打印全文
Processo n.º 477/2019 Data do acórdão: 2020-5-28 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
Há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou as leges artis.

O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 477/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
Recorrido (arguido): A




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com a sentença proferida a fls. 102 a 103v do Processo Comum Singular n.° CR3-18-0376-PCS do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, absolutório do arguido Ada acusada prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de fuga à responsabilidade, p. e p. pelos art.os 89.o e 94.o da Lei do Trânsito Rodoviário (LTR), veio a Digna Delegada do Procurador recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para rogar a condenação desse arguido nesse crime imputado, por o Tribunal recorrido ter errado notoriamente na apreciação da prova, ao ter julgado, por in dubio pro reo, não ser o arguido o condutor do motociclo envolvido no acidente de viação em questão (cfr., com mais detalhes, a motivação apresentada a fls. 110 a 115 dos presentes autos correspondentes).
Respondeu o arguido recorrido (a fls. 121 a 126) no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 139 a 140v dos autos), opinando pelo reenvio do processo.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O Tribunal recorrido decidiu absolver o arguido da acusada prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de fuga à responsabilidade, alegadamente praticado em 7 de Janeiro de 2018, cerca das 22:36 horas, na Rua de Serenidade de Macau.
2. Segundo a matéria de facto descrita na acusação pública (de fl. 72 a 72v), o arguido conduziu, em 7 de Janeiro de 2018, cerca das 22:36 horas, o motociclo de chapa de matrícula n.o MN-47-XX na Rua de Serenidade, levando consigo a sua mãe como passageira, e ao fazer a manobra de ultrapassagem em frente de um semáforo nessa rua, o pé esquerdo dessa passageira colidiu na parte direita do pára-choque do veículo automóvel ligeiro conduzido pelo ofendido.
3. Na fundamentação probatória da decisão absolutória desse acusado crime, o Tribunal recorrido chegou a afirmar (nas linhas 10 a 18 da página 3 do texto da sentença recorrida, a fl. 103) o seguinte, em chinês, materialmente:
O arguido manteve-se silente na audiência de julgamento. Um pouco após ocorrido o caso, o irmão mais velho do arguido, como proprietário do veículo, contactou o arguido e a mãe para se deslocarem ao Departamento de Trânsito, tendo o arguido pago multas (cfr. fl. 46). Além disso, depois de o Ministério Público ter fornecido o número telefónico do arguido ao ofendido, o ofendido chegou a discutir com o arguido, por via telefónica, sobre o assunto de indemnização. Tudo isto indicia que é provável ser o arguido o condutor do veículo causador do caso.
Perante a acusação, o arguido, se não fosse o condutor, deveria, por lógica, ter feito a sua defesa na audiência. Mas, o facto de o arguido não ter feito isto tem várias razões possíveis. Ante o caso dos autos, o máximo que se pode considerar é apenas considerar haver extrema suspeita de ser o arguido o agente dos factos. Como o ofendido não conseguiu, de maneira alguma, identificar o rosto e caractéristicas do condutor, e as imagens visuais nem dão para confirmar se o arguido foi o condutor, não é possível ao Tribunal afastar a possibilidade de ser outra pessoa o condutor em causa, ou seja, não é possível ao Tribunal ter por certo, sem dúvida, que foi o arguido o agente dos factos.
4. O motociclo referido na factualidade descrita na acusação tem 124cc de cilindrada e tem caixa automática (cfr. mormente o teor do livrete a que alude a fl. 17v).
5. Conforme o teor da carta de condução de Macau do arguido a que se refere a fl. 17 dos autos, o arguido fica habilitado a conduzir motociclo com caixa automática de cilindrada não superior a 150cc, por aprovação no respectivo exame de condução em 18 de Maio de 2017.
6. A fl. 46 dos autos refere-se a um documento passado pelo Departamento de Trânsito de Macau, do qual consta que o transgressor A, em relação ao motociclo de matrícula n.o MN-47-XX, pagou voluntariamente, pelo montante total de seiscentas patacas, duas multas aplicadas, por violação, em 7 de Janeiro de 2018, às 22:30, na Rua da Serenidade de Macau, do disposto no art.o 41.o, n.o 6, do Regulamento do Trânsito Rodoviário (RTR) e no art.o 66.o, n.o 2, da LTR.
7. Em 7 de Setembro de 2018, a própria pessoa do arguido chegou a escrever, em chinês, ao Digno Magistrado do Ministério Público (cfr. o teor da exposição de fl. 69) que “como na questão da indemnização, a outra parte não se dispôs a aceitar o acordo, não se chegou ao consenso”.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
A Digna Delegada do Procurador ora recorrente apontou à sentença recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP), quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
In casu, analisados todos os elementos dos autos, e lida a fundamentação probatória da decisão absolutória penal ora recorrida, mostra-se patente que o Tribunal recorrido errou evidentemente na apreciação da prova, por violação de leges artis, na questão de indagação da identidade do condutor do motociclo MN-47-XX, em 7 de Janeiro de 2018, cerca das 22:36 horas, na Rua de Serenidade de Macau.
É que se os factos de fuga à responsabilidade descritos na acusação pública ocorreram alegadamente no dia 7 de Janeiro de 2018, pelas 22:36 horas, na Rua de Serenidade de Macau, e se o proprietário desse motociclo, um pouco depois de ocorrido o caso, chegou a contactar o seu irmão (ora arguido) e a sua mãe para se deslocarem ao Departamento de Trânsito, e se ao arguido foram aplicadas duas multas (já pagas voluntariamente), por violação, no mesmo dia de 7 de Janeiro de 2018, às 22:30 horas, na Rua da Serenidade de Macau, do disposto no art.o 66.o, n.o 2, da LTR (segundo o qual “Nos motociclos e nos ciclomotores é proibido o transporte de passageiros quando os seus condutores estejam habilitados a conduzi-los há menos de 1 ano”) e do disposto no art.o 41.o, n.o 6, do RTR (que determina que “No ciclomotor ou motociclo, quando o seu condutor esteja habilitado a conduzi-lo há menos de 1 ano, deve ser colocado um sinal distintivo, cujas características e condições de utilização são definidas por despacho do Chefe do Executivo publicado no Boletim Oficial da RAEM), e se em 7 de Setembro de 2018, a própria pessoa do arguido chegou a escrever, em chinês, ao Digno Magistrado do Ministério Público que “como na questão da indemnização, a outra parte não se dispôs a aceitar o acordo, não se chegou ao consenso”, não se pode considerar que há ainda dúvida razoável sobre quem foi condutor do motociclo MN-47-XX no dia 7 de Janeiro de 2018, pelas 22:36 horas, na Rua de Serenidade de Macau.
Portanto, no caso, já há prova bastante de ser o arguido o condutor desse motociclo, apesar de as imagens visuais referidas na fundamentação probatória da sentença recorrida não darem para confirmar se ele foi o condutor do motociclo, e a despeito de o ofendido não ter conseguido identificar o rosto e características do condutor desse motociclo.
Assim sendo, é de reenviar, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 2, do CPP, todo o objecto do processo para novo julgamento por um Tribunal Colectivo no Tribunal Judicial de Base.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso, reenviando o processo para novo julgamento.
Custas no recurso pelo arguido (por ter ele defendido a improcedência do recurso), com duas UC de taxa de justiça, e duas mil patacas de honorários a favor do seu Ex.mo Defensor Oficioso.
Comunique a presente decisão ao ofendido.
Macau, 28 de Maio de 2020.
_______________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
_______________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
_______________________
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



Processo n.º 477/2019 Pág. 10/10