Processo nº 916/2018
Data do Acórdão: 28MAIO2020
Assuntos:
Responsabilidade civil extracontratual da RAEM
Serviços da Saúde
Indemnização pelos danos morais
SUMÁRIO
A indemnização pelos danos não patrimoniais consiste na obrigação pecuniária imposto ao agente e visa compensar ou pelo menos proporcionar ao lesado uma satisfação moral para aliviar os prejuízos (como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, os complexos de ordem estética), insusceptíveis de avaliação pecuniária por atingirem bens pessoais (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, a honra ou o bom nome) que não integram o património do lesado.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 916/2018
Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I
No âmbito dos autos da acção para a efectivação da responsabilidade civil extracontratual, instaurada por A, devidamente identificada nos autos, contra os Serviços de Saúde da RAE, e que correm os seus termos no Tribunal Administrativo onde foi registada sob o nº 250/15-RA, foi proferida a seguinte sentença julgando improcedente a acção, absolvendo o Réu do pedido:
I. Relatório
Autora A, melhor id. nos autos,
Vem intentar a presente
Acção para Efectivação da Responsabilidade Civil Extracontratual
Contra
Réu Serviços de Saúde
com os fundamentos apresentados constantes da p.i. de fls.2 a 15 e 23 a 30,
concluiu pedindo que seja julgada procedente por ser provada a presente acção e, em consequência, ser o Réu condenado a pagar a quantia de MOP500.000,00, acrescida de juros contados à taxa legal supletiva, desde a data da sentença e até integral pagamento;
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O Réu contestou a acção com os fundamentos de fls.37 a 63 dos autos, concluiu pedindo que seja julgada improcedente a acção e em consequência, absolvido o Réu do pedido.
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A Autora apresentou a sua réplica com os fundamentos de fls.72 a 76 dos autos.
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Este Tribunal é o competente em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e de legitimidade “ad causam”.
O processo é o próprio.
Inexistem nulidades, ou questões prévias que obstem a apreciação “de meritis”.
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Procedeu-se a julgamento com observância do devido formalismo.
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A Digna Magistrada do M.º P.º junto deste Tribunal após vista final emitiu parecer com os fundamentos de fls. 342 a 346.
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II.- Factos:
Dos autos resulta assente a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
Da Matéria de Facto Assente:
- Em 22-06-2007, a A. caiu acidentalmente num restaurante em Macau e sofreu uma fractura severa do terço superior do tronco do úmero do braço esquerdo(alínea A) dos factos assentes).
- Deslocou-se para tratamento ao Centro Hospital Conde de S. Januário (CHCSJ), onde em 23-06-2007 foi submetida a uma operação cirúrgica para realinhamento e fixação interna do úmero por pinos e arames, a qual foi realizada pelo Dr. B, médico-cirurgião(alínea B) dos factos assentes).
- Após a alta e por indicação do Dr. B, fez tratamento ambulatório de fisioterapia no CHCSJ durante os seis meses seguintes(alínea C) dos factos assentes).
- Em 03-09-2013 veio a ser operada no “C Hospital” em Hong Kong à parte superior do braço esquerdo, tendo-lhe sido colocada uma placa para fixação e feito enxerto ósseo (aloenenxerto) (alínea D) dos factos assentes).
- Em resultado desta operação o estado da Autora melhorou e a fractura curou gradualmente. (alínea E) dos factos assentes).
- A seguir a A. fez tratamentos intensivos de fisioterapia para melhorar o funcionamento do ombro(alínea F) dos factos assentes).
- Foi depois seguida regularmente no “C Hospital” em Hong Kong e os recentes raios-X mostraram a consolidação do local da fractura e a incorporação do enxerto ósseo(alínea G) dos factos assentes).
- Actualmente o braço esquerdo tem bom músculo e extensão de movimentos e apresenta apenas um pequeno défice quando comparado com o braço direito(alínea H) dos factos assentes).
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Da Base Instrutória:
- Depois os seis meses do tratamento ambulatório de fisioterapia, a A. continuou a sentir no braço esquerdo limitações na mobilidade, pois não conseguia levantá-lo, e dores fortes permanentes, que afectavam o seu sono (resposta ao quesito 1° da base instrutória).
- A Autora foi a diversas consultas no CHCSJ, nas quais o Dr. B lhe foi sempre dizendo que essas dores eram consequência normal da lesão sofrida lhe prescrevia analgésicos, anti-inflamatórios, vitamina D e medicamentos para a osteoporose (resposta ao quesito 2° da base instrutória).
- Entre as duas cirurgias referidas em A) e D) a Autora esteve em sofrimento (resposta ao quesito 4° da base instrutória).
- Em Julho de 2013 a A. foi consultar o médico fisiatra Dr. D, que exercia em consultório privado, queixando-se das limitações na utilização do braço e das dores que sentia (resposta ao quesito 6° da base instrutória).
- O Dr. D disse à A. que as limitações e dores que sentia eram consequência da fractura sofrida não estar consolidada (resposta ao quesito 7° da base instrutória).
- A A. apresentava uma pseudo-artrose no local da fractura e osteoporose na região na zona da junção ao cotovelo esquerdo (resposta ao quesito 8° da base instrutória).
- Por estas razões aquele médico aconselhou vigorosamente a A. a submeter-se à avaliação de um outro médico de ortopedia e a uma possível intervenção cirúrgica (resposta ao quesito 9° da base instrutória).
- Afirmou ainda este médico ser injustificável que, face à natureza da lesão sofrida a A. estivesse seis anos sem consolidar a fractura (resposta ao quesito 10° da base instrutória).
- A A. apresentou o relatório elaborado pelo Dr. D no CHCSJ tendo sido passadas guias à A. a fim de esta ser observada e tratada em Hong Kong (resposta ao quesito 11° da base instrutória).
- A A. foi ao “C Hospital” em Hong Kong, em Agosto de 2013, onde foi confirmado que tinha função diminuída no braço e no ombro, que não podia levantar porque continuava partido, e dores que afectavam o seu sono (resposta ao quesito 12° da base instrutória).
- As melhoras foram imediatas, pois em 06.09.2013, a A. já estava de regresso a Macau quase sem dores (resposta ao quesito 13° da base instrutória).
- A cirurgia de recurso realizada no “C Hospital” em Hong Kong é recomendada para resolver e consolidar a fractura que a Autora sofreu (resposta ao quesito 14° da base instrutória).
- O Dr. B felicitou a Autora pelo sucesso da cirurgia de Hong Kong (resposta ao quesito 15° da base instrutória).
- O tratamento de uma fractura deste tipo numa pessoa como a Autora deve ser feito através de intervenção cirúrgica (resposta ao quesito 18° da base instrutória).
- O objectivo desta cirurgia é fixar o osso, evitando que este se mova, para que se forme um calo ósseo no local da fractura e o osso volte a unir (resposta ao quesito 20° da base instrutória).
- Os doentes com osteoporose têm mais dificuldade na consolidação das fracturas ósseas (resposta ao quesito 21° da base instrutória).
- Nos pacientes em que, após a cirurgia, o osso não consolida, forma-se no local da fratura aquilo a que se chama uma “pseudo-articulação” ou “pseudo-artrose” (resposta ao quesito 23° da base instrutória).
- Se o osso não consolidar, deve recorrer-se à cirurgia de recurso, para os casos em que a primeira cirurgia realizada não levou à consolidação do osso (resposta ao quesito 25° da base instrutória).
- Esta segunda cirurgia e uma cirurgia mais invasiva, que implica retirar um excerto ósseo de outra parte do corpo e implementá-lo na zona fracturada, para estimular o crescimento ósseo nessa zona (resposta ao quesito 26° da base instrutória).
- Foram prescritos a A. vários medicamentos, à base de cálcio e ainda o “Forteo”, medicamento administrado por via de injecção e que tem como objectivo reduzir a osteoporose e estimular o crescimento dos ossos (resposta ao quesito 29° da base instrutória).
- O tratamento com estes medicamentos não resultou no caso da A. (resposta ao quesito 30° da base instrutória).
- É sempre melhor que a fractura se consolide sem mais intervenções cirúrgicas (resposta ao quesito 33° da base instrutória).
- A A. foi sempre acompanhada em consultas e tratamentos no CHCSJ ou no “C Hospital” em Hong Kong (resposta ao quesito 38° da base instrutória).
- Durante esses 6 anos, a A. confiou nas informações e tratamentos que os médicos do CHCSJ lhe prestaram (resposta ao quesito 39° da base instrutória).
- Antes do acidente a A. tinha uma condição física perfeita no braço esquerdo, sem quaisquer limitações na movimentação e sem dores e dormia perfeitamente (resposta ao quesito 40° da base instrutória).
- Depois da primeira operação a que foi submetida após o acidente sofreu dores muito fortes e permanentes, dia e noite, especialmente quando movimentava o braço e nos dias mais húmidos e chuvosos (resposta ao quesito 41° da base instrutória).
- Muitas vezes chorava por efeito das dores fortes que sentia (resposta ao quesito 42° da base instrutória).
- Por causa dessas dores passou a ter dificuldade em adormecer, acordava muitas vezes a meio da noite, nomeadamente sempre que se movimentava, e readormecia com dificuldades, passando muitas noites em claro (resposta ao quesito 43° da base instrutória).
- Deixou de poder tratar das tarefas normais da sua vida pessoal e familiar, nomeadamente de tratar da lide doméstica (resposta ao quesito 44° da base instrutória).
- Sentia dores quando tomava banho ou quando se vestia (resposta ao quesito 45° da base instrutória).
- Não conseguia vestir sozinha diversas peças de vestuário, nomeadamente meias ou blusas que abotoam ou apertam atrás (resposta ao quesito 46° da base instrutória).
- Deixou de conseguir cozinhar (resposta ao quesito 47° da base instrutória).
- Quando tomava refeições não conseguia utilizar o braço esquerdo, nomeadamente para cortar os alimentos, tendo de ser terceiros a fazê-lo (resposta ao quesito 48° da base instrutória).
- Tinha dificuldade em andar em transportes públicos por não se conseguir agarrar ou sequer apoiar com a mão esquerda (resposta ao quesito 49° da base instrutória).
- Era-lhe difícil andar na rua pois doía-lhe sempre que alguém lhe tocava ou dava um encontrão (resposta ao quesito 50° da base instrutória).
- Sentia limitações de toda a ordem e apenas podia realizar as mais diversas tarefas do dia a dia com a ajuda de terceiros, especialmente do seu marido e da sua empregada doméstica (resposta ao quesito 51° da base instrutória).
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III. Fundamentos:
Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
Pela presente acção, pretendeu a A. que seja indemnizada dos danos não patrimoniais resultantes do alegadamente errado tratamento da fractura sofrida, praticado pelo Dr. B no exercício das suas funções no CHCSJ.
Para o efeito alegou que, quanto foi submetida à operação cirúrgica para realinhamento e fixação interna do úmero por pinos e arames no CHCSJ, o Dr. B tratou de modo desadequado a fractura sofrida por esta, e após a intervenção, face às consultas da A, se limitava a receitar-lhe analgésticos e sempre recusou que a submetesse a diferente tratamento, fazendo com que a A. sofresse as limitações na utilização do braço e das dores permanentes,
E que o Dr. B violou as elementares regras da arte médica e actuou com manifesta falta de cuidado ou com deficiente conhecimento médico, conduta essa faz responsabilizar o R, perante a. A.
No que se refere aos danos, alegou as dores fortes que sofria, insónia, dificuldades a tratar das tarefas normais da sua vida pessoal e familiar por causa das limitações no braço, etc.
Contestando a acção, vem o Réu, depois de ter invocado a prescrição do direito da A. defender pela falta da prova quanto à culpa, ao nexo de causalidade, e aos danos susceptíveis de tutela jurídica, requisitos esses necessários à efectivação de pretensão indemnizatória da A.
Tendo em conta a exposição feita, proceder-se-á à análise das seguintes questões:
1. A prescrição do direito de A..
2. A lesão sofrida pela A e sua causa.
3. A responsabilidade do R..
4. Os direitos da A..
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1. A Prescrição
Da matéria de facto dada como provada, resultou que o acidente da fractura ocorreu em 22 de Junho de 2007, e que foi submetida a uma operação cirúrgica realizada pelo Dr. B, no CHCSJ em 23 de Junho de 2007. A lesão e os danos sofridos pela A., nos termos alegados por esta, eram consequência decorrida desta intervenção.
Mais provou:
- Após ter alta, fez tratamento ambulatório de fisioterapia no CHCSJ durante os seis meses seguintes.
- Entretanto, foi a diversas consultas no CHCSJ, nas quais o Dr. B lhe foi sempre dizendo que essas dores eram consequência normal da lesão sofrida lhe prescrevia analgésicos, anti-inflamatórios, vitamina D e medicamentos para a osteoporose.
- Durante 6 anos, a A. confiou nas informações e tratamentos que os médicos do CHCSJ lhe prestaram.
- Em Julho de 2013 a A. foi consultar o médico fisiatra Dr.D, foi-lhe dito que as limitações na utilização do braço e dores que sentia eram consequência da fractura não consolidada.
- Na sequência disso, foi enviada ao “C Hospital”, em Hong Kong, em Agosto de 2013, onde foi-lhe confirmado que tinha função diminuída no braço que continuava partido, e dores que afectavam o seu sono.
- Em 3 de Setembro de 2013, veio a ser operada a A. em“C Hospital”.
A ora acção foi intentada em 8 de Outubro de 2015.
Será que já prescreveu o direito indemnizatório da A. ?
O n.º 1 do art.º 491.º do CCM dispõe “O direito de indemnização prescreve no prazo de 3 anos, a contar da data em que o lesado teve ou deveria ter tido conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, embora com desconhecimento da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso.”
O R. sempre insistiu que o prazo de prescrição de 3 anos contaria a partir do dia 23 de Julho de 2007, data em que foi realizada tal intervenção cirúrgica no CHCSJ, ou do fim do tratamento ambulatório de fisioterapia levado a cabo pelo CHCSJ, pois foi naquela altura que a A. teve conhecimento do direito por si alegado, bem como da identidade do médico, eventual responsável pelos seus danos sofridos.
Com o devido respeito, a tese do R. afigurar-se-ia forçada. Pois considerados os factos provados na sua globalidade, dificilmente a A. conhecia ou devia ter conhecido o direito indemnizatório que lhe assistiria, e da pessoa do responsável nas supra referidas datas.
Até à consultada marcada com o médico, Dr.D em Julho de 2013, a A. como nunca ter sido chamada à atenção sobre as causas do seu sofrimento, sempre confiava que os danos sofridos foram consequência normal do tratamento propiciado pelo médico do CHCSJ. E até lá, Ela podia ter achado que os médicos do CHCSJ actuavam bem, e que o seu sofrimento ia aliviando naturalmente à medida do decurso do tempo, pelo que nem sequer se lembrava de meter uma acção contra o respectivo responsável e o R..
Nestes termos, discordamos do R. quanto à invocada prescrição, uma vez que aquando da propositura da acção em Outubro de 2015, obviamente não decorreu o prazo de 3 anos sobre a data em que a A teve ou deveria ter tido conhecimento do seu direito. O direito da A. não se encontra prescrito.
Pelo que, julga-se improcedente esta excepção.
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2. A lesão sofrida pela A. e suas causas
Os danos, nomeadamente não patrimoniais, alegadamente imputáveis ao R. ocorriam desde a primeira intervenção cirúrgica feita à A. em 2007, até o seu envio para a consulta em Hong Kong em 2013.
Segundo a A., o tratamento “errado” realizado pelo médico do CHCSJ, que resultava no sofrimento da A. podem ter fontes diversas:
Em primeiro lugar, a primeira intervenção cirúrgica operada pelo médico Dr. B em 23 de Junho de 2007, que levou à não consolidação da fractura, e
Em segundo, a falta da realização tempestiva de uma nova cirurgia pelo mesmo médico e a utilização do método da prescrição de medicamento inadequado para o caso da A.
Cumpre-nos saber se em relação a cada destes factos lesivos fontes dos danos, se verificou os requisitos para fazer responder civilmente o R. .
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3.A responsabilidade do Réu.
Dispõe o Decreto-Lei n.º 28/91/M, de 22 de Abril, o art.º 2.º, “a Administração do Território e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante os lesados, pelos actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício.”
Mais dispõe o art.º 3.º, “Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, os titulares dos órgãos e agentes administrativos da Administração do Território e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente pela prática de actos ilícitos, se tiverem excedido os limites das suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa, tiverem procedido dolosamente.”
Dessas normas, depreende-se que, a RAEM responde civilmente perante os lesados nos termos que se responsabiliza os seus órgãos e agentes, e que para impor qualquer obrigação de indemnizar ao respectivo órgão ou agente, é preciso que haja os actos materiais ilícitos culposo dos respectivos órgãos ou agentes. Além disso, é indispensável que haja um nexo de causalidade entre os actos ilícitos e a lesão sofrida pela vítima.
Começamos pela ilicitude do acto.
O artigo 7.º dispõe “1. Para os efeitos deste diploma, a ilicitude consiste na violação do direito de outrem ou de uma disposição legal destinada a proteger os seus interesses. 2. Serão também considerados ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração.”
In casu, os tratamentos médicos facultados pelo CHCSJ, incluindo os actos da intervenção cirúrgica, consubstanciam em actos materiais. O juízo de adequação e a verificação da ilicitude passam a depender da violação ou não as normas legais e princípios gerais aplicáveis, bem como as regras de ordem técnica e de prudência comum, tratando-se da “ilicitude de condutas” (cfr.Vieira de Andrade, A responsabilidade por danos decorrentes do exercício da função administrativa na nova lei sobre responsabilidade civil do Estado e demais entes públicos, pag.365).
Logo à partida, no que respeita à primeira intervenção cirúrgica, não resultou provada nenhuma matéria de facto à nos indiciar pela inadequação da primeira intervenção cirúrgica feita à A. pelo médico Dr. B em 23 de Junho de 2007, nem provado que o médico em causa podia ter adoptado outro tratamento diferente e mais adequado perante a fractura sofrida pela A.
Como afirmado nas respostas aos quesitos 18.º “o tratamento de uma fractura deste tipo numa pessoa como a Autora deve ser feito através de intervenção cirúrgica” e 20.º “o objectivo desta cirurgia é fixar o osso, evitando que este se mova, para que se forme um calo ósseo no local da fractura e o osso volte a unir”, como é fácil de constatar que a primeira intervenção cirúrgica chegou a ser concluída sem sofrer as vicissitudes anómalas, e por outro lado, admitia-se que a não consolidação da fractura integra os riscos normais e admissíveis da primeira cirurgia como mencionado na resposta ao quesito 21.º, “Os doentes com osteoporose têm mais dificuldade na consolidação das fracturas ósseas”.
Assim sendo, os factos provados não nos permitiriam concluir que o médico Dr. B infringiu as “normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis” ou “as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração” durante a primeira cirúrgia.
A questão passa a ser então pela análise da adequação de tratamento posterior realizado para tratar o insucesso da primeira cirurgia.
Resultou demonstrado que “se o osso não consolidar, deve recorrer-se à cirurgia de recurso, para os casos em que a primeira cirurgia realizada não levou à consolidação do osso.” (cfr. resposta ao quesito 25.º da base instrutória) Todavia, por outro lado, não devia olvidar que foi provado também que “é sempre melhor que a fractura se consolide sem mais intervenções” (cfr. resposta ao quesito 33.º da base instrutória).
Numa apreciação global dos dois factos supraditos, mesmo admitir a necessidade da nova cirurgia para a consolidação do osso, não ficou também de todo excluído o método conservador e menos invasivo adoptado pelo médico do CHCSJ no caso concreto – quando prescrevia analgésicos, anti-inflamatórios, vitamina D e medicamentos para osteoporose, método esse que é “sempre melhor”, comparando com uma nova cirurgia. Daí pelo menos, não se devia tirar, com uma maior segurança, a conclusão de que o tratamento de prescrição de medicamentos feito pelo médico do CHCSJ é necessariamente desadequado ou menos adequado que uma segunda cirurgia para tratar o caso da A..
Por outro lado, da factualidade comprovada não resultou qual seria o melhor momento para, em vez de continuar a aguardar pela consolidação natural da fractura, recorrer, sem mais hesitações, a uma nova cirurgia para o tratamento da fractura, ou qual seria o prazo objectivamente razoável para esperar a consolidação natural da fractura – 3 meses, 6 meses ou 1 ano a contar da primeira cirurgia?
Sendo assim, ainda que tenha reconhecido a inadequação do procedimento médico adoptado no caso concreto, como não se sabe, em termos objectivos e científicos, a partir de que momento aquele tratamento passa a ser considerado intempestivo, não se depreenderia aqui se alguma “legis artis” ou normas ou princípios legais foram postas em causa pelo atraso na marcação da nova cirurgia, procedimento de tratamento supostamente mais correcto.
Nestes termos, não há actos ilícitos neste caso, e por conseguinte, não há como responsabilizar o R. pelos danos alegados.
Sem necessidade de abordar a questão dos direitos que assistem à A..
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Tudo visto, outra solução não nos resta senão improceder a acção.
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IV-Decisão:
Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga improcedente a acção e em consequência, decide absolver o Réu dos pedidos formulados pela A..
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Custas pela A., com taxa de justiça de 7UC.
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Fixa-se em 3UC a pagar a favor do perito, a ser adiantado pelo GPTUI.
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Registe e notifique.
Não se conformando com o decidido, veio a Autora recorrer da mesma para este Tribunal de Segunda Instância.
Para o efeito a Autora formulou as seguintes conclusões:
1.ª- A decisão recorrida padece de erro de julgamento no que respeita à correcta subsunção dos factos provados ao Direito, impondo-se conclusão diversa que resulta daquela;
2.ª- Tal erro ocorreu na operação realizada pelo Tribunal de avaliação da aptidão dos factos provados para integração da norma em causa, em ordem a concluir se os mesmos preenchem ou não o conceito de ilicitude nela definido;
3.ª- São ilícitos, entre outros, os actos materiais que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração;
4.ª- A ilicitude é compreendida como sinónimo de antijuridicidade e expressa-se num juízo negativo formulada pela ordem jurídica, que incide, conforme as situações, sobre o facto ou sobre o seu resultado;
5.ª- A ilicitude não se basta com a lesão antijurídica de posições jurídicas subjectivas substantivas, exige ainda a violação de normas e princípios jurídicos, de regras de ordem técnica (leges artis) ou de deveres objectivos de cuidado;
6.ª- As normas legais ou de conduta mais não são do que o conjunto de regras que, em cada uma das actividades técnico-científicas, devam ser tomadas em consideração para que os bens protegidos por tais normas não sejam lesados;
7.ª- No que respeita à actividade médica, assume importância decisiva é a observância das regras de ordem técnica e de prudência comum, o que implica a necessidade da conformação da actuação do médico com as exigências da leges artis;
8.ª- As leges artis correspondem ao conjunto de regras técnicas de tratamento e intervenção, assim como de conveniência e idoneidade dos meios, que, segundo a comunidade científica e académica, devem ser adoptados num caso concreto para o exercício da arte de curar e os conhecimentos científicos existentes na altura da sua actuação, de acordo com um dever objectivo de cuidado, assim como com certos deveres específicos, como seja o dever de utilizar a técnica adequada;
9.ª- A verificação da ilicitude na actuação do médico implica a prova da violação das leges artis;
10.ª- Ao invés do explicitado na sentença recorrida, a leitura global e integrada da factualidade provada e não provada é suficiente para dar por verificado o pressuposto da responsabilidade delitual aqui em causa;
11.ª- Não está em causa que a fractura da Recorrente devesse ou não ser tratada através de uma intervenção cirúrgica, mas antes saber se esta cirurgia foi realizada nos termos que eram exigidos pelas leges artis, se a mesma se conformou com as regras técnicas de tratamento e intervenção, de conveniência e idoneidade que, segundo a comunidade médica, deveriam ter sido adoptadas no caso concreto para a cura da Recorrente;
12.ª- A fractura em causa era uma fractura severa do terço superior do tronco do úmero do braço esquerdo;
13.ª- O objectivo desta cirurgia era fixar o osso, evitando que este se movesse, com vista à formação de um calo ósseo no local da fractura para que o osso voltasse a unir;
14.ª- A Recorrente tinha no momento da cirurgia 70 de idade e não se provou que a mesma, nesse momento padecesse de osteoporose, sabendo-se no entanto, pelo menos, que os doentes com esta doença têm mais dificuldades na consolidação das fracturas ósseas;
15.ª- A cirurgia realizada no CHCSJ consistiu na introdução de cavilha no osso sem fixação da mesma ao osso e apenas presa a este por de dois anéis metálicos presos aos topos do osso fracturado;
16.ª- A cirurgia realizada em Hong Kong consistiu na introdução de cavilha com fixação da mesma ao osso através de parafusos;
17.ª- A cirurgia realizada no CHCSJ não alcançou os objectos a que ia proposta, ao invés, a cirurgia realizada em Hong Kong foi de imediato coroada de êxito;
18.ª- A cirurgia realizada em Hong Kong era a recomendada para resolver e consolidar a fractura que a Autora sofreu;
19.ª- Não se provou que, ainda hoje, a abordagem a um paciente com o mesmo quadro clínico da Recorrente, o mesmo tipo de fractura e a mesma faixa etária, fosse exactamente como foi feito na cirurgia de Junho de 2007;
20.a - A razão do insucesso da cirurgia realizada o CHCSJ ficou a dever-se ao facto de se ter recorrido à utilização de cavilha com fixação externa ao osso através de dois anéis metálicos colocados nos topos do osso fracturado;
21.ª- Em virtude da fractura e do osso em causa, esta técnica não era suficiente nem confiável com vista a obter o resultado desejado, imobilização e consequente consolidação do osso;
22.a- A não consolidação do osso da Recorrente, na sequência da cirurgia referida, ficou a dever-se ao facto de a técnica utilizada na referido cirurgia não ter logrado imobilizar o referido osso, condição necessária à consolidação do mesmo;
23.ª- O sucesso imediato da cirurgia realizada em Hong Kong, apesar de a Recorrente ter já mais 6 anos dos que os que tinha em 2007 e de, entretanto, se ter diagnosticado que padecia de osteoporose, deveu-se ao facto de se ter feito a fixação interna da cavilha ao osso e se ter feito enxerto ósseo;
24.ª- In casu, não está em causa saber se se verificaram erros ou situações anómalas no acto de realização de tal cirurgia, mas antes saber se a técnica utilizada nessa cirurgia era ou não a mais adequada e conveniente para resolver o problema suscitado por aquela concreta fractura da Recorrente;
25.ª- A técnica utilizada na cirurgia realizada em Macau era “insuficienteˮ para alcançar o objectivo que a mesma deveria alcançar, sendo que a técnica recomendada, para essa cirurgia, era a que foi utilizada anos mais tarde em Hong Kong;
26.ª- A idade e doença da Recorrente eram dados objectivos com que o referido médico tinha de contar na escolha da técnica a utilizar na referida cirurgia;
27.ª- O tribunal errou na justificação que deu para considerar não verificado a ilicitude, desde logo porque não se provou que a não consolidação do osso constituísse um risco normal e admissível da cirurgia realizada, sendo que não se provou que a Recorrente tivesse essa doença no momento da referida cirurgia;
28.ª- Não se tendo provado os factos dos quesitos n.os 16.°, 17.° e 31.°, não poderia o Tribunal recorrido concluir no sentido de que a não consolidação do osso constitui era um risco normal e admissível da cirurgia realizada;
29.ª- Este argumento exigia que, do ponto de vista lógico, se demonstrasse primeiro que a tal não consolidação se não ficou a dever a um outro factor qualquer;
30.ª- O que se afirma para a cirurgia vale, por maioria de razão, para o tratamento médico disponibilizado à Recorrente pelo referido médico desde a referia cirurgia (23 de Junho de 2007) até Julho de 2013;
31.ª- A argumentação da Sentença recorrida para dar por não verificado o requisito da ilicitude no que respeita ao referido tratamento é totalmente desajustada e incompreensível à luz da finalidade que preside a qualquer processo judicial que é a busca da boa e justa decisão da causa;
32.ª- Uma visão global e integrada da factualidade permite concluir claramente que o tratamento médico prestado à Recorrente não foi, a vários títulos, o que se impunha em termos das leges artis;
33.ª- A factualidade apurada aponta claramente para a existência de erro/negligência no tratamento médico prestado à Recorrente, sendo o mesmo a causa do longo período de mais de 6 anos de não consolidação do úmero e das fortes dores e transtornos por que passou a Recorrente ao longo de todo esse tempo;
34.a- A vários títulos se comprova a existência de erro de diagnóstico e de tratamento no tratamento médico referido;
35.a- Primeiro, o médico não deveria ter prescrito tratamento ambulatório incluindo tipos de fisioterapia que a Récorrente não deveria ter realizado enquanto o osso não estivesse consolidado, nomeadamente os prescritos nos pontos 3 a 5 a fls., 26 e 28 do processo clínico;
36.a- Segundo, o médico que tratou a Recorrente afirmou-lhe, por várias vezes, ao longo desse período, que as dores de que se queixava eram consequência normal da lesão sofrida, quando se veio a demonstrar que tal era, antes, consequência de uma fractura não consolidada durante mais de 6 anos;
37.a- Terceiro, ter prescrito à Recorrente, durante todo o referido período, medicação para ajudar o osso a consolidar e manter e estimular a mobilidade das articulações, tratamento que veio a demonstrar-se ser totalmente ineficaz para a cura da Recorrente;
38.a- Quarto, ter deixado passar mais de 6 anos, sem se ter comprovado qualquer evolução positiva no estado de saúde da Recorrente, sabendo ou devendo saber que a fractura necessitava de cerca 6 meses para consolidar;
39.a- Quinto, ter permanecido durante mais de 6 anos sem recomendar a cirurgia de recurso, apesar de saber ou dever saber que, depois de cerca de 6 meses depois da cirurgia, se a fractura não consolidasse, deveria recomendar a cirurgia de recurso, por ser a que se impunha no caso;
40.a- É ilógico e mesmo absurdo afirmar-se que seria sempre melhor que a fractura consolidasse sem mais intervenções cirúrgicas, quando se comprova que essa evolução já não ocorreria;
41.ª- É também ilógica e absurda a afirmação constante da sentença de que o atraso na marcação da nova cirurgia não traduz a violação das leges artis, dado não se saber em termos objectivos e científicos a partir de que momento aquele tratamento médico era considerado intempestivo, apesar de se poder reconhecer como inadequado o procedimento médico adoptado no caso concreto;
42.ª- O facto de não existir factualidade relativamente ao momento a partir do qual tal cirurgia deveria ser recomendada, é facto notório que mais de 6 anos é tempo de mais para suportar um tratamento que não conduziu à consolidação do osso, sendo que os factos notórios não carecem de ser alegados, provados ou levados ao questionário;
43.ª- O Tribunal sempre pode recorrer às presunções judiciais para chegar ao conhecimento de determinado facto;
44.ª- As presunções judiciais são ilações que o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido, tendo por base a experiência comum, a lógica corrente, a intuição humana e recorrendo a juízos de probabilidade;
45.ª- Fosse através dos factos notórios, fosse através do recurso à presunção judicial, não poderia o douto Tribunal recorrido deixar de concluir que tempo superior a 6 anos é mais do que suficiente para concluir que há muito deveria ter o médico sugerido à Recorrente a realização de tal cirurgia;
46.ª- O tempo para a consolidação do referido osso é de cerca de 6 meses, tal como afirmado pelas testemunhas e pela perícia médica e que o douto Ac. relevou, sendo depois desse período deveria ter sido recomendada a realização de tal cirurgia, o que nunca chegou a ser;
47.ª- Deveria o Tribunal recorrido ter considerado que cerca de seis meses depois da intervenção cirúrgica seria o tempo a partir do qual deveria ser recomendada a referida cirurgia como meio adequado e preferente de tratamento da fractura da Recorrente que se mantinha sem consolidar e a Recorrente com dores fortes e permanentes;
48.ª- A sentença recorrida violou, entre o mais, as normas do artigo 7.°/1/2 do DL n.º 28/91/M, de 22 de Abril.
TERMOS EM QUE, contando com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida, substituindo por outra que considere verificado o pressuposto da ilicitude e ordenando a baixa dos autos ao Tribunal recorrido com vista ao prosseguimento da apreciação do pedido da Recorrente.
Assim se fazendo a costumada
JUSTIÇA!
Notificado das alegações do recurso interposto pelos Autores, o Réu Serviços de Saúde da RAEM respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
Subidos os autos a esta Instância, foi no despacho da admissão do recurso proferido pelo relator determinada a abertura da vista ao M. P..
Em sede da vista, o Ilustre Procurador-Adjunto emitiu o seu parecer.
II
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, ex vi dos artºs 1º e 149º/1 do CPAC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
De acordo com o vertido nas conclusões tecidas, a Recorrente imputou o erro de direito à sentença recorrida, e pediu, em caso de êxito da imputação, a revogação da decisão de direito da 1ª instância e em substituição a prolação da nova decisão de direito e a consequente condenação do Réu nos termos peticionados.
Portanto, a única questão suscitada pela Recorrente é a de saber se é suficiente a factualidade provada para dar por verificado o pressuposto da responsabilidade civil extra-contratual do Réu.
Em sede de vista, o Ilustre Magistrado do Ministério Público emitu o seu seguinte parecer:
1.
A, melhor identificada nos autos, instaurou contra os Serviços de Saúde, acção para efectivação de responsabilidade civil extracontratual pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de 500.000,00 patacas.
Por douta sentença do Tribunal Administrativo proferida em 17 de Maio de 2018, foi a referida acção julgada improcedente e, em consequência, absolvida a Ré do pedido.
Inconformada com a dita sentença, a Autora interpôs o presente recurso jurisdicional para o Tribunal de Segunda Instância, no qual aponta à sentença recorrida, em síntese, erro de julgamento no que respeita à correcta subsunção dos factos provados ao Direito, porquanto, em seu entender se impunha concluir pela violação das leges artis por parte do médico do Centro Hospital Conde de São Januário (CHCSJ) que operou a Autora e, posteriormente, a acompanhou, podendo assim dizer-se verificado o pressuposto da ilicitude, ao contrário do que decidiu o tribunal recorrido.
Nos termos previstos no artigo 157.º do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC), vem o Ministério Público pronunciar-se nos termos que seguem:
2.
2.1.
A douta sentença recorrida julgou a acção improcedente com base na seguinte ordem de considerações:
«A questão passa então pela análise da adequação de tratamento posterior realizado para tratar o insucesso da primeira cirurgia.
Resultou demonstrado que ‘e o osso não consolidar, deve recorrer-se à cirurgia de recurso, para os casos em que a primeira cirurgia realizada não levou à consolidação do osso’(...). Todavia, por outro lado, não devia olvidar que foi provado também que ‘sempre melhor que a fractura se consolide sem mais intervenções’(...).
Numa apreciação global dos dois factos supraditos, mesmo admitir a necessidade da nova cirurgia para a consolidação do osso, não ficou também de todo excluído o método conservador e menos invasivo adoptado pelo médico do CHCSJ no caso concreto, quando prescrevia analgésicos, anti-inflamatórios, vitamina D e medicamentos para osteoporose, método esse que é ‘sempre melhor’ comparando com uma nova cirurgia. Daí, pelo menos, não se devia tirar, com uma maior segurança, a conclusão de que o tratamento de prescrição de medicamentos feito pelo médico do CHSJ é necessariamente desadequado ou menos adequado que uma segunda cirurgia para tratar o caso da Autora.
Por outro lado, da factualidade comprovada não resultou qual seria melhor momento para, em vez de continuar a aguardar pela consolidação natural da fractura, ou qual seria o prazo objectivamente razoável para esperar a consolidação natural da fractura - 3 meses, 6 meses ou 1 ano a contar da primeira cirurgia?
Sendo assim, ainda que tenha reconhecido a inadequação do procedimento médico adoptado no caso concreto, como não se sabe, em termos objectivos e científicos, a partir de que momento aquele tratamento passa a ser considerado intempestivo, não se depreenderia aqui se alguma ‘Iegis artis’ ou normas ou princípios legais foram postas em causa pelo atraso na marcação da nova cirurgia, procedimento de tratamento supostamente mais correcto.
Nestes termos, não há actos ilícitos neste caso, e por conseguinte, não há como responsabilizar o R. pelos danos alegados».
Salvo o devido respeito, não podemos acompanhar o assim decidido.
Está em causa o juízo acerca da ilicitude da actuação do médico do CHCSJ, Dr. B, que, em 23 de Junho de 2007, operou a Autora na sequência de uma queda por esta sofrida e da qual resultou a fractura do terço superior do tronco do úmero do seu braço esquerdo úmero e, depois dessa intervenção, a acompanhou.
Vejamos.
De acordo com o disposto no artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 28/91/M, de 22 de Abril, «a ilicitude consiste na violação do direito de outrem ou de uma disposição legal destinada a proteger os seus interesses (n.º 1), sendo «também considerados ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração» (n.º2).
No âmbito da responsabilidade médica «assume importância decisiva o respeito por regras técnicas, pelo que a prova da ilicitude implica a violação das leges artis, enquanto conjunto de regras técnicas de tratamento e intervenção, assim como de conveniência e idoneidade dos meios, que, segundo a comunidade científica e académica, devem ser adoptados num caso concreto para o exercício da arte de curar» (assim, ANA RAQUEL MONIZ, Quando caem em desgraça os discípulos de Hipócrates... Algumas questões sobre responsabilidade civil médica da Administração, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 50, p. 17).
A douta sentença recorrida, no essencial, considerou que se não provou a violação das leges artis, não se podendo dizer que a prescrição de medicamentos feita pelo médico do CHCSJ é menos adequada para tratar a situação da autora do que a segunda cirurgia, a chamada cirurgia de recurso.
Não nos parece. É incontroverso que, depois da primeira intervenção cirúrgica sofrida pela autora, em resultado de na sequência da mesma a fractura não ter consolidado, a Autora continuou a sofreu dores fortes permanentes e limitações na mobilidade do seu braço esquerdo.
Provou-se que nas diversas consultas após a dita intervenção cirúrgica, o Dr. B foi dizendo à Autora que essas dores eram consequência normal da lesão sofrida, prescrevendo-lhe analgésicos, anti-inflamatórios e vitamina D e medicamentos para a osteoporose.
A situação arrastou-se durante cerca de 6 anos. Só em Agosto do ano de 2013, é a que Autora foi finalmente reencaminhada para uma consulta no hospital C em Hong Kong, tendo aí sido confirmado que o braço continuava partido. Na sequência dessa confirmação, a Autora foi submetida, logo 3 de Setembro de 2013, a uma nova intervenção cirúrgica em resultado da qual o seu estado de saúde melhorou e a fractura que havia sofrido consolidou.
Parece claro, face a esta factualidade que o médico do CHCSJ, pelo menos após a primeira intervenção cirúrgica a que a Autora foi submetida, não tratou a mesma com observância das leges artis que regem a actividade médica. Na verdade, se é certo que se provou que é preferível que uma fractura óssea consolide sem mais intervenções cirúrgicas, não o é menos que também se provou que, se o osso não consolidar na sequência de uma primeira intervenção cirúrgica, se deve recorrer a uma cirurgia de recurso, embora mais invasiva pois implica retirar enxerto ósseo de outra parte do corpo e implementá-lo na zona fracturada para estimular o crescimento ósseo nessa zona.
A opção pelo meio menos invasivo, evitando a segunda cirurgia, só faz sentido enquanto essa opção for razoável, ou seja, enquanto for de esperar que a consolidação se venha a produzir, sob pena de se deixar o doente em desnecessário sofrimento, como, no caso, manifestamente sucedeu.
É certo que não resultou provado o momento a partir do qual a cirurgia de recurso era medicamente recomendada. Sabemos, no entanto, a partir do depoimento do médico fisiatra D, que foi ouvido como testemunha neste processo, que, se ao fim de um ano, no máximo, a fractura não consolidou então é certo que já não consolidará.
Sabemos também que a intervenção médica adequada, face à não consolidação da fractura, era a intervenção cirúrgica de recurso. E sabemo-lo porque foi essa a intervenção que, de forma célere, efectuada no Hospital C, em Hong Kong, com evidente sucesso.
Ou seja, por um mero exercício de prognose póstuma baseado nas regras da experiência comum podemos concluir de forma segura, que as leges artis da actividade médica há muito impunham a intervenção cirúrgica que só em Setembro de 2013 acabou por ter lugar e que, portanto, foi por inacção ilícita do médico do CHCSJ que a Autora sofreu os danos que que agora pretende ser ressarcida.
Daí que se possa dizer, ao contrário do que doutamente decidiu o Tribunal a quo, estar demonstrada a verificação do pressuposto da ilicitude indispensável à responsabilização da Ré.
2.2.
Nos termos do n.º 2 do artigo 630.º do Código de Processo Civil, aqui aplicável por força do artigo 1.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, uma vez que o Tribunal de Segunda Instância dispõe dos elementos necessários para o efeito, parece-nos que será de conhecer da questão de que o Tribunal a quo não conheceu, concretamente, a dos danos sofridos pela Autora em resultado da actuação ilícita da Ré e da sua compensação (sustentando esta interpretação do n.º 1 do artigo 159.º do CPAC, veja-se o Ac. do TSI de 13.3.2014, Processo 517/2013).
A este propósito, ficou provado que a Autora, em especial em consequência da omissão, da inércia e da continuada inacção do Dr. B, sofreu danos de natureza não patrimonial, que se traduziram em dores, sofrimento, incómodos de vária ordem ao longo de vários anos.
Tais danos não patrimoniais são graves e merecem, por isso, a tutela do direito (cfr. artigo 489.º, n.º 1 do Código Civil), devendo o montante da respectiva compensação ser fixado equitativamente pelo Tribunal (cfr. artigo 489.º, n.º 3 do Código Civil).
3.
Face ao exposto, salvo melhor opinião, somos de parecer de que deve ser concedido provimento ao presente recurso jurisdicional e, em consequência, ser revogado a douta sentença recorrida que deve ser substituída por outra que julga a acção procedente e condene a Ré a pagar à Autora a compensação que equitativamente venha a ser fixada.
Ora, para nós, a única questão de direito delimitada nas conclusões de recurso foi correcta e exaustivamente abordada nesse Douto parecer do Ministério Público acima integralmente transcrito, com que estamos inteiramente de acordo.
Por isso, não nos resta outra alternativa melhor do que a de aproveitarmos o parecer, convertendo-o na fundamentação do presente recurso para julgar procedente o recurso jurisdicional e revogar a decisão de direito com fundamento no erro de julgamento.
E por força da regra de substituição estabelecida no artº 630º do CPC, passemos a apreciar o pedido de indemnização formulado pela Autora, ora recorrente, na petição inicial.
Na petição, a Autora, ora recorrente entende que, atendendo às dores, as limitações da mobilidade do seu braço e toda uma série de incómodos sofridos por ela durante 6 anos e tendo em conta a inflação que se tem verificado em Macau, deve a indemnização pelos danos não patrimoniais ser fixada em MOP$500.000,00.
O que a Autora pediu é indemnização pelos danos não patrimoniais com fundamento na actuação ilícita a título negligente do médico no exercício das suas funções como agente do Réu.
O que acabou por ser afirmado por nós na decisão sobre a questão do erro de julgamento.
Ora, o Código Civil regula a matéria de danos não patrimoniais no seu artº 489º (danos não patrimoniais), que reza:
1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
2. Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de facto e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, ao unido de facto e aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
3. O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 487.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do número anterior.
Por sua vez, diz o artº 487º que “quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, pode a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem”.
Nos termos do disposto nesse artº 489º/1, é ao tribunal que cabe apurar, em cada caso concreto, se o dano, pela sua gravidade, é ou não merecedor da tutela jurídica.
É segundo este critério legal que vamos fixar o quantitativo da indemnização a arbitrar à Autora de acordo com o critério de equidade.
A propósito da natureza e da função da indemnização pelo danos não patrimoniais, ensina o Prof. Antunes Varela que danos não patrimoniais são os prejuízos (como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, os complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, a honra ou o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposto ao agente, sendo esta mais uma satisfação (Genugtuung) do que uma indemnização – cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 7ª ed., p. 395.
Desta forma, na esteira desse raciocínio, a indemnização pelos danos não patrimoniais visa compensar ou pelo menos aliviar os males sofridos pelo lesado.
Ora, no caso sub iudice, sem tomar em conta algumas expressões algo conclusivas, é tida por relevante a seguinte matéria assente para o efeito da fixação do quantitativo da indemnização:
- Depois os seis meses do tratamento ambulatório de fisioterapia, a A. continuou a sentir no braço esquerdo limitações na mobilidade, pois não conseguia levantá-lo, e dores fortes permanentes, que afectavam o seu sono (resposta ao quesito 1° da base instrutória).
- A Autora foi a diversas consultas no CHCSJ, nas quais o Dr. B lhe foi sempre dizendo que essas dores eram consequência normal da lesão sofrida lhe prescrevia analgésicos, anti-inflamatórios, vitamina D e medicamentos para a osteoporose (resposta ao quesito 2° da base instrutória).
- Entre as duas cirurgias referidas em A) e D) a Autora esteve em sofrimento (resposta ao quesito 4° da base instrutória).
…...
- A A. foi ao “C Hospital” em Hong Kong, em Agosto de 2013, onde foi confirmado que tinha função diminuída no braço e no ombro, que não podia levantar porque continuava partido, e dores que afectavam o seu sono (resposta ao quesito 12° da base instrutória).
- Durante esses 6 anos, a A. confiou nas informações e tratamentos que os médicos do CHCSJ lhe prestaram (resposta ao quesito 39° da base instrutória).
- Antes do acidente a A. tinha uma condição física perfeita no braço esquerdo, sem quaisquer limitações na movimentação e sem dores e dormia perfeitamente (resposta ao quesito 40° da base instrutória).
- Depois da primeira operação a que foi submetida após o acidente sofreu dores muito fortes e permanentes, dia e noite, especialmente quando movimentava o braço e nos dias mais húmidos e chuvosos (resposta ao quesito 41° da base instrutória).
- Muitas vezes chorava por efeito das dores fortes que sentia (resposta ao quesito 42° da base instrutória).
- Por causa dessas dores passou a ter dificuldade em adormecer, acordava muitas vezes a meio da noite, nomeadamente sempre que se movimentava, e readormecia com dificuldades, passando muitas noites em claro (resposta ao quesito 43° da base instrutória).
- Deixou de poder tratar das tarefas normais da sua vida pessoal e familiar, nomeadamente de tratar da lide doméstica (resposta ao quesito 44° da base instrutória).
- Sentia dores quando tomava banho ou quando se vestia (resposta ao quesito 45° da base instrutória).
- Não conseguia vestir sozinha diversas peças de vestuário, nomeadamente meias ou blusas que abotoam ou apertam atrás (resposta ao quesito 46° da base instrutória).
- Deixou de conseguir cozinhar (resposta ao quesito 47° da base instrutória).
- Quando tomava refeições não conseguia utilizar o braço esquerdo, nomeadamente para cortar os alimentos, tendo de ser terceiros a fazê-lo (resposta ao quesito 48° da base instrutória).
- Tinha dificuldade em andar em transportes públicos por não se conseguir agarrar ou sequer apoiar com a mão esquerda (resposta ao quesito 49° da base instrutória).
- Era-lhe difícil andar na rua pois doía-lhe sempre que alguém lhe tocava ou dava um encontrão (resposta ao quesito 50° da base instrutória).
- Sentia limitações de toda a ordem e apenas podia realizar as mais diversas tarefas do dia a dia com a ajuda de terceiros, especialmente do seu marido e da sua empregada doméstica (resposta ao quesito 51° da base instrutória).
De todos esses factos e circunstâncias apuradas, nomeadamente a duração de tempo e o grau de gravidade das dores e dos incómodos sofridos pela Autora ora recorrente, a forma dos tratamentos a que se sujeitou, temos por ajustado, sob ponto de vista da equidade, fixar o quantitativo em MOP$300.000,00, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais.
Em conclusão:
A indemnização pelos danos não patrimoniais consiste na obrigação pecuniária imposto ao agente e visa compensar ou pelo menos proporcionar ao lesado uma satisfação moral para aliviar os prejuízos (como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, os complexos de ordem estética), insusceptíveis de avaliação pecuniária por atingirem bens pessoais (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, a honra ou o bom nome) que não integram o património do lesado.
Tudo visto, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam conceder provimento ao recurso interposto pela Autora, revogando a sentença recorrida na parte impugnada, e em substituição julgando a acção parcialmente procedente e condenando o Réu a pagar à Autora a indemnização pelos danos não patrimoniais no valor de MOP$300.000,00, com juros legais calculados de acordo com a forma definida pelo TUI no seu douto Acórdão de 02MAR2011, tirado no processo nº 69/2010, ou seja, a contar a partir da data do presente Acórdão.
Custas pela recorrente, na proporção do decaimento do pedido.
Registe e notifique.
RAEM, 28MAIO2020
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Lai Kin Hong Mai Man Ieng
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Fong Man Chong
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Ho Wai Neng
Ac. 916/2018-36