente-vendedora, marcou a data de escritura pública de compra e venda com facilidades bancárias e hipoteca para 28 de Fevereiro de 1996, a celebrar com o Autor e a Ré, no Cartório Notarial das Ilhas (resposta ao quesito 58º da base instrutória).
- Tendo a referida outorga da escritura pública sido cancelada (resposta ao quesito 59º da base instrutória).
- Em 17 de Julho de 1998, a Companhia “E”, através da sua advogada, emitiu uma carta registada com o teor constante de fls. 154 e dirigida ao Autor e à Ré com o endereço da fracção “A3”, altura em que a Ré se encontrava a viver na fracção e o Autor já tinha saído de Macau (resposta ao quesito 60º da base instrutória).
- Em Julho de 2012, o Autor entrou em contacto por telefone com a Ré, para resolver o problema relativa à divisão da fracção autónoma (resposta ao quesito 61º da base instrutória).
- Em 06/08/2012, o Autor através do seu advogado, mandou uma carta registada, invocando a sua qualidade de co-adquirente da fracção “A3”, na proporção de metade (resposta ao quesito 66º da base instrutória).
- Nessa carta, o Autor exigiu à Ré a entrega da chave para ele proceder à vistoria da fracção, e pedindo-lhe para proporcionar os documentos necessários à Companhia “E” no sentido de marcar a data de escritura pública (resposta ao quesito 67º da base instrutória).
- A Ré reclamou por si a carta registada de data 06/08/2012 (resposta ao quesito 68º da base instrutória).
- Em Agosto de 2012, a Ré entrou em contacto com a Companhia “E”, tendo esta lhe informado de que a escritura pública teria de ser outorgada por ambos promitentes-compradores, ou seja, pelas Ré e Autor (resposta ao quesito 69º da base instrutória).
- Em 29/11/2012, o Autor mandou de novo, através do seu advogado, outra carta registada, notificando a Ré para comparecer no escritório do notário Dr. Luis Reigadas no sentido de outorgar a escritura pública da compra e venda com a Companhia “E” em 17 de Dezembro de 2012 (resposta ao quesito 70º da base instrutória).
- Carta essa, mais uma vez, reclamada pela Ré (resposta ao quesito 71º da base instrutória).
- Na pendência do processo da Acção ordinária CV1-13-0015-CAO, intentada pelo Autor, marcou-se a outorga da escritura pública da compra e venda da fracção “A3” entre a Companhia “E”, o Autor e a Ré para o dia 12 de Abril de 2013 (resposta ao quesito 73º da base instrutória).
- Essa escritura pública de compra e venda da fracção “A3” não foi outorgada porque o Autor e a Ré não compareceram (resposta ao quesito 74º da base instrutória).
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III – Fundamentação
1. Da nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos de facto e a decisão da improcedência do pedido reconvencional:
Para a Ré, ora Recorrente, os factos assentes e provados permitem concluir que ela vem exercer a posse sobre a fracção autónoma referida nos autos desde 08/06/1993, pelo que o Tribunal a quo ao julgar improcedente o seu pedido reconvencional da adquisição por usucapião da outra metade da fracção autónoma cometeu erro de julgamento, implicando a nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos de facto e a decisão.
Adiantamos desde já que não lhe assiste razão.
Como é sabido, só existe oposição entre fundamentos e decisão quando os fundamentos invocados pelo tribunal conduziriam logicamente ao resultado oposto àquele que foi decidido.
No caso em apreço, o tribunal concluiu pela inexistência da posse sobre outra metade da fracção autónoma por parte da Ré, pelo que julgou improcedente o seu pedido reconvencional da adquisição por usucapião.
Trata-se duma conclusão correcta e está conforme com a factualidade apurada.
Vejamos.
Na sequência da alegação da Ré, ora Recorrente, dos factos constitutivos da existência posse sobre a fracção autónoma em causa, foi perguntada sob os quesitos 15º, 18º, 32º e 33º da Base Instrutória as seguintes matérias de facto:
Quesito 15º
Desde 08 de Junho de 1993 que a Ré vem ocupando e utilizando a Fracção com o animus de ser a sua proprietária com se fosse a sua dona?
Quesito 18º
Foi na convicção de ser proprietária da fracção que a Ré, desde 08 de Junho de 1993, até aos dias de hoje foi suportando, integral e exclusivamente, todos os custos inerentes à sua conservação e manutenção?
Quesito 32º
A Ré ocupou a fracção agindo sempre, com exclusão de outrém, com a intenção e convicção de ser a verdadeira e única proprietária da mesma Fracção?
Quesito 33º
Desde 08 de Junho de 1993 houve sempre, da parte da Ré intenção de exercer sobre a fracção o direito de propriedade com um verdadeiro direito próprio?
As respostas dos quesitos em referência são as seguintes:
Quesito 15º: Provado apenas que “Desde 08 de Junho de 1993 que a Ré vem ocupando e utilizando a Fracção”.
Quesito 18º: Provado apenas que “Pelo menos, desde Outubro de 1993, até aos dias de hoje a Ré suportou, integral e exclusivamente, todos os custos inerentes à sua conservação e manutenção”.
Quesitos 32º e 33º: “Não provados”.
Como se vê, não ficou provado o elemento subjectivo da posse.
A Ré não impugnou a decisão da matéria de facto.
Assim, não se verifica a alegada contradição. Bem pelo contrário, os fundamentos, tanto de facto como de direito, invocados na sentença recorrida e a decisão tomada são coerentes e lógicas.
Ao nível do direito, dispõe o nº 2 do artº 1302º do C.C. que “O uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título”.
Disse a Ré na alegação de recurso que houve a inversão do título da posse uma vez que ela recusava discutir com o Autor o que quer que seja relativamente à Fracção desde Junho de 1993, por não reconhecer nele direito ou legitimidade para tal.
Contudo, da factualidade apurada não resulta algum facto que se refere à tal recusa manifestada pela Ré desde Junho de 1993.
Não obstante ficar provado que a Ré recusava os contactos do Autor para discutir sobre os assuntos relativamente à Fracção desde 2011, o certo é que não consta dos factos provados a razão desta recusa, ou seja, não consta dos factos provados que a Ré recusava tais contactos “por não reconhecer nele direito ou legitimidade para tal”. Isto é, não estão demonstrados os factos constitutivos da inversão do título da posse nos termos do artº 1190º do C.C..
Não ficou provada, portanto, a alegada inversão do título da posse.
Face ao expendido, o recurso não deixará de se julgar improvido nesta parte.
2. Da nulidade da sentença por excesso da pronúncia na decisão sobre o segundo pedido formulado pelo Autor:
O Autor pediu que fosse condenada a Ré a restituir-lhe a fracção autónoma livre de pessoas e bens.
E o Tribunal a quo decidiu simplesmente “ordenar a Ré entregar as chaves da fracção autónoma ao Autor e a não impedir o acesso deste à mesma”, por entender que o Autor não pode exigir a restituição nos termos em que pediu, visto que a Ré também é comproprietária da fracção autónoma, a quem assiste o direito de uso da mesma.
Na óptica da Ré, a decisão em causa é nula por excesso da pronúncia, tendo condenado em objecto diverso do que se pediu.
Salvo o devido respeito, entendemos que se trata duma decisão que está dentro do âmbito do pedido formulado pelo Autor (a restituição da fracção é mais abrangente, implicando necessariamente a entrega de chaves e a não proibição de acesso à fracção) e que está em conformidade com o direito aplicável vigente.
Aliás, uma vez que o Autor fica reconhecido como comproprietário da fracção autónoma em causa, a Ré, independentemente de haver ou não condenação judicial expressa neste sentido, nunca pode opor-lhe o acesso à fracção face ao disposto do nº 1 do artº 1302º do C.C..
Pelo exposto, é de negar provimento ao recurso nesta parte.
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IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar provimento ao recurso interposto, confirmando a sentença recorrida.
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Custas do recurso pela Ré.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 07 de Maio de 2020.
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
20
187/2020