Processo n.º 452/2018 Data do acórdão: 2020-6-4 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– inquérito arquivado em relação a suspeito desconhecido
– art.o 259.o, n.o 2, parte final, do Código de Processo Penal
– descoberta da identidade do suspeito em investigação subsequente
– reabertura do inquérito através de autuação de novo inquérito
– art.o 261.o, n.o 1, do Código de Processo Penal
– acusação contra um arguido co-autor do suspeito
– art.o 19.o, alínea c), do Código de Processo Penal
– junção da certidão do anterior inquérito ao novo inquérito
– cópia de discos compactos de gravação visual
– dedução da acusação no novo inquérito contra o então suspeito
– princípio de ne bis in idem
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– leges artis
– versão fáctica dita pelo ofendido
– comparticipação criminosa
– crime de usura para jogo
– art.o 13.o, n.o 1, da Lei n.o 8/96/M
– comprovada cobrança de juros sem ser apurado o seu montante
S U M Á R I O
1. Um inquérito arquivado na parte respeitante a alguma pessoa suspeitosa de identidade concreta desconhecida, nos termos do art.o 259.o, n.o 2, parte final, do Código de Processo Penal (CPP), deverá ser reaberto nessa mesma parte, à luz do art.o 261.o, n.o 1, do CPP, quando através da investigação subsequentemente feita vierem a ser apurados os dados concretos da identificação dessa pessoa.
2. A reabertura do inquérito pode ser feita através da criação de um processado novo com um novo número de inquérito, quando no processado anterior do inquérito, na mesma data daquele arquivamento, já tiver sido deduzida acusação contra um arguido co-autor da pessoa então suspeitosa em causa, modo de reabertura do inquérito este que nem comprometeria o espírito da norma do art.o 19.o, alínea c), do CPP.
3. Devido às acima aludidas razões concretas da reabertura do inquérito, a certidão do processado do anterior inquérito e da cópia dos discos compactos de gravação visual sobre a ocorrência dos factos então apreendidos no anterior inquérito podem ser juntas ao novo inquérito em causa.
4. O facto de o anterior inquérito ter sido arquivado no tocante àquela pessoa suspeitosa então com identidade desconhecida não é motivo impeditivo da eventualidade de essa pessoa, com identidade supervenientemente apurada através da dita investigação subsequente, vir a ser acusada no âmbito do novo inquérito.
5. Não há violação do princípio de ne bis in idem, quando a arguida ora recorrente, então como pessoa suspeitosa de identidade desconhcida, nunca chegou a ser acusada e julgada anteriormente pelos mesmos factos, alegadamente de comparticipação dela na conduta de usura de jogo por que já tinha sido acusado um arguido no anterior inquérito.
6. Há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
7. Não se pode censurar o tribunal por ter acreditado na versão fáctica das coisas dita pelo ofendido, isto porque não há qualquer norma jurídica a ditar que o tribunal não pode acreditar na versão do ofendido.
8. Na relação de comparticipação criminosa, não se exige que todos os actos delinquentes tenham que ser praticados por cada um dos comparticipantes.
9. Cometeu-se o crime de usura para jogo p. e p. sobretudo pelo art.o 13.o, n.o 1, da Lei n.o 8/96/M, ainda que não tenha ficado apurado qual o montante concreto de juros retirados no processo de prática do crime, pois o que importa é ter havido efectiva cobrança de juros como contrapartida da concessão de valores ao jogador ofendido para este jogar em casino.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 452/2018
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguida): A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão proferido a fls. 400 a 406 do Processo Comum Colectivo n.° CR5-17-0324-PCC do 5.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB) que a condenou como autora material, na forma consumada, de dois crimes de usura para jogo, p. e p. sobretudo pelo art.o 13.o, n.o 1, da Lei n.o 8/96/M, na pena de nove meses de prisão por cada, e, em cúmulo jurídico, finalmente na pena única de um ano de prisão, suspensa na execução por três anos, com interdição de entrada nos casinos de Macau pelo período de três anos, veio a arguida A, aí já melhor identificada, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando materialmente e rogando o seguinte (cfr. as conclusões da sua motivação apresentada a fls. 420 a 443 dos presentes autos correspondentes):
– essa decisão violou os art.os 245.o, 258.o, 259.o, 261.o e 336.o do Código de Processo Penal (CPP) e o art.o 40.o da Lei Básica, o princípio de ne bis in idem, o princípio da legalidade e o princípio da certeza e segurança jurídicas, por, a montante, o Ministério Público ter agido de forma anómala e subvertido o iter processual penal ao acusar a própria arguida, quando a ela havia arquivado o anterior Inquérito n.o 8809/2016 com consequente já extinção do procedimento criminal, e a jusante, tal decisão condenatória ter baseado a sua convicção em certidão parcial de outro processo (Processo n.o CR2-17-0187-PCC) transitado em julgado, com violação, pois, da regra de que a prova de um crime deve ser feita em audiência de julgamento nos autos em que o mesmo é julgado;
– na verdade, não se estava perante uma situação do art.o 261.o do CPP; na realidade, o Ministério Público apenas verificou as provas do Inquérito n.o 8809/2016 e verificou a identidade da suspeita “Ah Mui” depois do arquivamento desse inquérito, decidindo então abrir um novo inquérito, com diferente autuação, muito depois da notícia do crime, e acusando a ora recorrente depois do trânsito em julgado do dito Processo n.o CR2-17-0187-PCC, em detrimento das mais fundamentais regras do processo penal e do princípio da legalidade;
– o art.o 261.o do CPP é uma norma excepcional, inaplicável por analogia, e está concebida para situações em que não esteja ainda encerrado o procedimento criminal por decisão judicial transitada em julgado, e não situações de incompletude na investigação nem situações que os órgãos de polícia criminal ou a acusação conheçam ou possam conhecer, antes do encerramento do inquérito e dentro do prazo deste;
– a identificação de um agente de um ilícito penal é um acto puramente investigatório, que apenas pode ser levado a cabo em sede de um inquérito, nos termos do art.o 245.o do CPP; o inquérito termina com o despacho de arquivamento, conduzindo, assim, à extinção do procedimento criminal, sem possibilidade de continuação da investigação ou iniciação de novas diligências investigativas;
– as imagens da sala de jogo do casino, que permitiam a identificação da ora recorrente, constituem elementos de prova que já existiam no Inquérito n.o 8809/2016, que deu lugar ao Processo n.o CR2-17-0187-PCC, e sempre fizeram parte daquela investigação;
– assim, é inconcebível alegar-se reabertura do inquérito com base em mero reexame das mesmas provas que já integravam a investigação que havia sido arquivada, pois os elementos de prova devem ser absolutamente novos;
– a regra de ne bis in idem, plasmada no art.o 40.o da Lei Básica, comporta a proibição de realizar uma pluralidade de julgamentos criminais com base nos mesmos factos delituosos;
– a junção das provas dos autos do Processo n.o CR2-17-0187-PCC, dos quais apenas se extraiu certidão parcial, para os presentes autos n.os CR5-17-0324-PCC, e a simples declaração judicial de que os mesmos passam a fazer “parte integrante” dos presentes autos, violam grosseiramente o princípio fundamental do processo penal de que a prova de um crime deve ser feita nos autos em que o mesmo é julgado e deve sê-lo em audiência de julgamento;
– devem ser tais provas desentranhadas dos presentes autos, com consequente absolvição da ora recorrente;
– a decisão condenatória recorrida violou, ainda, os art.os 355.o, n.o 2, do CPP, os art.os 12.o e 13.o do Código Penal (CP), e o art.o 13.o, n.o 1, da Lei n.o 8/96/M, ao integrar nos pontos 17 a 19 da factualidade assente a convicção que o Tribunal recorrido terá formado acerca dos outros factos, quando não existe correlação e inferência lógica entre os “factos” desses pontos 17 a 19 e os restantes factos da factualidade assente;
– nos pontos 1 a 16 da factualidade assente não se encontrou qualquer facto objectivo conducente à verificação do dolo do agente do crime, do intuito de alcançar benefício patrimonial, e do conhecimento da ilicitude e punibilidade do acto constantes dos pontos 17 a 19 da factualidade assente;
– os pontos 17 a 19 da factualidade assente consubstanciam uma qualificação jurídica ou convicção do julgador que de outros factos deveria ser inferida, e não integram ou constituem factos objectivos e autónomos em si mesmos;
– o dolo – mesmo que visto sob um ponto de vista fáctico – pertence, por natureza, ao mundo interior do agente e é revelado pelo próprio agente, sob a forma de confissão, ou tem de ser inequivocamente extraído de outros factos objectivos com idoneidade suficiente para revelá-lo, de acordo com as regras de normalidade e da experiência comum. Tais factos têm que ser objectivos e não integrar, neles próprios, a qualificação jurídica que estes pretendem suportar;
– a sentença tem que seguir um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo uma decisão ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum na apreciação da prova;
– inexistindo, na factualidade assente, prova do dolo da recorrente, prova da intenção de alcançar um benefício patrimonial, e prova do conhecimento da ilicitude e punibilidade da conduta da recorrente e conformação com a mesma, deve esta ser absolvida nos termos dos art.os 12.° e 13.° do CP e n.º 1 do art.o 13.° da Lei n.º 8/96/M;
– a decisão recorrida incorreu em erro na qualificação jurídica dos factos, erro na aplicação da lei, erro no julgamento e contradição entre a matéria de facto provada e a decisão, pois errou no momento da subsunção dos factos provados e não provados ao direito e violou o n.º 1 do art.o 13.° da Lei n.º 8/96/M e o princípio in dubio pro reo. Em detalhe:
– para que fique preenchido o tipo legal de crime de usura para jogo é necessário provar todos os seguintes elementos do ilícito típico: a) intenção de alcançar um benefício patrimonial; e b) facultar a uma pessoa dinheiro ou qualquer outro meio para jogar. É incontrovertido que quem concede empréstimo para jogo sem juros ou outro tipo de remuneração não comete o crime de usura para jogo. É igualmente incontrovertido que quem tenha intenção de alcançar um benefício patrimonial mas não faculte, ela própria, valores ou dinheiro a uma pessoa, também não comete o crime de usura para jogo;
– por um lado, decorre da factualidade assente que o mutuante, em ambos os empréstimos, foi outro indivíduo, e não a recorrente, e, por outro lado, a cobrança dos juros alegados pelo ofendido constam da factualidade dada por não provada;
– decorre dos pontos 4 e 10 da factualidade assente que terá sido o indivíduo chamado B a emprestar dinheiro, em fichas, ao ofendido, e não a recorrente. Esse terá emprestado tais fichas ao ofendido “através da arguidaˮ, não explicando a sentença como é que B “utilizouˮ a arguida para emprestar dinheiro ao ofendido, especialmente quando o mutuário (ofendido) se encontrava na presença do mutuante B, o que se revela patentemente ilógico quando resulta claro da factualidade assente que as fichas facultadas não eram da recorrente e que a recorrente nunca teve em seu poder as fichas que terão sido facultadas, por terceiro, ao ofendido;
– decorre da factualidade assente que a recorrente não estava em posição de, em seu nome e em autoria, emprestar valores ao ofendido. Ainda que se pudesse interpretar os actos da recorrente como execução imediata do facto e detenção do domínio do facto – o que por mera exaustão do patrocínio se concede – ainda assim, faltar-lhe-ia a intenção tipicamente exigida, que é o intuito lucrativo, intenção essa que apenas poderá estar presente no mutuante e na pessoa que terá querido assegurar o reembolso dos montantes mutuados, conforme resulta do ponto 14 da factualidade assente;
– consignou o Tribunal a quo como assente que, na data dos factos: a) as declarações de dívida haviam sido emitidas a B e não à recorrente; b) a declaração de dívida junta aos autos e dada por provada verifica-se estar emitida a favor de um terceiro, e não a favor da recorrente; e c) por outro lado, a segunda declaração de dívida foi encontrada em poder de B, e não da recorrente;
– das imagens videográficas não resulta qual a intenção da recorrente no manuseamento de fichas enquanto, aparentemente, jogava o bacarat com o ofendido, nem, tão pouco, a finalidade de recolha das fichas de jogo pela recorrente. Estas fichas manuseadas pela recorrente, cujo montante não foi apurado, bem podiam ser as suas, uma vez que a recorrente se encontraria a jogar o bacarat tal como demonstram as imagens. Tais fichas podiam, até, constituir apenas a restituição do montante mutuado ao ofendido por terceiro, o que não constitui usura para jogo!
– o único meio de prova é a palavra do ofendido, a qual deve ser apreciada com a devida cautela e com a prudência de um julgador razoável, atento o facto de que o ofendido apenas chamou as autoridades policiais depois de perder avultadas quantias de dinheiro no jogo e não conseguir restituir o montante mutuado (vide o ponto 14 da factualidade assente, onde se diz “como o ofendido não conseguiu reembolsar o montante de empréstimoˮ). Ora, além da palavra do ofendido, não existe qualquer outra prova, quer videográfica quer de qualquer outra natureza, de que no momento do jogo as fichas eram manuseadas pela recorrente no sentido de serem retiradas à esfera patrimonial do ofendido para pagamento de juros, cujo quantitativo nunca se conseguiu determinar e que, portanto, foram dados por não provados;
– não se apurando o quantitativo de juros alegadamente cobrados ao ofendido, nunca se pode subsumir a conduta do agente ao crime de usura para jogo, subsunção esta que requereria não a cobrança do montante de empréstimo, mas, sim, a cobrança de juros que revelassem um propósito objectivo de adquirir vantagens económicas que o agente sabia ser ilegítimas e alheias, integrando-as na sua esfera patrimonial;
– da factualidade dada por provada e por não provada resulta que a recorrente não cometeu o crime de usura para jogo, pelo que nunca poderia ser condenada pela sua prática, ficando por preencher ambos os elementos do ilícito típico. Assim sendo, afastada estava a possibilidade de o Tribunal a quo imputar à recorrente, quer o empréstimo que a intenção de, através da sua conduta, obter vantagem patrimonial. Faltando, na factualidade assente pelo Tribunal a quo, a prova do elemento objectivo do empréstimo e do elemento subjectivo da intenção lucrativa da recorrente, resulta inviável a sua responsabilização como tal;
– verifica-se, ainda, que a decisão recorrida incorreu em vício de violação de lei na qualificação do crime, violando n.º 2 do art.o 29.° do CP, pois da leitura da factualidade provada facilmente se constata que o segundo empréstimo ocorreu no mesmo dia do primeiro empréstimo, pouco mais de uma hora depois, e logo após o ofendido ter perdido as quantias que antes havia ganhado por via do primeiro empréstimo; e que o segundo empréstimo ocorreu a pedido expresso do ofendido, que, de acordo com a factualidade assente, terá procurado a arguida para obter mais dinheiro para fins de jogo, resultando numa homogeneidade do modus operandi e uma indiscutível proximidade temporal, bem como uma solicitação pelo próprio ofendido, as quais criam indubitavelmente uma situação exterior que diminui consideravelmente a culpa do agente, facilitam a execução do segundo crime;
– pelo que entende a recorrente que se afigurava adequada a qualificação da conduta do agente como a prática de um só crime de usura para jogo na forma continuada, em vez da realização por duas vezes do mesmo tipo de crime;
– por fim, a decisão recorrida incorreu em vício de violação dos art.os 40.° e 65.° do CP na determinação e aplicação das penas, que ultrapassam e são manifestamente desproporcionais à medida da culpa da recorrente. O Tribunal a quo não considerou devidamente o facto de a arguida ser primária apesar de viver em Macau há quase duas décadas, e a sua situação económica e familiar relativamente fragilizada, quando o mesmo deu por provado em audiência que é primária, tem como habilitações literárias o 5.° ano de escolaridade, não possui salário, e tem a seu cuidado a sua mãe e um filho com problemas mentais;
– todas estas circunstâncias, aliadas ao facto de que o Tribunal a quo afirmou que o juízo de censura do presente caso não é grave, justificariam uma pena de prisão mais leve, e durações mais curtas para as respectivas suspensão de execução e sanção acessória;
– ponderadas a ilicitude, a culpa, a consequência e a exigência da prevenção, forçosamente, a pena principal cominada deveria ser justa e proporcional a essa ponderação, não havendo fundamento para que não se fixasse no mínimo legal. Também que o período de suspensão, o qual poderia ser de um a cinco anos, e tendo vindo a ser fixado em três anos, é manifestamente longo, desproporcional à pena aplicada e excessivo;
– a sanção acessória de impedimento de entrada em casino é manifestamente suficiente para cumprir quaisquer necessidades de prevenção geral e especial no presente caso;
– considerando os factos provados, o circunstancialismo do crime, a conduta do próprio ofendido, a necessidade de prevenção, quer seja a geral, quer seja a especial, a própria finalidade da pena, entende a recorrente que a medida concreta da pena, o período de suspensão da execução da mesma e o período da sanção acessória não deveriam, de forma alguma, ultrapassar o mínimo legalmente previsto;
– nestes termos e nos mais de Direito, a recorrente requer a revogação da decisão condenatória e a sua absolvição de todos os crimes por que vem acusada, e ainda, subsidiariamente, a substituição da decisão recorrida por outra que condene apenas em um crime de usura para jogo, na forma continuada, e que, sendo ponderadas a baixa ilicitude da conduta acusada, a situação primária dela, a conduta do próprio ofendido, a satisfação das exigências de prevenção pela pena acessória, e a situação concreta da recorrente, seja o quantitativo da pena de prisão reduzido ao mínimo legalmente admitido, ou seja, um mês de prisão, com a suspensão de execução de pena reduzida a um período de um ano e a sanção acessória de proibição de entrada em casino reduzida a dois anos.
Ao recurso, respondeu a Digna Representante do Ministério Público (a fls. 446 a 449v dos autos) no sentido de improcedência do mesmo.
Outrossim, antes deste recurso, a arguida já tinha interposto recurso do despacho proferido na audiência de julgamento pela M.ma Juíza Presidente do Tribunal Colectivo a quo, determinador da efectiva junção aos autos de uma certidão extraída do Processo n.o CR2-17-0187-PCC do 2.o Juízo Criminal do TJB, e das cópias de quatro discos compactos de gravação visual nele apreendidos, alegando (no essencial) e pedindo o seguinte, na sua motivação apresentada a fls. 389 a 397 dos autos:
– no início da audiência de julgamento do dia 30 de Janeiro de 2018, foi comunicado pela M.ma Juíza Presidente do Tribunal Colectivo ora recorrido que a certidão de todo o Processo n.o CR2-17-0187-PCC (que então tinha corrido termos no 2.o Juízo Criminal do TJB contra B) e todos os elementos probatórios e apreendidos, nele contidos, já se encontrou junta aos presentes autos, sendo parte integrante dos mesmos;
– por não concordar com isso, a própria arguida arguiu logo a nulidade desse despacho, por entender ser o mesmo violador dos princípios da legalidade, do contraditório e da legitimação dos actos processuais;
– consequentemente, e depois de ouvido o Ministério Público que se opôs à dita posição da arguida, foi proferido despacho pela M.ma Juiz Presidente do Tribunal Colectivo, no sentido de considerar legais todos os elementos probatórios e apreendidos contidos naquela certidão extraída do referido Processo n.o CR2-17-0187-PCC;
– não pode a arguida concordar com este despacho, dada a violação, pelo mesmo, do art.o 257.o, n.o 2, do CPP;
– é que sendo a recolha de imagens de vídeo vigilância e recibo de quitação matéria sujeita ao art.o 251.o do CPP, nos termos conjugados dos art.os 234.o e 235.o do CPP, a inclusão de discos compactos de vídeo vigilância e/ou recibo de quitação nos presentes autos penais, sem a observação de um acto que determine a sua junção, se revela manifestamente violadora do art.o 257.o do CPP;
– deveria, portanto, ser ordenado o desentranhamento de discos compactos e/ou recibo de quitação em questão.
A este recurso intercalar da arguida, respondeu o Ministério Público (a fls. 411 a 412), no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 461 a 466v) sobre os dois recursos em questão, opinando pela manutenção de todo o julgado feito pela Primeira Instância.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte, com pertinência à solução do caso:
1. Em 26 de Abril de 2017, foi determinada, no Ministério Público, a autuação do Processo de Inquérito Penal n.o 4550/2017 (por crime de usura para jogo) (Inquérito este gerador depois dos presentes autos penais, então autuados com o n.o CR3-17-0416-PCC e ulteriormente com o n.o CR5-17-0324-PCC) contra a arguida A, com base num conjunto, apresentado pela Polícia Judiciária ao Ministério Público, de 66 folhas de “papelada de investigação subsequente (“後續調查文件”)” do Processo de Inquérito Penal n.o 8809/2016 do Ministério Público (cfr. a capa feita pelo Ministério Público para o Inquérito n.o 4550/2017, e o teor de fls. 1 a 67 dos presentes autos penais).
2. Foi junto ao Inquérito n.o 4550/2017 dos presentes autos penais, no mesmo dia 26 de Abril de 2017, a cópia do despacho de arquivamento e da acusação pública do então Inquérito n.o 8809/2016 (cfr. a cota dessa diligência lançada a fl. 68 dos presentes autos penais).
3. Esse referido despacho de arquivamento, datado de 28 de Fevereiro de 2017, tem o seguinte teor (originalmente em chinês, cfr. o teor a que alude a fl. 69 dos presentes autos):
– <
Se provados, os actos em causa poderiam constituir o crime de usura para jogo, p. e p. pelo art.o 13.o, n.o 1, da Lei n.o 8/96/M, conjugado com o art.o 219.o, n.o 1, do CP.
Após investigação a vários níveis, até agora não se conseguiu apurar a identidade dos referidos suspeitos nem o paradeiro dos mesmos, não se mostrando actualmente adoptáveis outras medidas de investigação.
Por isso, decido arquivar, nos termos do art.o 259.o, n.o 2, do CPP, esta parte do presente processo.
Faça notificações legais (art.o 259.o, n.os 3 e 4, do CPP).
28 de Fevereiro de 2017
A Delegada do Procurador
(assinatura)
[…]>>.
4. Segundo a factualidade descrita e a lógica dessa factualidade na acima referida acusação pública (a cujo teor alude a fls. 70 a 71v), deduzida em 28 de Fevereiro de 2017, por dois crimes de usura para jogo p. e p. pelo art.o 13.o, n.o 1, da Lei n.o 8/96/M, contra o arguido B no âmbito do então Inquérito n.o 8809/2016:
– em 31 de Julho de 2016, cerca das 04:00 horas da madrugada, o ofendido C, dentro do Casino X, foi persuadido por uma senhora desconhecida “Ah Mui (阿梅) ” para pedir empréstimo de dinheiro para jogar em casino;
– a final de contas, o arguido B agiu em conluio e conjugação de esforços com “Ah Mui”, na concessão, por duas vezes (cada vez no valor idêntico de trezentos mil dólares de Hong Kong), de empréstimo de capital ao ofendido para jogar, com o fim de obter vantagens pecuniárias.
5. Dentro daquela acima referida “papelada de investigação subsequente”, consta o seguinte, inclusivamente:
– o teor de um pedido, de 29 de Março de 2017, de dados de bilhete de identidade de residente e registos de movimentações fronteiriças da senhora A no mês de Julho de 2016 e na última vez (cfr. o documento a que alude a fl. 19 dos presentes autos penais);
– o teor da listagem de movimentos dos postos fronteiriços respeitante a A no mês de Julho de 2016 e no período de 11 de Outubro de 2016 a 28 de Fevereiro de 2017 (cfr. os documentos a que se referem as fls. 20 e 22, respectivamente, dos presentes autos penais);
– o teor de um pedido de 29 de Março de 2017 da Polícia Judiciária ao Clube de VIP de X, a solicitar os dados em pormenor de um senhor titular do Bilhete de Identidade de Residente de Macau na abertura da conta junto a esse Clube (cfr. o documento a que alude a fl. 24 dos presentes autos penais), dados solicitados esses que foram depois oferecidos por esse Clube à Polícia Judiciária (cfr. o teor de fls. 25 a 28 dos presentes autos penais);
– o teor de uma informação da Polícia Judiciária de 29 de Março de 2017, sobre a circunstância, verificada através de registos fronteiriços, de A se encontrar nessa altura em Macau (cfr. o teor de fl. 29 dos presentes autos penais);
– o teor de um pedido de 30 de Março de 2017 da Polícia Judiciária, de intercepção, para efeitos de investigação, da própria pessoa de A (cfr. o teor de fl. 30 dos presentes autos penais);
– o teor de uma informação da Polícia Judiciária de 7 de Abril de 2017, sobre a circunstância de essa Polícia ter deixado na porta de uma fracção autónoma, um talão de convocação de A para esta se deslocar à Polícia Judiciária para efeitos de investigação (cfr. o teor de fl. 37 dos presentes autos penais);
– uma informação, elaborada em 26 de Abril de 2017, pela Polícia Judiciária, segundo a qual A, por ter recebido a convocação escrita da Polícia Judiciária, se deslocou à Polícia Judiciária para efeitos de investigação (cfr. o teor de fl. 41 dos presentes autos penais);
– o teor do auto de constituição de A como arguida, no dia 26 de Abril de 2017 (cfr. o teor de fl. 45 dos presentes autos penais);
– o teor do auto de interrogatório, em 26 de Abril de 2017, pela Polícia Judiciária, da arguida A (cfr. o teor de fls. 48 a 49v dos presentes autos penais).
6. No Inquérito n.o 4550/2017, subjacente aos presentes autos, foi feito, em 4 de Maio de 2017, o reconhecimento pelo ofendido C, da própria pessoa da ora recorrente A como sendo tal senhora “Ah Mui” (cfr. o auto de reconhecimento de pessoa de fl. 100 a 100v dos presentes autos).
7. No mesmo ora subjacente Inquérito n.o 4550/2017, foi feito, em 4 de Maio de 2017, pela Polícia Judiciária, na presença do próprio ofendido C, o visionamento do conteúdo de quatro discos compactos de gravação visual do dia 31 de Julho de 2016 dentro do Casino X (cfr. o auto desse visionamento de fls. 102 a 103v, com algumas imagens extraídas e imprimidas a fls. 104 a 118, dos presentes autos, com assinatura também do próprio ofendido).
8. Do relatório de conclusão de investigação elaborado em 4 de Maio de 2017 pela Polícia Judiciária (a fl. 119 a 119v do mesmo subjacente Inquérito n.o 4550/2017), consta o seguinte, inclusivamente:
– em 26 de Abril de 2017, A deslocou-se à Polícia Judiciária para colaboração na investigação, tendo negado a prática dos factos, e negado ser ela a senhora suspeitosa “Ah Mui”, e dito que desconhecia o ofendido e o arguido B;
– em 4 de Maio de 2017, o ofendido C deslocou-se à Polícia Judiciária para colaboração na investigação; após feito o reconhecimento de pessoa, o ofendido apontou claramente que A foi precisamente a senhora suspeitosa “Ah Mui”; e depois de visionadas, em conjunto com o ofendido, as gravações visuais, o ofendido apontou claramente que: A chegou a entregar-lhe fichas de jogo, por duas vezes, no montante totalizado de seiscentos mil dólares de Hong Kong, para jogar, tendo A e o arguido B chegado a, pelo menos, por seis vezes, retirar, das fichas de jogo trocadas por ambos em nome do próprio ofendido para efeitos de jogo, pelo menos, no total, cem mil dólares de Hong Kong em fichas de jogo, a título de juros.
9. No mesmo ora subjacente Inquérito n.o 4550/2017, foi deduzida, em 5 de Setembro de 2017, acusação pública contra a arguida ora recorrente pela prática, em conluio e conjugação de esforços com o indivíduo chamado B, de dois crimes de usura para jogo (um no valor de trezentos mil dólares de Hong Kong, e outro também no valor de trezentos mil dólares de Hong Kong), contra o mesmo ofendido C, no dia 31 de Julho de 2016, dentro do Casino X (cfr. o teor do libelo acusatório de fls. 135 a 136v).
10. Sobre esta acusação, não chegou a arguida a requerer a abertura da instrução (cfr. o teor do processado de fls. 138 a 145v dos presentes autos, a contrario sensu), mas chegou a apresentar contestação escrita (a fl. 156 dos presentes autos), na qual oferecendo materialmente o merecimento dos autos.
11. Na sessão de audiência de julgamento realizada em 23 de Janeiro de 2018 perante o Tribunal Colectivo ora recorrido, a Ex.ma Defensora da arguida suscitou a questão de não dever a arguida sido acusada no âmbito do presente processo penal, dado o já arquivamento do Inquérito então gerador do Processo n.o CR2-17-0187-PCC (com decisão condenatória, já transitada em julgado, do arguido B), na parte respeitante a outros outros suspeitos. Para efeitos de análise e apreciação dessa questão, a M.ma Juíza Presidente do Tribunal Colectivo ora recorrido, considerando que os factos em causa no Processo n.o CR2-17-0187-PCC tinham conexão com o presente processo penal, determinou, assim, a requisição da extracção da certidão do conteúdo do Processo n.o CR2-17-0187-PCC e da cópia de discos compactos apreendidos nesse processo penal, para serem juntos aos presentes autos penais (cfr. o teor da acta da audiência de julgamento lavrada a fls. 175 a 176).
12. Afinal, em 25 de Janeiro de 2018, foi junta (cfr. o teor do ofício de fl. 181 dos presentes autos penais), a fls. 182 a 350, a dita certidão requisitada, com cópias de quatro discos compactos de gravação visual (referidos no auto de visionamento de discos compactos de gravação visual então lavrado a fls. 79 a 100 do Inquérito n.o 8809/2016), as quais passaram a ser apreendidas à ordem dos presentes autos, por despacho judicial de 26 de Janeiro de 2018 (de fl. 352 dos presentes autos), sob promoção do Ministério Público (cfr. também o auto de apreensão lavrado a fl. 353 dos presentes autos).
13. Através do confronto do teor do auto de visionamento de fl. 102 a 103v dos presentes autos penais com o teor do auto de visionamento de fls. 79 e seguintes do então Inquérito n.o 8809/2016, sabe-se que foram os mesmos quatro discos compactos (discos 1, 2, 3 e 4, respeitantes a um mesmo número de identificação IN20160295192) de gravação visual em causa no visionamento feito nos presentes autos (com a presença do próprio ofendido que assinou até no respectivo auto) e no visionamento feito nesse anterior Inquérito.
14. Na sessão da audiência de julgamento de 30 de Janeiro de 2018, a M.ma Juíza Presidente do Tribunal Colectivo ora recorrido informou que a acima requisitada certidão do Processo n.o CR2-17-0187-PCC já tinha ficado junta aos presentes autos penais, com já apreensão também, nos presentes autos, das cópias de discos compactos de gravação visual, e disse, a final, que o Tribunal Colectivo considerou que essa certidão e cópias de discos compactos se mostravam relevantes para efeitos de descoberta da verdade nos presentes autos penais, em conformidade, pois, com o disposto no art.o 321.o do CP, tratando-se, assim, de elementos de prova obtidos legalmente, ficando a Defesa autorizada a analisar o conteúdo da dita certidão e das cópias de discos compactos em causa, para efeitos de preparar a defesa (cfr. o teor da acta dessa sessão, lavrada a fls. 354 a 355 dos presentes autos).
15. Ulteriormente, na sessão da audiência de julgamento de 6 de Fevereiro de 2018, foi inclusivamente visionado o conteúdo dos discos compactos apreendidos, e examinado o teor dos elementos probatórios dos autos (cfr. o teor da respectiva acta, lavrada a fl. 373 a 373v dos presentes autos).
16. Afinal, foi proferido, a fls. 400 a 406 dos presentes autos, o acórdão ora recorrido (cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido) (condenatório da arguida ora recorrente pela prática, em conluio e conjugação de esforços com B, de dois crimes de usura para jogo), no qual foi primeiramente decidida em desfavor da arguida, a questão de alegada violação do princípio de ne bis in idem, de moldes seguintes: o Tribunal recorrido entendeu aí que a arguida foi acusada pelo Ministério Público depois de ter sido apurada a sua identidade através da investigação então subsequente feita (sobre a pessoa suspeitosa “Ah Mui”), pelo que essa situação estava em sintonia com o art.o 261.o, n.o 1, do CPP, não tendo ocorrido, pois, a violação do tal princípio de ne bis in idem.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Por outro lado, há que relembrar aqui, desde logo, as seguintes regras do CPP:
– ressalvadas as excepções previstas neste Código, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito (art.o 245.o, n.o 2, do CPP);
– nos casos de conexão, pode levantar-se um único auto de notícia (art.o 226.o, n.o 4, do CPP);
– há conexão de processos quando: a) o mesmo agente tiver cometido vários crimes; ou b) o mesmo crime tiver sido cometido por vários agentes em comparticipação (art.o 15.o, n.o 1, do CPP);
– o Ministério Público encerra o inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação, nos prazos máximos de seis meses, se houver arguidos presos, ou de oito meses, se os não houver (art.o 258.o, n.o 1, do CPP); para estes efeitos, o prazo conta-se a partir do momento em que o inquérito tiver passado a correr contra pessoa determinada ou em que se tiver verificado a constituição de arguido (art.o 258.o, n.o 3, do CPP);
– o inquérito é arquivado se não tiver sido possível ao Ministério Público obter indícios suficientes da verificação de crime ou de quem foram os agentes (art.o 259.o, n.o 2, do CPP);
– no prazo de trinta dias, contado da data do despacho de arquivamento, o imediato superior hierárquico do Ministério Público, se não tiver sido requerida abertura de instrução, pode determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam, indicando, neste caso, as diligências a efectuar e o prazo para o seu cumprimento (art.o 260.o do CPP);
– esgotado este prazo, o inquérito só pode ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento (art.o 261.o, n.o 1, do CPP).
Ante os elementos processuais acima coligidos e referidos na parte II do presente acórdão de recurso, pode verificar-se o seguinte, com pertinência à decisão do recurso intercalar e da questão de alegada violação do princípio de ne bis in idem posta na parte inicial da motivação do recurso final:
– o arquivamento, decidido em 28 de Fevereiro de 2017, do então Inquérito Penal n.o 8809/2016, na parte respeitante à pessoa suspeitosa “Ah Mui”, se deveu à circunstância de, até essa data, não se ter conseguido apurar a identidade concreta nem o paradeiro da mesma (cfr. a fundamentação do despacho de arquivamento, referida no ponto 3 da parte II do presente acórdão de recurso);
– o que significa que o inquérito a respeito da pessoa suspeitosa “Ah Mui” foi arquivado nos termos da parte final do n.o 2 do art.o 259.o do CPP, por o Ministério Público ter entendido que não lhe foi possível obter indícios suficientes de quem tiver sido concretamente “Ah Mui” (ou seja, não lhe foi possível obter indícios suficientes de qual a identidade concreta de “Ah Mui”) como também agente da conduta de usura para jogo;
– sucede que em investigação subsequentemente feita pela Polícia Judiciária, conseguiu-se apurar os dados concretos da identificação da pessoa suspeitosa “Ah Mui” (a qual, afinal, é a ora recorrente), e saber o paradeiro da mesma em Macau, o que possibilitou a constituição dela como arguida e o interrogatório dela como arguida na Polícia Judiciária;
– por isso, a decisão de autuação, em 26 de Abril de 2017, do (novo) Inquérito n.o 4550/2017, subjacente aos presentes autos penais, foi motivada pelo resultado das diligências feitas pela Polícia Judiciária, em datas posteriores ao arquivamento do Inquérito n.o 8809/2016 (na parte respeitante às pessoas suspeitosas então em causa), e até 26 de Abril de 2017 (cfr. o teor de documentos referidos no ponto 5 da parte II do presente acórdão de recurso); e como o resultado dessas novas diligências investigatórias acabou por invalidar materialmente os fundamentos então invocados a respeito da pessoa suspeitosa “Ah Mui” no despacho de arquivamento do Inquérito n.o 8809/2016, este Inquérito, na parte respeitante à pessoa suspeitosa “Ah Mui”, deveria ser reaberto nos termos permitidos pelo art.o 261.o, n.o 1, do CPP (dado que através dessas novas diligências, passariam a ser reunidos indícios suficientes sobre a identidade concreta da pessoa suspeitosa “Ah Mui”, com conhecimento até do paradeiro desta em Macau);
– e como à data do despacho de arquivamento, já se encontrou, na mesma data, deduzida a acusação pública contra o comparticipante arguido B por conduta de usura para jogo, não seria processualmente inadequado fazer reabrir, por meio de um (novo) processado em separado, o inquérito contra a arguida (porque este modo de agir processualmente nem comprometeria o espírito subjacente à norma do art.o 19.o, alínea c), do CPP);
– do acima analisado decorre a consequência lógica de que o facto de o Inquérito n.o 8809/2016 ter sido arquivado na parte respeitante à pessoa então suspeitosa “Ah Mui” não é motivo impeditivo da eventualidade de a arguida ora recorrente ser acusada no Inquérito n.o 4550/2017 subjacente aos presentes autos penais (sendo certo que no caso concreto, a recorrente acabou por ser acusada em 5 de Setembro de 2017 no ora subjacente Inquérito: na verdade, depois de reabertura legal do inquérito através da autuação do ora subjacente Inquérito n.o 4550/2017, foram feitas mais outras diligências investigatórias tendentes à indiciação suficiente da ora recorrente como agente comparticipante do então arguido B na conduta de usura para jogo contra o mesmo ofendido C, a saber, a diligência do reconhecimento de pessoa feita em 4 de Maio de 2017 na Polícia Judiciária, e a diligência de visionamento, em 4 de Maio de 2017, pela mesma Polícia, em conjunto com o ofendido, do conteúdo de quatro discos compactos de gravação visual do dia 31 de Julho de 2016 dentro do Casino X);
– do acima analisado resulta também a possibilidade legal de a certidão do processado no anterior Inquérito n.o 8809/2016 ser junta aos presentes autos penais (oriundos do Inquérito n.o 4550/2017): é que o Inquérito n.o 4550/2017 é, concretamente, o processado subsequente da investigação criminal materialmente resultante da reabertura do Inquérito n.o 8809/2016 na parte respeitante à pessoa então suspeitosa “Ah Mui”;
– daí que as cópias de quatro discos compactos contentores da gravação visual poderiam sempre ser juntas (e apreendidas) aos presentes autos penais (gerados pelo Inquérito n.o 4550/2017), até, e aliás, porque a diligência de visionamento feita em 4 de Maio de 2017 no âmbito do Inquérito n.o 4550/2017, pela Polícia Judiciária em conjunto com o ofendido, diz precisamente respeito ao conteúdo dos mesmos quatro discos compactos.
Todo o acima analisado e concluído já dá para se julgar não ilegal o despacho, ora recorrido intercalarmente pela arguida, da M.ma Juíza Presidente do Tribunal Colectivo a quo, ditado na sessão da audiência de julgamento de 30 de Janeiro de 2018 (no sentido de considerar, finalmente, legal a junção, aos presentes autos penais, da então requisitada certidão do Processo n.o CR2-17-0187-PCC, emergente do Inquérito n.o 8809/2016, e das cópias de discos compactos em causa).
Improcede, pois, o recurso intercalar da arguida, sem mais indagação por prejudicada.
E agora do recurso final da arguida:
Na parte inicial da motivação deste recurso, a propósito da sua alegada tese de violação, pelo Tribunal recorrido no acórdão condenatório, do princípio de ne bis in idem, chegou a arguida a tecer argumentos a respeito da matéria em parte coincidente com a matéria então em causa no acima resolvido recurso intercalar, argumentos estes que têm que cair por terra em face da análise das coisas acima feita.
E sobre a questão de ne bis in idem, é claro que o julgamento feito pelo Tribunal Colectivo recorrido no âmbito do subjacente processo penal não pode ter violado este grande princípio, porquanto do elenco dos dados processuais coligidos e referidos na parte II do presente acórdão de recurso, resulta nítido que a própria arguida ora recorrente nunca chegou a ser acusada e julgada anteriormente, e em lado nenhum, por comparticipação na conduta de usura de jogo de 31 de Julho de 2016 dentro do Casino X, em Macau, contra o ofendido C.
Outrossim, assacou a recorrente ao acórdão condenatório da Primeira Instância a violação do art.o 355.o, n.o 2, do CPP na parte tocante à fundamentação probatória da decisão. Entretanto, visto o conteúdo do mesmo texto decisório, entende o presente Tribunal de recurso que o Tribunal recorrido já cumpriu a exigência dessa norma processual penal.
Também não se vislumbra alguma contradição entre a factualidade dada por provada pela Primeira Instância e a decisão condenatória finalmente feita no acórdão recorrido.
A recorrente usou muita tinta na motivação do seu recurso final para tentar fazer demonstrar que as provas tenham sido mal julgadas pelo Tribunal recorrido.
Pois bem, sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, vistos todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória do acórdão recorrido (tecida a partir do penúltimo parágrafo da página 8 até a linha 20 da página seguinte, do respectivo texto, a fls. 403v a 404), entende o presente Tribunal de recurso, colocado na posição de homem médio, que essa fundamentação probatória é razoável nos termos permitidos pelo art.o 114.o do CPP, e também convincente, pelo que é infundada a invocação da violação, pelo Tribunal recorrido, do princípio de in dubio pro reo.
Cumpre frisar que:
– não se pode censurar o Tribunal Colectivo recorrido por ter acreditado na versão fáctica das coisas dita pelo ofendido, isto porque não há qualquer norma jurídica a ditar que o tribunal não pode acreditar na versão fáctica dita pelo ofendido;
– o facto de as declarações de dívida referidas na motivação do recurso terem sido passadas ao indivíduo chamado B e não à própria arguida se explica pela relação de comparticipação criminosa entre os dois, na actuação de usura para jogo;
– e na relação de comparticipação criminosa, não se exige que todos os actos delinquentes tenham que ser praticados por cada um dos comparticipantes;
– no concernente à questão do conhecimento da ilicitude e do dolo por parte da arguida, os pontos 18 e 19 da matéria de facto já descrita como provada no acórdão recorrido dão para afirmar o dolo por parte da arguida na prática da conduta de usura para jogo, com conhecimento da ilicitude da conduta; e esses dois pontos de factos provados não resultam da cogitação abstracta do Tribunal sentenciador, porquanto se crê que todo o homem médio colocado na situação concreta da factualidade descrita nos antecedentes 17 pontos da matéria de facto provada irá tirar, congruentemente, à luz das regras da experiência na normalidade de situações da vida quotidiana, as mesmas ilações descritas nos referidos pontos 18 e 19.
Portanto, há que decidir da causa penal dos autos em sintonia com toda a factualidade já dada por provada no acórdão recorrido, sem violação de qualquer norma sobre a valoração da prova (porquanto todas as provas foram produzidas e/ou examinadas pelo Tribunal recorrido na audiência de julgamento, com observância do princípio do contraditório: é de fazer lembrar aqui que a Defesa foi autorizada a analisar o teor da certidão do Processo n.o CR2-17-0187-PCC e das cópias dos quatro discos compactos apreendidas nos presentes autos penais, tendo o respectivo conteúdo sido inclusivamente visionado na audiência de julgamento dos presentes autos em primeira instância).
E toda a mesma factualidade provada sustenta cabalmente (e, por isso, sem qualquer erro de subsunção de factos ao Direito, ou de qualificação jurídico-penal dos factos) a condenação da arguida pela prática, na forma consumada, em conluio e conjugação de esforços com B, de dois crimes de usura para jogo, p. e p. sobretudo pelo art.o 13.o, n.o 1, da Lei n.o 8/96/M, ainda que não tenha ficado apurado qual o montante concreto de juros retirados no processo de prática desses dois crimes (cfr. a parte final dos pontos 6 e 12 da matéria de facto provada), cabendo salientar que o que importa é ter havido efectiva cobrança de juros como contrapartida da concessão de capital para jogar em casino (cfr. os pontos 5 e 11 da matéria de facto provada).
E ao contrário do preconizado pela arguida, a mesma factualidade dada por provada em primeira instância não suporta a verificação de qualquer situação exterior (de que se fala na norma do n.o 2 do art.o 29.o do CP) susceptível de diminuir de modo considerável o grau da sua culpa na prática dos factos do empréstimo, na segunda vez, de valores ao mesmo ofendido para jogar em casino, até porque as condições do segundo empréstimo foram negociadas em concreto e de novo (e sobre o sentido e alcance da expressão “situação exterior” empregue na legiferação desta norma do CP, é de seguir os precisos ensinamentos do saudoso PROFESSOR EDUARDO CORREIA, in DIREITO CRIMINAL, Tomo II, Livraria Almedina, Coimbra, 1992 (reimpressão), páginas 208 e seguintes).
No tangente a toda a problemática da medida da pena, é de louvar, também in totum, a ora recorrida decisão condenatória recorrida, nos termos permitidos pelo art.o 631.o, n.o 5, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do CPP.
Naufraga, pois, também o recurso final da arguida, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não providos os recursos intercalar e final da arguida, com custas em ambos os recursos pela arguida (com cinco UC de taxa de justiça no recurso intercalar, e com doze UC de taxa de justiça no recurso final).
Macau, 4 de Junho de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
Processo n.º 452/2018 Pág. 35/35