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Processo n.º 664/2018 Data do acórdão: 2020-6-11 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– crime de ameaça
– reconhecimento de pessoas com a presença do arguido
– livre convicção do julgador sobre os factos
S U M Á R I O
O facto de que não chegou a ser feita, no caso dos autos, a diligência de reconhecimento de pessoas com a presença física do arguido ora recorrente, não seria causa necessariamente impeditiva da formação da livre convicção por parte do tribunal sentenciador recorrido no sentido de considerar ser esse arguido quem concretamente disse palavras ameaçadoras contra os dois ofendidos, sendo de realçar que até o próprio recorrente declarou na audiência de julgamento que ele se deslocou ao local dos factos e chegou a dizer algumas palavras aos dois ofendidos.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 664/2018
(Recurso em processo penal)
Recorrente (2.o arguido): A








ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I. RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 258 a 264 do Processo Comum Colectivo n.° CR2-18-0062-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, o 2.o arguido A, aí já melhor identificado, ficou condenado como autor material, na forma consumada, de dois crimes de ameaça, p. e p. pelo art.o 147.o, n.o 2, do Código Penal, na pena de seis meses de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas duas penas, finalmente na pena única de nove meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos.
Inconformado, veio esse arguido recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI) através da motivação apresentada a fls. 284 a 303 dos presentes autos correspondentes, nela alegando, no essencial, a existência, naquele acórdão, dos vícios de erro notório na apreciação da prova e de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, aludidos nas alíneas c) e a) do n.o 2 do Código de Processo Penal (CPP), para rogar a sua absolvição penal total, quer ao abrigo do princípio de in dubio pro reo, quer por falta de fundamentos fácticos para a sua condenação.
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 305 a 309 dos presentes autos, no sentido de provimento do mesmo.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 318 a 319v, pugnando pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido se encontrou proferido a fls. 258 a 264 dos autos, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
III. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Observa-se desde logo que na segunda parte da sua motivação do recurso, o 2.o arguido alega existir o vício do art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do CPP na decisão condenatória dos dois crimes de ameaça imputados a ele.
Entretanto, a argumentação concretamente tecida aí por ele para sustentar a verificação desse vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem a ver propriamente com o alcance nem o sentido desse vício referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, mas sim com o âmbito do vício de erro notório na apreciação da prova da alínea c) desse n.o 2, isto porque no fundo, está ele a alegar principalmente a falta ou insuficiência da prova para a sua condenação nos ditos dois crimes de ameaça, problema este que é diverso do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (vício este que não pode ter existido no acórdão recorrido, dado que da leitura atenta da sua fundamentação fáctica resulta que o Tribunal sentenciador já investigou todo o objecto probando dos autos, sem omissão alguma – sobre o alcance e sentido do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, cfr., por exemplo, de entre muitos outros, os acórdãos deste TSI, de 22 de Julho de 2010, do Processo n.o 441/2008, e de 17 de Maio de 2018, do Processo n.o 817/2014).
Assim, passa-se a conhecer da questão posta na primeira parte do recurso, respeitante ao assacado vício de erro notório na apreciação da prova.
Pois bem, sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, defende o recorrente, ao longo de toda a argumentação recursória tecida na sua motivação, que não há prova suficiente nos autos a apontar que ele foi “o senhor A” referido pelos dois ofendidos como a pessoa que concretamente disse palavras ameaçadoras contra eles.
Entretanto, analisada a fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra ao presente Tribunal de recurso que o Tribunal recorrido, aquando do julgamento da matéria de facto, tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento dos factos.
É certo que no subjacente processo penal não chegou a ser feita, por exemplo, a diligência de reconhecimento de pessoas com a presença física do próprio 2.o arguido, mas isto não seria causa necessariamente impeditiva da formação da livre convicção por parte do Tribunal sentenciador recorrido no sentido de considerar ser o 2.o arguido quem concretamente disse palavras ameaçadoras contra os dois ofendidos.
Aliás, esse Tribunal já expôs congruentemente as razões da formação da sua livre convicção sobre os factos, tendo afirmado na fundamentação probatória do acórdão os motivos pelos quais julgou ser o 2.o arguido a pessoa que disse palavras ameaçadoras contra os dois ofendidos (cfr. o teor sobretudo do penúltimo parágrafo da página 8, dos últimos três parágrafos da página 9, e do primeiro parágrafo da página 10, todas do texto do acórdão recorrido, a fls. 261v a 262v dos autos).
Sendo de realçar que até o próprio 2.o arguido declarou na audiência de julgamento que ele se deslocou ao local dos factos e chegou a dizer em mandarim algumas palavras aos dois ofendidos (cfr. o teor das primeiras duas linhas do antepenúltimo parágrafo da página 9 do mesmo texto decisório, a fl. 262). Daí que a divergência está em quais terão sido as palavras concretamente ditas por ele contra os dois ofendidos (divergência essa que já foi resolvida, com lógica razoável, na livre convicção do Tribunal sentenciador, formada nos termos explicados no antepenúltimo parágrafo da página 9 desse texto decisório), e não na questão, alegada na sua motivação do recurso, de não ser ele tal “senhor A” que disse palavras contra os dois ofendidos.
Assim sendo, é de concluir que já foi feita prova bastante (sem qualquer violação do princípio de in dubio pro reo) de ser o 2.o arguido ora recorrente a pessoa que concretamente disse palavras ameçadoras em chinês (a saber, “這裡是澳門, 是不是不要命”, referidas no ponto 9 da matéria de facto provada, descrito na página 5 do texto do acórdão recorrido, a fl. 260) contra os dois ofendidos.
Naufraga o recurso, sem mais indagação por ociosa ou prejudicada, não podendo o recorrente ser absolvido dos dois crimes de difamação por que foi condenado em primeira instância.
IV. DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas do recurso pelo recorrente, com quatro UC de taxa de justiça.
Comunique a presente decisão aos dois ofendidos e à Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego (com cópias do acórdão recorrido e do presente acórdão).
Macau, 11 de Junho de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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