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--- Decisão Sumária nos termos do art.º 407º, n.º 6 do C.P.P.M. (Lei n.º 9/2013). -------
--- Data: 24/06/2020 --------------------------------------------------------------------------------
--- Relator: Juiz Chan Kuong Seng ---------------------------------------------------------------


Processo n.º 537/2020
(Recurso em processo penal)
Recorrente: Ministério Público
Arguida (recorrida): A





DECISÃO SUMÁRIA NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA
1. Inconformado com a sentença proferida a fls. 55 a 62v do ora subjacente Processo Comum Singular n.º CR4-19-0337-PCS do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, absolutória da arguida A, aí já melhor identificada, da prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de desobediência simples, p. e p. pelo art.o 312.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal (CP), veio o Digno Procurador-Adjunto junto desse Tribunal recorrer para este Tribunal de Segunda Instância, para rogar, na motivação apresentada a fls. 67 a 71v dos presentes autos correspondentes, a condenação da arguida nesse crime acusado, com aplicação da respectiva pena, ou o reenvio do processo para novo julgamento, nomeadamente por esgrimido vício de erro notório na apreciação da prova.
Ao recurso, não respondeu a arguida.
Subido o recurso, a Digna Procuradora-Adjunta emitiu parecer a fls. 82 a 83v dos autos, pugnando pela condenação da arguida no crime acusado.
Cumpre decidir sumariamente do recurso, dada a simplicidade da questão a decidir, nos termos permitidos pelos art.os 619.o, n.o 1, alínea g), e 621.o, n.o 2, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do Código de Processo Penal.
2. Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
O texto da sentença ora recorrida consta de fls. 55 a 62v dos autos, cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido.
O Tribunal recorrido deu por provada a seguinte factualidade acusada pelo Ministério Público à arguida:
– em 10 de Agosto de 2019, a arguida A foi levada ao Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP) para se sujeitar à investigação (facto provado 1);
– após compulsados os dados, verificou-se que a arguida, por se ter encontrado a permanecer ilegalmente em Macau, tinha sido notificada em 4 de Outubro de 2015 pelo Serviço de Migração do CPSP, da indispensabilidade de se apresentar a esse Serviço em 7 de Outubro de 2015 – cfr. a Notificação a cujo teor aludem as fls. 9 a 10 dos autos) (facto provado 2);
– dessa Notificação constou a menção expressa segundo a qual a não comparência, sem justificação bastante, no tempo indicado, àquele Serviço constitui o crime de desobediência do art.o 312.o do CP (facto provado 3);
– a arguida não se apresentou no dia 7 de Outubro de 2015, e não conseguiu apresentar justificação razoável sobre a não comparência (facto provado 4);
– a arguida estava ciente do teor da referida Notificação, não compareceu no Serviço de Migração do CPSP na data indicada, e não conseguiu apresentar justificação razoável sobre a não comparência (facto provado 5);
– a arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, com intenção de praticar a conduta acima referida (facto provado 6).
No texto da própria Notificação acima referida, já constava a finalidade da indispensável apresentação da pessoa visada ao Serviço de Migração: era para efeitos de tratamento das formalidades da sua expulsão.
O Tribunal recorrido deu por não provado o seguinte facto acusado (facto acusado 7) pelo Ministério Público: a arguida sabia que a sua conduta era violadora da lei, e susceptível de ser punida por lei.
O Tribunal recorrido mais deu por provado o seguinte:
– é com base no disposto nos art.os 8.o a 10.o da Lei n.o 6/2004 que o CPSP executa o processo de expulsão (facto provado 7);
– de acordo com as praxes actuais, apesar de o conteúdo em chinês da notificação exigir à pessoa em situação de clandestinidade em causa a comparência, para tratamento das formalidades de expulsão, é possível que após a comparência, devido à limitação das condições, as autoridades competentes não possuem condições para expulsar de imediato a pessoa em causa, pelo que as autoridades normalmente vão exigir à pessoa em causa que venha apresentar-se por várias vezes em tempo subsequente, com vista a atingir os efeitos de fiscalizar a situação de permanência em Macau da pessoa em causa; ou dito por outro modo, aquela notificação, muitas vezes, não serve para notificar a pessoa visada para tratamento das formalidades de expulsão, mas sim surte o efeito de exigência das apresentações periódicas da pessoa visada, sendo o caso dos autos precisamente desta situação (facto provado 8);
– além do caso dos autos, a arguida não tem registo em matéria criminal (facto provado 9).
O Tribunal recorrido fundamentou a sua decisão absolutória com base no seu entendimento, nuclearmente, de se tratar, na ordem constante da Notificação em causa, de autêntica ordem limitativa da liberdade da pessoa física (emanada não por um Órgão Judicial, e ao mesmo tempo sem qualquer norma jurídica a prever a possibilidade de a Administração impor apresentações periódicas a um interessado particular) dirigida à arguida para esta se apresentar periodicamente ao Serviço de Migração com vista à fiscalização da situação da permanência dela em Macau, e, por isso, de haver a seguinte contradição na lógica das coisas dentro do sistema jurídico de Macau, no caso de condenação da arguida: a violação de tal tipo de ordem administrativa acarreta o efeito incriminatório penal em sede do crime de desobediência, enquanto a violação da medida coactiva de apresentações periódicas imposta judicialmente em processo penal só acarreta a aplicação de medida de coacção mais grave à pessoa visada.
3. Cabe decidir do recurso do Ministério Público, o qual chegou a questionar a decisão da matéria de facto tomada na sentença recorrida.
A respeito da factualidade descrita como provada na sentença, cumpre observar, desde já, e independentemente da demais consideração por desnecessária, que o facto provado 7 é matéria de direito, e o facto provado 8 é matéria meramente conclusiva (por carecer de qualquer alicerce concreta nos factos provados 1 a 6), pelo que estes dois “factos provados” não podem constituir factos provados no sentido próprio do termo, e como tal devem ser considerados como não escritos na fundamentação fáctica da sentença recorrida.
Quanto à matéria de que se ocupa o último facto imputado na acusação pública (o qual acabou por ser considerado como não provado pelo Tribunal recorrido), o ente decisor do recurso pode directamente tirar a ilação com base nos factos já provados em concreto, a fim de julgar, no plano fáctico das coisas, e sob aval do art.o 342.o do Código Civil, se a pessoa arguida, ao praticar a conduta, já sabia que a sua conduta era violadora da lei e sujeita à punição por lei.
No caso dos autos, a partir dos primeiros seis factos provados (factos provados 1 a 6) (sendo certo que o teor da Notificação mencionada no facto provado 2 também já se encontrou materialmente dado por reproduzido neste facto provado através da menção, aí, das páginas concretas do processo alusivas ao mesmo teor), é de presumir judicialmente (nos referidos termos do art.o 342.o do Código Civil), com recurso às regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, que a arguida sabia que a sua conduta era violadora da lei e sujeita à punição por lei.
É que no plano jurídico, aquando da sua emissão contra a arguida, a ordem de comparência constante da Notificação em causa foi emanada pelo Serviço de Migração com competência legal na matéria, sendo essa mesma ordem também legítima, e já regularmente comunicada à arguida visada (lembra-se de que o art.o 312.o, n.o 1, alínea b), do CP pune quem faltar à obediência devida a “ordem ou mandado legítimos, … emanados de autoridade ou funcionário competente”), porquanto as disposições conjugadas dos art.os 2.o, n.o 1, alínea d) (sobre o controlo da imigração ilegal pelo CPSP), 3.o, n.o 1, alínea i) (sobre o desempenho, pelo CPSP, de todas as missões relacionadas com a migração), 5.o, n.o 1, alínea e), 29.o, n.o 1 (sobre a efectuação, pelo Serviço de Migração, de todas as tarefas relativas à migração, nomeadamente o controlo de entradas e saídas, permanência e fixação de residência de todas as pessoas em Macau), e 31.o, n.o 1, alínea e) (sobre a organização, pela Divisão de Controlo Fronteiriço do Serviço de Migração, de processos de expulsão de estrangeiros, nos termos da lei), do Decreto-Lei n.o 3/95/M, de 30 de Janeiro, vigente ao tempo de emissão da Notificação dos autos (apesar de revogada pela actual Lei n.o 14/2018, de 17 de Dezembro), já garantiam indubitavelmente a competência do Serviço de Migração (como uma subunidade orgância do CPSP) para emissão, em Outubro de 2015, da ordem constante dessa Notificação, bem como o carácter legítimo da mesma ordem. Outrossim, em sintonia com o art.o 9.o da Lei n.o 6/2004, de 2 de Agosto, o processo de expulsão de imigrante clandestino em Macau é instruído pelo CPSP.
Garantida assim a efectiva competência legal do Serviço de Migração em emanar tal ordem de comparência à arguida visada para esta tratar das formalidades da sua expulsão como imigrante clandestina de Macau, ordem deste tipo que é também legítima nos termos legais, já acima vistos, há que passar efectivamente a condenar a arguida como autora material, na forma consumada, de um crime de desobediência simples, p. e p. pelo art.o 312.o, n.o 1, alínea b), do CP.
Ou seja, e sem mais abordagem por prejudicada, por não se vislumbrar, ao filtro do art.o 8.o, n.o 3, do Código Civil, qualquer desrazoabilidade da opção do Legislador do Decreto-Lei acima referido no cometimento de tais tarefas legais ao CPSP e na criação do tipo delitual penal de desobediência simples no art.o 312.o, n.o 1, alínea b), do CP, procede mesmo o pedido principal de condenação directa da arguida nesse crime acusado, punível com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.
Em sede da medida da pena, não se pode optar, no caso, pela aplicação da pena de multa em detrimento da pena de prisão, por serem muito elevadas as exigências da prevenção geral do tipo de conduta delitual penal praticada pela arguida (cfr. o critério material vertido no art.o 64.o do CP, para efeitos de decisão sobre qual a espécie da pena a aplicar).
E ponderado o caso dos autos aos padrões vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, é de aplicar três meses de prisão à arguida, suspensa na execução por um ano, nos termos do art.o 48.o, n.o 1, do CP, por ser a arguida uma delinquente primária em Macau.
4. Nos termos expostos, decide-se em julgar sumariamente provido o recurso do Ministério Público, com consequente condenação da arguida A como autora material, na forma consumada, de um crime de desobediência, p. e p. pelo art.o 312.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal, na pena de três meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano.
Sem custas pelo presente recurso.
Fixa-se em setecentas patacas os honorários da Ex.ma Defensora Oficiosa da arguida, a suportar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Após o trânsito em julgado, comunique a presente decisão (com cópia da sentença recorrida) ao Corpo de Polícia de Segurança Pública.
Macau, 24 de Junho de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator do processo)



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