Processo nº 653/2018
Data do Acórdão: 21MAIO2020
Assuntos:
Notário Privado
Pena disciplinar
Ineptidão da petição de recurso
Cumulação de pedidos
Fundamento ilegal inoperante da invalidação do acto recorrido
SUMÁRIO
Se o acto administrativo recorrido tiver sido apoiado em vários fundamentos, a ilegalidade de alguns deles é inoperante do efeito invalidante, desde que permaneça intacto um fundamento que de ser si habilita e vincula a Administração à prática do acto.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 653/2018
I
Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM
A, notário privado, devidamente identificado nos autos, vem recorrer contenciosamente do despacho da Secretária para a Administração e Justiça que lhe aplicou a pena de suspensão pelo período de dois anos, concluindo e pedindo:
1ª O acto recorrido é um acto administrativo susceptível de recurso contencioso imediato porque verticalmente definitivo e, porque praticado por um órgão de cúpula da administração de Macau, é competente para o seu conhecimento o TSI.
2.ª O recurso foi interposto tempestivamente e mostra-se demonstrada a legitimidade do recorrente.
3.ª Impugna o acto por entender que o conjunto de circunstâncias atenuantes verificadas no caso justificariam a suspensão da execução da pena, aplicável ao caso por serem subsidiariamente aplicáveis aos notários privados, devidamente adaptadas, as normas sobre o regime disciplinar dos trabalhadores da Administração Pública.
4.ª o facto do desaparecimento dos materiais foi imediatamente comunicado pelo recorrente à Inspectora no dia 24/11/2017, para o qual estava designado o início de uma inspecção ordinária ao seu cartório e antes desta ter tido início, razão porque foi tal inspecção suspensa e designada data para uma inspecção específica.
5.ª O acto recorrido reconhece a existência de significativas atenuantes: a prestação de mais de 10 anos de serviço, classificado de bom; a confissão expontânea da infracção; a prestação pelo recorrente de serviços relevantes ao Estado e ao Território; a ausência de publicidade; a falta de intenção dolosa; e os diminutos efeitos da falta.
6.ª As normas dos n.ºs 1 e 2 do art.º 316.º do ETAPM, sobre graduação das penas disciplinares, são relevantes à qualificação jurídica das infracções, permitindo a suspensão da execução da pena aqui requerida, verificados os respectivos pressupostos.
7.ª Para além das circunstâncias atenuantes reconhecidas no acto recorrido, verificam-se ainda: (a) a falta de intenção dolosa; (b) os diminutos efeitos que a falta tenha produzido em relação aos serviços ou a terceiros; e (c) o facto de os maços terem desaparecido no decurso das mudanças operadas no seu escritório, naquilo que consubstanciou um seu momento de grande infelicidade.
8.ª O recorrente é notário há mais de vinte anos e nunca fora sujeito a qualquer procedimento disciplinar e, sujeito que fora antes a duas inspecções ordinárias, fora classificado com "Bom".
9.ª O facto de alguma das circunstâncias invocadas não estar expressamente prevista na norma do art.º 282.º do ETAPM não implica a sua não ponderação porque a enunciação das circunstâncias atenuantes no referido diploma é meramente exemplificativa.
10.ª O recorrente detinha, à data da inspecção, dois distintos andares do edifício, os 22.º e 21.º, onde tinha instaladas, separadas e respectivamente, as suas actividades de notário e de advogado e foi o normal crescimento da primeira que o levou a estender o escritório através do arrendamento do 4.º andar, para onde iniciou a transferência dos materiais da actividade notarial.
11.ª A inspecção ocorreu a partir do dia 28/11/17, vindo a ser concluída no dia 22/2/18, numa altura em que estavam em curso as operações de transferência dos materiais relativos à actividade notarial para o novo espaço adquirido.
12.ª Não incorreu na violação do art.º 12.º, n.º 2 do ENP porque sempre pautou a sua actividade notarial pela observância desta norma assim como das circulares e determinações genéricas da DSAJ.
13.ª A decisão punitiva não identifica uma só das circulares ou determinações genéricas da DSAJ que tenham sido objecto de violação, pelo que o apelo a tal norma não tem base de justificação.
14.ª Não pode deixar de se concluir, no que respeita a este segmento do despacho punitivo, pela ilegalidade do mesmo por erro nos pressupostos de facto.
15.ª A norma do art.º 18.º, n.º 1, alínea c), 2.ª parte, do ENP era a única cujo incumprimento lhe poderia ter sido imputado, tendo havido excesso na indicação das normas legais cuja violação lhe foi imputada.
16.ª Tem relevância a afirmação do Assessor, no seu parecer, referindo-se aos documentos desaparecidos, no sentido de "que tais documentos se referem a negócios jurídicos que até ao presente momento não motivaram qualquer acção judicial (...)".
17.ª O recorrente está a trabalhar na reconstituição dos documentos desaparecidos.
18.ª Justifica-se, no caso, que a pena de suspensão da actividade por dois anos seja suspensa na sua execução por idêntico período.
19.ª Quando se não entenda pela suspensão da execução da pena, entende-se pertinente e de justiça, alternativamente e face ao circunstancialismo identificado, a redução do tempo de suspensão a um período não superior a três meses.
20.ª A decisão recorrida violou, nomeadamente, as seguintes normas e princípios jurídicos: o art.º 317.º do ETAPM ao não proceder à sua aplicação num quadro que impunha a sua desaplicação; o princípio da proporcionalidade das penas ao aplicar pena efectiva ao invés de pena suspensa; o art.º 86.º, n.º 1 do CPA; e o art.º 8.º do ENP ao proceder à sua aplicação num quadro que impunha a sua desaplicação.
TERMOS EM QUE e contando com o muito douto suprimento desse Venerando Tribunal, deve ser julgado precedente o presente recurso, anulando-se pelas apontadas ilegalidades, resultantes dos apontados vícios, o acto recorrido, com todas as consequências legais.
Citada, veio a Secretária para a Administração e Justiça contestar deduzindo a excepção da ineptidão, subsidiariamente pugnando pela improcedência do recurso.
Junta a contestação da Secretária para a Administração e Justiça e apenso o processo instrutor, prosseguiram os autos.
Tendo embora o recorrente arrolado testemunhas a inquirir no âmbito do presente recurso contencioso, a inquirição não teve lugar por ter sido indeferida por despacho do relator a fls. 104 dos p. autos.
Tanto o recorrente como a entidade recorrida apresentaram alegações facultativas, tendo reiterado grosso modo o que foi alegado no requerimento de recurso e na contestação.
O Dignº Magistrado do Ministério Público emitiu, em sede de vista final, o seguinte parecer pugnando pela improcedência da excepção da ineptidão deduzida pela entidade recorrida e pelo não provimento do presente recurso:
Nos presentes autos de recurso contencioso que foi interposto por A, melhor identificado nos autos, e que tem por objecto o acto da Secretária para a Administração e Justiça, datado de 5 de Junho de 2018, que lhe aplicou a pena disciplinar de suspensão administrativa pelo período de 2 (dois) anos, vem o Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 69.º do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC), emitir parecer nos termos que seguem:
1.
Por despacho de 5 de Junho de 2018, a Secretária para a Administração e Justiça aplicou ao ora Recorrente a pena disciplinar de suspensão administrativa graduada em 2 anos, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 8.º, n.º 1 e 3, 12.º, n.º 2, 18.º, n.º 1, alínea c) do Estatuto dos Notários Privados, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/99/M, de 1 de Novembro e 316.º, n.ºs 1 e 2 do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM), nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 24 e 25 dos presentes autos (acto recorrido).
Como consta do referido despacho, o ora Recorrente incorreu na prática de infracção disciplinar porquanto, incumbindo-lhe, enquanto Notário Privado, «assegurar a conservação dos instrumentos e suportes documentais de actos praticados no exercício das suas funções notariais e, bem assim, salvaguardar, acautelar e guardar os livros, documentos e ficheiros do cartório, verificou-se que estavam em falta 62 maços de documentos (estando em causa mais de mil documentos) respeitantes aos actos lavrados nos livros de notas para escrituras diversas nºs 78 a 140, correspondentes a instrumentos notariais realizados entre os anos de 2007 e 2010».
Inconformado, com a referida decisão, dela veio o Recorrente interpor o presente recurso contencioso, imputando-lhe, em síntese, os seguintes vícios:
- Ilegalidade do acto por não haver decidido no sentido da suspensão da execução da pena nos termos permitidos pelo artigo 317.º do ETAPM;
- Violação de lei por violação do princípio da proporcionalidade e da justiça na aplicação da pena efectiva de suspensão;
- Inverificação dos pressupostos da violação do dever de dignificação do cartório notarial e da violação do dever de obediência às circulares e determinações genéricas emitidas pela Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça (DSAJ).
2.
Na sua douta contestação, a Entidade Recorrida invoca a ineptidão da petição inicial do recurso por considerar ser ininteligível o pedido formulado pelo Recorrente, ou que este cumula pedidos substancialmente incompatíveis.
E concretiza: o pedido seria incompatível porque se não compreende, afinal, face ao teor da respectiva alegação, o que pretende o Recorrente, se a anulação ou se a modificação do acto recorrido.
Por outro lado, diz, acaso se entenda que o Recorrente formula dois pedidos diferentes, o pedido de anulação e o pedido de modificação do acto recorrido, então esses pedidos serão substancialmente incompatíveis.
Vejamos.
De acordo com o disposto no artigo 139.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC), a petição inicial diz-se inepta quando:
a) Falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) O pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
No caso em apreço, o Recorrente culminou a sua petição de recurso pedindo que o recurso seja julgado procedente e que seja anulado o acto recorrido.
Trata-se, como é bom de ver, de um pedido perfeitamente inteligível, uma vez que na sua formulação permite alcançar, em absoluto, qual a pretensão que o Recorrente formula e dirige ao tribunal.
Se a alegação do Recorrente é adequada e suficiente para suportar tal pedido é questão diversa que se não prende com a inteligibilidade do pedido.
Por outro lado, também é manifesto que o Recorrente não cumula pedidos, nomeadamente o pedido de modificação com o pedido de anulação do acto recorrido.
É certo que a alegação que consta do artigo 47.º da douta petição inicial não deixa de causar uma certa perplexidade, tendo em conta que nos encontramos num recurso de mera anulação e não de plena jurisdição. No entanto, daí não decorre, ao contrário do que doutamente se invoca na contestação, que o Recorrente tenha cumulado pedidos substancialmente incompatíveis entre si.
Concluindo, quanto a este ponto, diremos que, salvo melhor entendimento, nos parece que a douta petição inicial do recurso, não sendo modelar, seguramente que não padece de ineptidão e por isso deve improceder a arguida nulidade.
3.
3.1.
Na ordem lógica dos fundamentos do presente recurso contencioso, aquele que se nos afigura prioritário é aquele a que o Recorrente chama da inverificação dos pressupostos da violação do dever de dignificação do cartório notarial e da violação do dever de obediência às circulares e determinações genéricas emitidas pela DSAJ.
Pela sua análise iremos começar.
O dever de dignificação do cartório notarial, encontra-se plasmado no artigo 8.º do Estatuto dos Notário Privados, nos seguintes termos:
«1. Nas instalações do escritório onde os notários privados exercem a sua actividade de advogado deve existir um espaço físico autónomo, ainda que comum a vários notários privados, especialmente destinado ao arquivo dos livros e documentos necessários ao exercício da função notarial.
(…)
3. O espaço referido no n.º 1 deve ser concebido de forma a que seja acessível apenas por pessoas da confiança dos notários privados.
(…)»
Este dever, tal como está legalmente configurado, não parece ter sido violado pelo Arguido e ora Recorrente.
Na verdade, o que esse dever impõe é que o espaço físico autónomo existente nas instalações do escritório onde o notário privado exerça a sua actividade seja concebido de forma a que seja acessível apenas por pessoas de confiança do notário privado. A questão coloca-se, pois, ao nível da concepção do próprio espaço físico autónomo. Não cabe na previsão da norma, portanto, a situação, como a presente, em que ao espaço autónomo, com a permissão do notário privado, acedem pessoas que, eventualmente, não são de confiança, mas às quais o espaço não era, sem aquela permissão, acessível. São, pensamos, coisas distintas.
Quanto à violação ao dever de obediência às circulares e determinações genéricas emitidas pela DSAJ, encontra-se o mesmo consagrado no artigo 12.º do Estatuto dos Notários Privados: «Os notários privados devem, contudo, obediência às circulares e determinações genéricas emitidas pela DSAJ».
Todavia, como o ora Recorrente assinala, na decisão recorrida afirma-se a violação de tal dever sem concretizar que circulares e determinações genéricas foram objecto dessa violação.
Ao que nos parece, esta omissão da decisão recorrida é suficiente para podermos concluir que se não demonstra que ora Recorrente tenha incorrido na violação do dever a que se refere o artigo 12.º do Estatuto dos Notários Privados.
A verdade, porém, é que, no acto recorrido também se decidiu que o Arguido, ora Recorrente, infringiu o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º daquele Estatuto, que determina que «[a]os notários privados são aplicáveis as penas disciplinares de suspensão administrativa até dois anos ou de cassação de licença quando infrinjam os deveres a que se encontram sujeitos, designadamente quando:
(…)
c) Não sejam encontrados livros ou documentos ou aqueles e estes apresentem indícios de viciação;
(…)».
Ora, relativamente a este fundamento do acto recorrido, justificativo da aplicação da medida disciplinar agora impugnada, o Recorrente não o contesta. Daí que, não obstante a verificação das apontadas ilegalidades do acto recorrido consistentes na imputação ao Arguido de infracções a deveres que não se verificam, o recurso deva improceder nesta parte.
É que, estando em causa o exercício de um poder vinculado, verificada a infracção a um dever a que o notário privado se encontra sujeito e sendo a pena aplicada uma das duas abstractamente aplicáveis, não podia a Entidade Recorrida, mesmo que apenas com o fundamento da alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º do Estatuto dos Notários Privados, deixar de aplicar ou a pena de suspensão administrativa até dois anos ou a pena de cassação de licença. Por isso, assegurada que está a validade substantiva da decisão punitiva na parte do enquadramento jurídico-disciplinar do comportamento do Arguido, ora Recorrente, torna-se inoperante a apontada ilegalidade da motivação superabundante.
Parece-nos, pelo que vimos de dizer, que deverá ser julgado improcedente este fundamento do recurso.
3.2.
A segunda questão que vem colocada pelo Recorrente é a da alegada ilegalidade do acto recorrido por não haver decidido no sentido da suspensão da execução da pena nos termos permitidos pelo artigo 317.º do ETAPM.
Salvo o devido respeito, o presente fundamento do recurso também não poderá, parece-nos, proceder.
É certo que aos notários privados, são subsidiariamente aplicáveis com as necessárias adaptações, as disposições sobre regime disciplinar dos trabalhadores da Administração Pública, tal como resulta do artigo 21.º do respectivo Estatuto.
Não é o caso, no entanto, da norma do artigo 317.º do ETAPM, segundo a qual as penas disciplinares de repreensão escrita, de multa e de suspensão podem ser suspensas, quando, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao facto punível e às circunstâncias deste, se concluir que a censura do facto e a ameaça de pena bastarão para satisfazer as necessidades de prevenção e reprovação da infracção.
Como bem se notou no parecer do ilustre Assessor do Gabinete da Secretária para a Administração e Justiça que integra a fundamentação do acto recorrido, a pena de suspensão a que se refere o n.º 1 do artigo 317.º do ETAPM, não é equiparável à pena disciplinar de suspensão administrativa a que se refere o artigo 18.º, n.º 1 do Estatuto dos Notários Privados (cfr. página 13 do dito parecer).
Por outro lado, ainda que assim se não entenda, é pacífico que a decisão de suspender ou não suspender a pena cabe nos poderes discricionários da Administração.
Ora, constitui entendimento jurisprudencial uniforme, o de que, quando a Administração exerce poderes discricionários, a actividade do tribunal é meramente fiscalizadora e não, como quando a actividade administrativa é legalmente vinculada, de reexame. Por isso, para além do desvio de poder, do erro sobre os pressupostos de facto, do vício de forma da falta de fundamentação e, eventualmente, do vício de procedimento da falta de audiência prévia, só constitui fundamento de anulação o erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício daqueles poderes (artigo 21.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Administrativo Contencioso), sendo que só em casos flagrantes de mau uso do poder discricionário e de evidentes e intoleráveis violações dos princípios gerais da actividade administrativa como o da proporcionalidade ou o da justiça, deve o acto contenciosamente atacado ser objecto de anulação judicial.
O Recorrente não imputou ao acto recorrido, na parte em que nele se afastou, expressis verbis, a aplicação do artigo 317.º do ETAPM e, portanto a possibilidade de suspensão da pena disciplinar, o apontado vício de erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários que, de resto, de todo não se verifica.
Parece-nos, pois, que este fundamento do recurso não pode deixar de improceder.
3.3.
Finalmente, importa analisar a alegada violação de lei por violação do princípio da proporcionalidade e da justiça na aplicação da pena efectiva de suspensão administrativa em resultado do quo Recorrente diz ser a desconsideração de circunstância atenuantes de relevo reconhecidas no acto recorrido.
Também aqui, salvo o devido o respeito, o Recorrente não tem razão.
Estamos em matéria de graduação concreta da medida disciplinar aplicada ao Recorrente.
Da leitura do acto recorrido e, em particular, do parecer que o mesmo integra resulta que nele foi feita uma análise exaustiva de todas as circunstâncias relevantes para a concreta determinação da pena disciplinar aplicável, em obediência e por referência ao estatuído no artigo 316.º do ETAPM.
Está jurisprudencialmente consolidado o entendimento segundo o qual, relativamente às penas disciplinares, a aplicação, graduação e escolha da medida concreta cabem na discricionariedade da Administração. Portanto, só o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários constituem uma forma de violação de lei judicialmente sindicável – cfr. artigo 21.º n.º 1, al. d) do CPAC – e daí que a intervenção sindicante do tribunal fique limitada aos casos de erro grosseiro, ou seja, àquelas situações em que se verifica uma notória injustiça ou uma desproporção manifesta entre a sanção infligida e a falta cometida pelo funcionário (cf., por todos, o acórdão do Tribunal de Última Instância, de 21.9.2015, Processo n.º 26/2014).
No caso, não se vislumbra qualquer violação, muito menos intolerável, do princípio da proporcionalidade ou do princípio da justiça por parte do acto recorrido quando nele se decidiu aplicar ao ora Recorrente uma pena de suspensão administrativa de 2 anos.
Cremos, assim, que também este fundamento do recurso estará destinado a improceder.
4.
Face ao exposto, salvo melhor opinião, somos de parecer de que o presente recurso deve ser julgado improcedente com a consequente manutenção na ordem jurídica do acto recorrido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O processo é o próprio e inexiste nulidades.
Os sujeitos processuais gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.
Para além da excepção da ineptidão da petição de recurso, inexistem excepções ou questões prévias que obstam ao conhecimento do mérito do presente recurso
Tendo sido indeferida a produção da prova testemunhal e não houve realização oficiosa de outras diligências probatórias, é tida por intacta a seguinte matéria de facto, já dada por assente no parecer onde foi exarado o despacho recorrido consistente na declaração da concordância, nos termos permitidos pelo artº 115º/1, in fine, do CPA:
O arguido Dr. A é Notário Privado, detentor da licença n° 46/94, actualmente com domicílio profissional na Avenida da XX, n° XX, Edifício XX, XX°andar - Macau.
Exerce tais funções desde há cerca de 24 anos.
Em 24 de Novembro de 2017 a Exma. Senhora Conservadora / Inspectora Dra. B, e na sequência de comunicação de 23 de Novembro de 2017 - Ofício n° 679/DSAJ/DARN/2018, deslocou-se ao cartório notarial do arguido, com vista à realização de uma inspecção geral ordinária.
Nessa mesma altura foi informada pelo arguido de que estariam em falta alguns maços de documentos, designadamente os respeitantes aos actos lavrados nos livros de notas para escrituras diversas nºs 78 a 140, correspondentes a instrumentos notariais realizados entre os anos de 2007 e 2010.
Perante tal declaração prestada pelo arguido, a Exma. Senhora Conservadora / Inspectora e mediante informação oportunamente prestada - Informação n° 11/DSAJ/DARN/2018 de 24 de Novembro de 2017 - propôs a suspensão da visita de inspecção geral ordinária e a realização de uma inspecção especifica, o que foi aceite, determinado e realizado.
Esta inspecção iniciou-se em 28 de Novembro de 2017 tendo sido concluída em 22 de Fevereiro de 2018.
Foi apurado que efectivamente se encontravam em falta os maços de documentos respeitantes aos actos lavrados nos livros de notas para escrituras diversas nºs 78 a 140, ou seja, 62 maços de documentos, estando em causa mais de mil documentos.
Tais maços de documentos terão desaparecido na sequência de obras de remodelação realizadas no edifício onde se localiza o escritório de advocacia e o cartório notarial do arguido, as quais determinaram operações de mudança de instalações.
Para realização das referidas obras de remodelação e remoção de todo o lixo o arguido contratou uma empresa.
A falta dos maços de documentos foi detectada pelo arguido após a conclusão das obras e quando se procedia à arrumação dos maços do seu arquivo.
As obras tiveram lugar durante o ano de 2017.
O arguido já encetou diligências no sentido de proceder à reconstituição dos documentos em falta, tendo já sido emitida pela DSF a primeira remessa de certidões de dados matriciais respeitantes aos primeiros três Livros de Notas e adquiridas certidões de registos comerciais junto à Conservatória respectiva.
O arguido não apresenta antecedentes disciplinares:
O arguido tem cerca de 24 anos de serviço com notação de Bom Desempenho.
O arguido é pessoa considerada na RAEM, já exerceu cargos públicos de relevo, incluindo o de Deputado à Assembleia Legislativa, sendo que preside a diversas instituições de carácter associativo e cultural.
Os factos ocorridos não são do domínio público, não tendo havido até ao momento qualquer alarme social devido ao desaparecimento dos documentos, não sendo conhecida a existência de qualquer acção judicial relacionada com estes factos.
Até ao momento, os factos não se revelaram danosos para os Serviços ou para terceiros.
Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, ex vi do artº 1º do CPAC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
Para nós, todas as questões efectivamente colocadas e delimitadas nas conclusões de recurso já foram correcta e exaustivamente debatidas no Douto parecer do Ministério Público acima integralmente transcrito, com que estamos inteiramente de acordo, não nos resta outra alternativa melhor do que a de aproveitarmos integralmente esse parecer, convertendo-o na fundamentação do presente recurso para julgar improcedente o presente recurso contencioso de anulação.
Em conclusão:
Se o acto administrativo recorrido tiver sido apoiado em vários fundamentos, a ilegalidade de alguns deles é inoperante do efeito invalidante, desde que permaneça intacto um fundamento que de ser si habilita e vincula a Administração à prática do acto.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente pela improcedência do recurso, com a taxa de justiça fixada em 10UC.
Notifique.
RAEM, 21MAIO2020
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Lai Kin Hong Álvaro António Mangas Abreu Dantas
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Fong Man Chong
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Ho Wai Neng
653/2018-16