Processo n.º 906/2018 Data do acórdão: 2020-6-4 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– apreciação da falsidade do documento no processo penal
– art.o 154.o do Código de Processo Penal
– art.o 155.o, n.o 1, do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
1. Há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
2. As normas dos art.os 154.o e 155.o, n.o 1, do Código de Processo Penal, conjugadas, permitam a apreciação logo da falsidade de algum documento, nomeadamente, autêntico, no próprio processo penal para efeitos do conhecimento e decisão da causa.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 906/2018
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguida): A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 257 a 266 do Processo Comum Colectivo n.° CR2-18-0139-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, a 1.a arguida A, aí já melhor identificada, ficou condenada como co-autora material, na forma consumada, de um crime continuado de falsificação de documento, p. e p. pelo art.o 18.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004 (com referência ao meio previsto no art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal), na pena de dois anos e nove meses de prisão, e como autora material, na forma consumada, de um crime de acolhimento, p. e p. sobretudo pelo art.o 15.o, n.o 1, da dita Lei n.o 6/2004, na pena de sete meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, finalmente na pena única de três anos de prisão, suspensa na sua execução por três anos, sob condição de ela vir prestar, dentro de um mês contado do trânsito em julgado dessa decisão condenatória, dez mil patacas de contribuição pecuniária a favor da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM).
Inconformada, veio recorrer essa arguida para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando (no seu essencial) e rogando, na sua motivação de recurso apresentada a fls. 272 a 284 dos presentes autos correspondentes, o seguinte:
– no caso dos autos, como, de acordo com o teor da tradução do documento de fl. 124 dos autos, os dois Passaportes Birmaneses n.os MXXX250 e MAXXX760 em causa (cujos dados de identificação serviram de base para o tratamento do Título de Identificação de Trabalhador Não-Residente (TITNR), em Macau, do 2.o arguido) foram emitidos pelas Autoridades Competentes da Birmânia em Setembro de 2012 e pela Embaixada da Birmânia em Hong Kong em 2014, então, nos termos do disposto nos art.os 365.o, n.o 1, e 366.o, n.o 1, do Código Civil, esses dois passaportes são documentos autênticos e dotados da força probatória plena que só pode ser ilidida com fundamento na sua falsidade;
– e como não se conseguiu comprovar a falsidade desses passaportes, violou assim o art.o 366.o, n.o 1, do Código Civil a afirmação tecida pelo Tribunal recorrido no texto do seu acórdão, no sentido de que “não está afastada a possibilidade de esses passportes terem sido requeridos com base em dados falsos”;
– ou seja, a condenação no crime de falsificação de documento foi por causa de não estar afastada tal “possibilide”;
– este tipo de decisão condenatória viola o princípio da presunção da inocência e o art.o 112.o do Código de Processo Penal (CPP);
– padeceu, pois, a decisão recorrida também dos vícios aludidos nas alíneas a) e c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP;
– os factos provados n.os 3 a 16, em tudo que seja respeitante à falsidade da identidade, devem ser considerados como não provados;
– não praticou a ora recorrente o crime de falsificação de documento, ao ter ido tratar, em Macau, do pedido de autorização da contratação do 2.o arguido como trabalhador não-residente;
– e, por conseguinte, também não pôde ela ter cometido o crime de acolhimento, porque o 2.o arguido era portador dos tais passaportes legais;
– e fosse como fosse, houve excesso na medida da pena feita pelo Tribunal recorrido;
– apesar de a recorrente não ser um delinquente primário, a data em que ela própria se submeteu ao julgamento da última vez já foi em 2011, com punição em pena de multa, já paga;
– e tendo ela três filhos, há margem para redução da pena, merecendo, assim, uma pena não superior a dois anos e seis meses de prisão pelo crime de falsificação de documento, e uma pena não superior a seis meses de prisão pelo crime de acolhimento, e uma pena única não superior a dois anos e nove meses, suspensa na execução por três anos, sob condição de prestar oito mil patacas de contribuição pecuniária a favor da RAEM.
Ao recurso respondeu o Ministério Público a fls. 286 a 288v, no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 295 a 298, opinando pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão recorrido ficou proferido a fls. 257 a 266, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Na sua motivação do recurso, apesar de a arguida ter indicado a norma da alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP para suportar o seu pedido de absolvição penal dos dois crimes por que vinha condenada no acórdão recorrido, a argumentação concretamente tecida para sustentar esse pedido principal no recurso já tem a ver exclusivamente com a alegada falta ou insuficiência de prova sobre a falsidade concreta dos dois passaportes referidos na motivação do recurso.
Ora, como a questão de insuficiência da prova é do foro próprio do vício de erro notório na apreciação da prova aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP (e já não do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – sobre o alcance e sentido deste vício, referido na alínea a) do n.o 2 do mesmo art.o 400.o, cfr., por exemplo, de entre muitos outros, os acórdãos deste TSI, de 22 de Julho de 2010, do Processo n.o 441/2008, e de 17 de Maio de 2018, do Processo n.o 817/2014), passa-se a conhecer daquele alegado vício.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, o Tribunal recorrido afirmou que a sua livre convicção sobre os factos se formou através da análise, em global, dos elementos da prova (documental e testemunhal) obtidos dos autos (cfr. o teor da linha 19 da página 10 e da linha 13 da página 12, ambos do texto do acórdão recorrido, a fls. 261v e 262v), tendo aliás referido que segundo o depoimento prestado por um agente investigador da Polícia Judiciária, de apelido Cheang, tinha sido descoberto que o 2.o arguido, com as mesmas impressões digitais, tinha duas identidades diversas, uma com base no seu Passaporte Tailandês, e outra de acordo com o seu Passporte Birmanês (cfr. o teor das linhas 14 a 16 da dita página 12 do acórdão). Entendeu o mesmo Tribunal recorrido, finalmente, que os dados constantes do TITNR do 2.o arguido, com base nos dados do seu Passaporte Birmanês, eram falsos (cfr. em detalhes, o conteúdo das linhas 2 a 8 da página 13 do mesmo texto decisório, a fl. 263).
Pois bem, aos olhos do presente Tribunal de recurso, colocado sob o ponto de vista de homem médio, é razoável e convincente esse juízo de valor do Tribunal recorrido aquando do julgamento da questão da falsidade dos dados identificativos do 2.o arguido (que é marido da 1.a arguida ora recorrente), constantes do TITNR dele (de acordo com a identidade constante do seu Passaporte Birmanês).
Com efeito, a circunstância de o Passaporte Tailandês (então utilizado para a instrução do processo de registo de casamento em Macau com a 1.a arguida) e o vindouro Passaporte Birmanês do 2.o arguido terem dados identificativos diferentes (não só em todo o nome completo, como também na data e local de nascimento) já pôs fundadamente em causa a veracidade dos dados identificativos constantes do seu Passaporte Birmanês, pelo que não se pode ter como comprovadamente verdadeira a identidade deste passaporte (atenta a lógica da factualidade acusada pelo Ministério Público e materialmente dada por provada em primeira instância), solução esta do Tribunal recorrido que está em sintonia com o espírito das normas dos art.os 154.o e 155.o, n.o 1, do CPP, as quais, conjugadas, permitam a apreciação logo da falsidade de algum documento, nomeadamente, autêntico, no próprio processo penal para efeitos do conhecimento e decisão da causa.
Improcede, assim, o recurso no seu formulado pedido absolutório penal, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada.
E no tocante ao subsidiário pedido de redução da pena, é de louvar a ora recorrida decisão judicial recorrida, nos termos permitidos pelo art.o 631.o, n.o 5, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do CPP.
Naufraga, in totum, o recurso.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o recurso.
Custas do recurso pela arguida, com cinco UC de taxa de justiça.
Macau, 4 de Junho de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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