Processo n.º 138/2019 Data do acórdão: 2020-5-28 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– violação de leges artis
– interpretação errónea do conteúdo da gravação visual
S U M Á R I O
Há erro notório na apreciação da prova pelo tribunal recorrido, por violação de leges artis, quando este interpreta erroneamente o conteúdo da gravação visual referida na fundamentação probatória da decisão recorrida.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 138/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
Recorrido (1.o arguido): A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão proferido a fls. 219 a 226 do Processo Comum Colectivo n.° CR3-17-0384-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base na parte em que se decidiu absolver, por in dubio pro reo, o 1.o arguido A da acusada prática, em co-autoria material, na forma consumada, de um crime de usura para jogo, p. e p. sobretudo pelo art.o 13.o, n.o 1, da Lei n.o 8/96/M, veio a Digna Delegada do Procurador recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para rogar a condenação desse arguido nesse crime imputado, por o Tribunal recorrido ter apreciado mal a prova sobre isso (cfr., com mais detalhes, a motivação apresentada a fls. 229 a 234v dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, não respondeu o 1.o arguido recorrido.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 262 a 264 dos autos), opinando pela procedência do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O Tribunal recorrido decidiu absolver o 1.o arguido da acusada prática, em co-autoria material, na forma consumada, de um crime de usura para jogo, com fundamento na entendida insuficiência da prova e no princípio de in dubio pro reo, quanto à participação desse arguido nos factos de concessão de empréstimo para jogo.
2. Na fundamentação probatória da decisão absolutória do acusado crime de usura para jogo, o Tribunal recorrido chegou a afirmar (nos 4.o e 5.o parágrafos da página 10 do texto do acórdão recorrido, a fl. 223v) que: o auto de visonamento da gravação visual de fls. 126 a 140 e as fotografias extraídas dessa gravação demonstram o curso dos factos; o conteúdo da gravação visual não consegue demonstrar quando é que o 1.o arguido chegou ao casino; o conteúdo da gravação visual apenas demonstra que o 1.o arguido ficou sentado ao lado da mesa de jogo a ver o conteúdo do telemóvel.
3. No auto de visionamento da gravação visual referido na fundamentação probatória da decisão absolutória recorrida, consta uma fotografia, extraída dessa gravação, a demonstrar a presença do 1.o arguido no casino em causa, no dia 21 de Março de 2017, às 01:49, com a senhora “A” e o próprio ofendido B (cfr. a segunda fotografia imprimida na fl. 130 dos autos).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Da leitura da motivação do recurso, resulta nítido que a Digna Delegada do Procurador estava a suscitar materialmente o vício de erro notório na apreciação da prova no tocante aos factos respeitantes ao imputado crime de usura para jogo do 1.o arguido.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, após lida a fundamentação probatória da decisão absolutória do crime de usura para jogo do 1.o arguido, e analisado o teor dos elementos probatórios aí referidos como examinados pelo Tribunal recorrido, mostra-se patente que esse Tribunal errou na apreciação da prova, por violação de leges artis, porquanto interpretou erroneamente o conteúdo da gravação visual aí referida: enquanto a segunda fotografia imprimida na fl. 130 dos autos, como extraída dessa gravação visual, demonstra a presença do 1.o arguido no casino em causa, no dia 21 de Março de 2017, às 01:49, com a senhora “A” e o próprio ofendido B, o mesmo Tribunal afirmou, na fundamentação probatória da sua decisão absolutória penal, que o conteúdo dessa gravação visual não conseguiu demonstrar quando é que o 1.o arguido chegou ao casino.
Assim sendo, é de reenviar, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 3, do CPP, o processo para novo julgamento por um novo Tribunal Colectivo no Tribunal Judicial de Base, mas apenas na parte respeitante ao crime de usura de jogo então imputado ao 1.o arguido.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso, reenviando o processo para novo julgamento, na parte somente concernente ao crime de usura para jogo por que vinha acusado o 1.o arguido A.
Sem custas no presente recurso.
Fixam em oitocentas patacas os honorários da Ex.ma Defensora Oficiosa do 1.o arguido recorrido, a suportar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 28 de Maio de 2020.
______________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
______________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
______________________
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
Processo n.º 138/2019 Pág. 8/8