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Processo nº 1185/2019
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data do Acórdão: 18 de Junho de 2020

ASSUNTO:
- Acto médico
- Danos
- Nexo de causalidade;

SUMÁRIO:
- Em acção para efectivação da responsabilidade civil por acto médico, impõe-se à Autora demonstrar o nexo de causalidade entre a violação da “legis artis” e os danos sofridos;
- Demonstrando-se que os danos sobrevieram devido a uma causa imprevisível e alheia ao acto médico, nenhuma responsabilidade pode ser imputável ao clínico que praticou o acto.


____________________________
Rui Pereira Ribeiro

Processo nº 1185/2019
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 18 de Junho de 2020
Recorrente: A
Recorrida: B
Interveniente: D
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO

A, com os demais sinais dos autos,
veio instaurar acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra,
C Limitada e B, em que veio a ser admitida como interveniente D, também eles com os demais sinais dos autos,
Pedindo a condenação das Rés a pagarem solidariamente à Autora a quantia de MOP595.855,00, acrescida dos juros à taxa legal desde a citação até efectivo pagamento.
Foi proferida sentença a absolver a Ré e a interveniente dos pedidos formulados pela Autora – cf. fls. 1200 a 1210 -.
Em simultâneo com as alegações de recurso foi pedida a rectificação da sentença com base em erros materiais o que foi satisfeito, vindo a ser reformulado o texto integral da mesma o qual consta de fls. 1266 a 1278.
Da sentença proferida veio a Autora interpor recurso apresentando as seguintes conclusões1:
A. (…)
B. (…)
C. (…)
D. A resposta ao quesito 48º deve ser dado como não provado, pois foi dado como provado com recurso a prova testemunhal inadmissível, dado que este facto só poderia ser provado por prova pericial (art. 382º do CC), em particular em processo onde foi produzida prova pericial sobre factos paralelos similares. Acresce que a testemunha não reunia os requisitos necessários para prestar um juízo pericial, tendo sido violados os direitos que resultariam par a autora no CPC se tivesse sido objecto de prestação de prova pericial.
E. O tribunal recorrido deu como provado que as rés praticaram um acto voluntário, ilícito, culposo e danoso, isto é, que cometeram um erro médico danoso. Assim, a autora não tem legitimidade para os discutir em sede de recurso, pois concorda com o Tribunal, tendo sido, quanto a eles, parte vencedora (matéria que discutiu nas suas alegações de direito)
F. O Tribunal considerou provado que a prescrição do Bactrim DS causou efectivamente os danos sofridos pela autora, isto é, que o acto ilícito e culposo das rés foi condição do dano (“Não temos dúvidas de que a prescrição do Bactrim D.S. é condição do dano”).
G. O Tribunal violou os arts. 477º e 556º e ss. do CC ao considerar que o facto ilícito e culposo não constitui, porém, causa adequada dos danos sofridos pela autora, por ter (erradamente) tido por provado que “a Autora sofreria, igualmente, do Sindroma de Steven Johnson com a toma do Bactrim D.S. mesmo que não estivesse grávida”.
H. Ao lesado (autora) só cabe provar a condição do dano. Provada a condição do dano, o ónus de alegação e de prova de facto que impeça a verificação da causalidade adequada incide sobre o autor do erro médico lesante (rés).
I. A prova da condição do dano faz presumir a verificação de causalidade adequada do dano.
J. O facto referido na Conclusão G constitui um facto hipotético, impeditivo do efeito, em matéria de causalidade adequada, decorrente do facto referido na Conclusão F.
K. O facto real (condição do dano) consta dos autos e foi provado pela autora. O facto hipotético não consta dos autos, não foi alegado, nem seleccionado no despacho saneador. É inadmissível fazer incidir prova ou considerar provado “facto” não alegado, pois do ónus de alegação resulta a insusceptibilidade de produção de efeitos de “facto” não alegado.
L. O facto hipotético (não alegado) referido na Conclusão G em que o Tribunal assentou para considerar que, apesar de estar feita a prova da condição do dano, não está verificada a existência de causa adequada, não foi, de qualquer modo, provado, pois não resulta do relatório pericial onde o Tribunal assentou exclusivamente a sua conclusão.
M. Não só não é afirmado pelos peritos que a autora teria contraído a doença se não estivesse grávida, como não é afirmado que teria sofrido os mesmos danos.
N. Mesmo que tivesse sido provado, não poderia ser considerado facto não alegado.
O. Incidia sobre as rés provar o facto médico hipotético, impeditivo do nexo causal (condição do dano) provado pela autora.
P. Ademais, ao considerar na sua decisão facto não alegado (nem referido no acórdão que decidiu da matéria de facto), a sentença violou o princípio do contraditório (arts. 3º,407º/2-b) e 412º/3 do CPC).
Q. Em virtude dos factos tidos por provados, a maior ou menor probabilidade de contrair esta doença não releva para efeitos de causalidade adequada.
R. O erro médico danoso releva para a apreciação do juízo de causalidade adequada, dele resultando que o tribunal deve tomar em consideração, em favor da vítima, a sua situação de inferioridade e menor conhecimento, considerando demonstrada a causalidade, mesmo quando ela não é claramente estabelecida, como denota a doutrina. No caso, a causalidade foi, porém, claramente estabelecida (“Não temos dúvidas”, refere o Tribunal).
S. Mesmo se aceitássemos como válida e correcta a posição do Tribunal, a autora teria sempre de ser indemnizada relativamente ao dano descrito na resposta ao quesito 33º.
Nestes termos e nos mais de Direito, deve ser dado integral provimento ao recurso e,
1. (…)
2. Ser declarado não provada a resposta ao quesito 48º ou, assim não se entendendo, anulada a sentença, sem necessidade de repetição de julgamento, para se proferir nova sentença sem aquele facto;
3. Deve concluir-se pela sua responsabilidade e as rés serem solidariamente condenadas a indemnizar a autora, tal como peticionado, e subsidiariamente anulado o julgamento por violação do contraditório.
Notificadas a Ré e interveniente para os termos do recurso e da causa, vieram contra-alegar, não tendo apresentado conclusões, nos seguintes termos:
I. Da violação da lei quanto a facto provado com recurso a prova testemunhal inadmissível
Alega a Autora que o quesito 48º foi dado como provado por recurso a prova testemunhal e que, tratando-se de uma questão médica, estava obrigatoriamente sujeita a prova pericial.
Salvo melhor entendimento, bem andou o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, não havendo qualquer violação da lei, nomeadamente do artigo 382º do Código Civil.
Na verdade, a prova pericial não tem, no ordenamento civil de Macau, valor de prova plena, cabendo, nos termos do artigo 383º do Código Civil, ao Tribunal apreciá-la livremente, pelo que não existem matérias que apenas possam ser provadas por prova pericial.
Por outro lado, conforme defendem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, “... na mesma pessoa e no mesmo depoimento se possam reunir as notas fundamentais da testemunha e do perito”, aceitando, como tal a figura da testemunha pericial. Ora, in casu, a testemunha em causa, é médico com vários anos de experiência, pelo que podia, sem qualquer limitação, responder ao quesito 48º, que se tratava de uma pergunta abstracta e, como tal, passível de ser respondida por qualquer pessoa com conhecimentos na área da medicina, não sendo necessária prova pericial.
Acresce que, caso a Autora duvidasse do depoimento da testemunha em causa, por o mesmo estar impedido ou ser suspeito, deveria, na altura, ter levantado esse incidente, o que não fez, pelo que não pode, em sede de recurso, vir levantar essa suspeição.
Assim, nada há a apontar à decisão do Tribunal a quo relativamente à prova do quesito 48º, uma vez que se limitou a fazer uso do princípio da livre apreciação da prova, princípio que a Autora parece desconhecer.
II. Da Causa Adequada e nexo causal hipotético
Aferir o nexo de causalidade é um problema jurídico e não de facto uma vez que se trata de um dos pressupostos da responsabilidade civil.
Assim, os elementos que cabem no nexo de causalidade não têm que ser obrigatoriamente alegados, cabendo ao Tribunal julgar se há ou não nexo de causalidade com base na factualidade dada como provada, bem como noutros elementos que considere relevantes.
No caso, como bem entendeu o Tribunal a quo, o nexo de causalidade não se estabelece, como a Autora pretende, entre a prescrição e a contracção da doença, mas sim entre a prescrição em estado de gravidez e a doença uma vez que o Bactrim está contra­indicado unicamente em caso de gravidez.
Assim sendo, não existindo qualquer ligação entre a doença de que, infelizmente, a Autora veio a sofrer e o seu estado de gravidez, bem andou o Tribunal a quo ao decidir com decidiu.
Na verdade, no autos, provou-se que a Autora sofreu a doença em virtude da toma do medicamento mas não porque estava grávida.
Mais se provou que a doença contraída pela Autora é rara e excepcional, não se tendo feito qualquer prova de que a mesma apenas foi contraída em virtude da gravidez da Autora, razão pela qual considerou o Tribunal a quo que o facto ilícito não podia considerar-se causa adequada.
Assim, também por este motivo não merece a decisão de 1ª instância qualquer censura, devendo a mesma ser confirmada.
Efectivamente, se a pedra de toque do presente processo é a contra indicação do medicamento em caso de gravidez, não se provando a relevância da gravidez no dano provocado, não poderia o Tribunal ter decidido de outra forma.
III. Da relevância do erro médico na teoria da causalidade
Alega a Autora que não teria sofrido o dano não fora o erro médico da 1ª Ré, no entanto esquece-se de referir que, conforme já alegado, era essencial, no presente processo, estabelecer-se uma ligação entre a gravidez e o dano, não estando em causa apenas a não demonstração com toda a certeza do nexo de causalidade entre a culpa e o dano.
Na realidade, não fosse o facto de a Autora estar grávida aquando da prescrição do medicamento, teria o Tribunal, na subsunção dos factos ao direito, decidido de forma diferente, nomeadamente verificando não estarem preenchidos os pressupostos da ilicitude e da culpa e absolvendo, em consequência, as Ré e Interveniente.
Assim, sendo fundamental, na teoria da causalidade adequada, demonstrar a ligação entre a gravidez e o dano para aferir do nexo de causalidade entre a culpa e o dano e não estando apenas em causa a sua demonstração com toda a certeza, não pode proceder a alegação da Autora de que basta a demonstração do erro médico para se responsabilizar as Ré e Interveniente.
IV. Resposta ao quesito 33º constitui causa adequada do dano na versão do Tribunal
Por fim, alega a Autora, subsidiariamente, que sempre teria direito a ser indemnizada pela angustia sofrida durante a gravidez.
Salvo melhor entendimento, tal dano não é autonomizável de toda a relação controvertida pelo que, não se tendo provado o nexo de causalidade entre o dano e o erro, também não pode aquele dano ser indemnizado.
Na verdade, não tendo havido qualquer dano para o feto, é razoável supor-se que a Autora, mesmo não estando grávida, iria contrair a doença e, nesse caso, como se viu, não haveria nem ilicitude nem culpa por parte das Ré e Interveniente e, em consequência, não teria a Autora direito a qualquer indemnização.
Pelo que o dano de angustia invocado só poderia ser indemnizável caso houvesse nexo de causalidade entre ele e a culpa, o que, in casu, como se viu, não acontece, não existindo, portanto qualquer causa adequada, não sendo o dano, como tal indemnizável autonomamente.
Termos em que deve ser negado provimento ao Recurso interposto pela Autora, mantendo-se a decisão recorrida.

Foram colhidos os vistos.

II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

III. FUNDAMENTAÇÃO

a) Factos:

Da sentença sob recurso consta a seguinte factualidade:
Da Matéria de Facto Assente:
- Em 11 de Maio de 2010, a Autora dirigiu-se ao estabelecimento comercial de E, com a designação E; sita na XXXXXX, em Macau. (alínea A) dos factos assentes)
- No atendimento a Autora disse que pretendia realizar um exame pré-natal a fim de saber se encontrava grávida e ser consultada por estar com febre e sentir uma dor lombar no lado esquerdo. (alínea B) dos factos assentes)
- Foi respondido à Autora que lhe podiam ser prestados aqueles serviços. (alínea C) dos factos assentes)
- A seguir chamaram a Autora a um gabinete onde foi atendida pela Dra. B, ora 2ª Ré. (alínea D) dos factos assentes)
- Após a realização de exame à urina da Autora, a 2ª Ré informou-a de que estava efectivamente grávida de 5 semanas e 6 dias. (alínea E) dos factos assentes)
- Relativamente aos outros dois sintomas, a 2º Ré disse à Autora que os mesmos eram resultado de uma infecção urinária. (alínea F) dos factos assentes)
- Para tratamento da infecção referida em F), a 2ª Ré prescreveu à Autora um suplemento vitamínico e Bactrim DS, de 800mg, indicando-lhe que tomasse este medicamento duas vezes por dia, durante 14 dias, num total de 28 comprimidos. (alínea F1) dos factos assentes)
- No dia 24 de Maio a Autora voltou ao estabelecimento de E onde foi atendida novamente pela 2ª Ré. (alínea G) dos factos assentes)
- A 2ª Ré aconselhou a Autora a ir de imediato aos serviços de urgência de um hospital para ser tratada, tendo escrito uma nota para entregar ao médico que ali a atendesse. (alínea G1) dos factos assentes)
- A Autora decidiu ir de imediato aos Serviços de Urgência do Hospital Conde S. Januário. (alínea G2) dos factos assentes)
- A sair do internamento o Hospital Conde S. Januário apresentou à Autora uma factura pelos serviços prestados, nomeadamente análises, taxa de internamento, exames imagiológicos, inspecções e medicamentos, no montante de MOP$61,592.00. (alínea H) dos factos assentes)

Da Base Instrutória:
- O Bactrim DS está contra-indicado para grávidas, o qual pode ser tomado no início da gravidez, sempre que as vantagens sejam maiores aos riscos associados à infecção em causa e que se faça em conjunto com ácido fólico. (respostas aos quesitos 2º e 47º da base instrutória)
- A Autora iniciou no dia 11 de Maio de 2010 o tratamento prescrito referido na alínea F.1 dos Factos Assentes. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- No dia 23 de Maio de 2010, a Autora voltou a sentir febre e apareceram-lhe manches vermelhas nas faces. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
- As manchas alastraram ao pescoço e tornaram-se muito mais visíveis, a febre aumentou, a Autora começou a sentir dores no corpo, a sentir dificuldades em respirar. (resposta ao quesito 6º da base instrutória)
- Nos serviços de Urgência do Hospital Conde S. Januário, o médico que observou a Autora, prescreveu-lhe diversos medicamentos com indicação de que tinha de os começar a tomar imediatamente. (resposta ao quesito 10º da base instrutória)
- De 24 para 25 de Maio as manchas acentuaram-se, o rosto da Autora inchou, estenderam-se a quase todo o corpo e surgiram erupções cutâneas. (resposta ao quesito 11º da base instrutória)
- A febre subiu e com dificuldade de respiração. (resposta ao quesito 12º da base instrutória)
- Com o alastamento da infecção cutânea o olho esquerdo ficou vermelho. (resposta ao quesito 13º da base instrutória)
- Por isso, deslocou-se novamente ao Serviço de Urgências do Hospital Conde S. Januário nesse mesmo dia 25 de Maio. (resposta ao quesito 14º da base instrutória)
- A Autora sofria da Sindroma de Steven-Johnson e que esse seu estado de saúde era consequência de ter tomado o medicamento Bactrim DS estando grávida. (resposta ao quesito 15º da base instrutória)
- A Autora foi internada na Unidade de Cuidados Intensivos onde permaneceu durante 24 dias. (resposta ao quesito 16º da base instrutória)
- A pele do corpo queimou, começou a escamar e a descascar e sentia dores muito fortes, o que a impedia de movimentar o corpo, precisando de ajuda das enfermeiras mesmo para mudar de posição. (resposta ao quesito 17º da base instrutória)
- Esteve todo o tempo entubada pela boca, com um tubo de alimentação e um cateter, pelo que não conseguiu falar. (resposta ao quesito 18º da base instrutória)
- A infecção cutânea alastrou também para o olho direito, no qual apareceu uma bolsa de líquido e um pequeno quisto junto na parte interna da pálpebra superior. (resposta ao quesito 19º da base instrutória)
- A Autora teve alta hospitalar em 18 de Junho de 2010. (resposta ao quesito 20º da base instrutória)
- Após a alta, a Autora continuou a submeter-se às consultas de cirurgia plástica, oftalmologia e dermatologia. (respostas aos quesitos 21º e 26º da base instrutória)
- À data de 15/07/2011, a Autora ainda tinha de colocar gotas diárias nos olhos. (resposta ao quesito 23º da base instrutória)
- Por causa do pequeno quisto no olho direito a Autora veio a fazer uma intervenção cirúrgica em 15/07/2011, que a forçou a um dia de internamento. (resposta ao quesito 24º da base instrutória)
- A síndroma de Stevens-Johnson é uma doença rara, aguda e fatal da pele e das mucosas, normalmente provocada pelos fármacos, e que pode levar as complicações como desidratação, septicemia, pneumonia, disfunção múltipla dos órgãos. (resposta ao quesito 27º da base instrutória)
- A síndroma de Stevens-Johnson é uma doença rara mas potencialmente fatal, devendo, ser conhecida de todos os médicos. (resposta ao quesito 28º da base instrutória)
- Caracteriza-se por lesões descamativas da pele e das mucosas, que surgem normalmente após a exposição a fármacos. (resposta ao quesito 29º da base instrutória)
- A erupção cutânea pode ocorrer nos olhos e no trato respiratório, ocasionando processos de necrose e que pode evoluir para uma forma mais grave, a necrólise epidérmica tóxica (NET), na qual a camada superior da pele se desprende em camadas, e, no caso da Autora, ela sofria do deslocamento epidérmico com um grau mediada entre 10% e 30%. (resposta ao quesito 30º da base instrutória)
- A Autora contraiu a síndroma Stevens-Johnson e passou por toda a situação descrita em consequência da toma do Bactrim DS. (resposta ao quesito 31º da base instrutória)
- Durante um mês a Autora sentiu-se angustiada com a dúvida e incerteza sobre as consequências da doença, particularmente durante os primeiros meses, sem saber quando terminaria o alastramento da erupção cutânea, que órgãos poderiam vir a ser afectados, se as lesões seriam irreversíveis e sem saber se ficaria cega do olho esquerdo. (resposta ao quesito 32º da base instrutória)
- Sentiu-se também angustiada com a possibilidade de interrupção da gravidez ou de o feto ser afectado pela sua doença e nascer com alguma insuficiência psicomotora. (resposta ao quesito 33º da base instrutória)
- Sentiu uma profunda solidão durante as mais de quatro semanas em que esteve internada e entubada, sem poder falar e sem se poder movimentar. (resposta ao quesito 34º da base instrutória)
- Sentiu-se e sente-se ainda hoje amargurada. (resposta ao quesito 35º da base instrutória)
- Ao caminhar na rua passou por situações humilhantes, pois as pessoas muitas vezes se afastavam dela por a julgarem portadora de uma doença infecto-contagiosa. (resposta ao quesito 36º da base instrutória)
- A imagem deformada que a Autora teve durante mais de dois anos causou-lhe sofrimento e fez-lhe perder a auto-estima e confiança. (resposta ao quesito 37º da base instrutória)
- A Autora despendeu em consultas, análises e exames de rotina, realizados no Hospital Conde. S. Januário, entre 21/06/2010 e 24/06/2011, o montante global total de MOP$820.00. (resposta ao quesito 39º da base instrutória)
- A Autora despendeu ainda MOP$526.00, no dia 11 de Maio de 2010. (resposta ao quesito 40º da base instrutória)
- A Autora esteve sem poder trabalhar de 11 de Maio de 2010 até 14 de Agosto de 2010, e a sua entidade patronal não lhe pagou os salários de Junho, Julho e primeira quinzena de Agosto. (resposta ao quesito 41º da base instrutória)
- A Autora auferia então, como aufere hoje, um salário mensal de MOP$4,200.00. (resposta ao quesito 42º da base instrutória)
- Ao atentar a Autora a 2ª Ré chegou a questionar sobre a sua história clínica, incluindo se a Autora tinha ou não alergias a medicamentos. (resposta ao quesito 45º da base instrutória)
- Bactrim DS 800mg/160mg é um antibiótico recomendado para combater uma infecção de largo espectro. (resposta ao quesito 46º da base instrutória)
- A reacção alérgica que a Autora veio a ter ao medicamento receitado não se podia prever, a probabilidade de contrair à síndroma de Stevens-Johnson corresponde-se a 2-7 por cada milhão. (resposta ao quesito 48º da base instrutória)
- A Autora voltou à clínica no dia 18, tendo sido observada pelo Dr. F, não tendo manifestado qualquer reacção alérgica ao medicamento prescrito. (resposta ao quesito 49º da base instrutória)
- No dia 24 de Maio, a 2ª Ré identificou os sinais de reacção, alérgica e informou a Autora que chamaria uma ambulância para a transportar até ao hospital, o que foi rejeitado pela Autora e pelo seu marido. (resposta ao quesito 50º da base instrutória)

b) Do Direito

De acordo com o disposto no nº 3 do artº 589º do CPC o objecto do recurso limita-se pelas conclusões da alegação, pelo que, cabe, agora, apreciar as situações suscitadas.

Do item 48º da Base Instrutória e prova tarifada.
Consagra o nº 2 do artº 558º do CPC que «quando a lei exija, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada».
«Ao mesmo tempo que consagrou a livre apreciação da prova enquanto princípio orientador de valoração da mesma, o legislador instituiu limitações àquele. É o que resulta do artigo 607º, nº 5, 2ª parte, do CPC, ao prever que a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, os factos que só possam ser provados por documentos ou os factos que estejam plenamente provados (por documentos, acordo ou confissão das partes). Neste particular, encontra-se ainda um resquício do sistema de prova legal ou tarifada, na medida em que é a própria lei a estabelecer critérios para que determinados factos possam ser considerados provados, designadamente fazendo depender tal prova, em certos casos, da produção de um específico meio de prova.».
Socorrendo-se do artº 382º do C.Civ. vem a autora sustentar que a matéria do item 48º da base instrutória não poderia ser dada como provada com base em prova testemunhal, havendo que ter sido incluída na prova pericial.
Ora, o que o artº 382º do C.Civ diz é que «A prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial.».
O artº 382º citado não estabelece nem consagra nenhuma forma de prova “tarifada”. Dali não resulta que quando forem necessários “especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos” o tribunal “tem” de proceder à perícia.
O artº 382º citado limita-se a consagrar “o objecto” da perícia, dizendo que, quando estiverem em causa as situações ali previstas o tribunal “pode” realizar a perícia, estabelecendo depois o artº 383º do C.Civ., que, a perícia é livremente apreciada pelo tribunal.
Ou seja, nem mesmo nos casos em que haja sido realizada perícia por serem necessários os especiais conhecimentos, a decisão do tribunal fica vinculada às conclusões dos peritos, sem prejuízo do maior dever de fundamentar dada a especificidade técnica do que estiver em discussão.
Por exemplo, nada obsta que o tribunal com base no depoimento de uma testemunha com formação e conhecimentos técnicos na área sob apreciação, se convença no sentido da opinião expressa por essa testemunha em detrimento da posição manifestada pelos peritos no respectivo relatório, desde que os argumentos daquela sejam mais convincentes que os destes.
No caso em apreço no item 48º da base instrutória perguntava-se se «a reacção alérgica que a Autora veio a ter ao medicamento receitado não se podia prever?».
A matéria em causa não está sujeita a nenhuma forma de “prova tarifada”, exigindo apenas conhecimentos especiais na área da medicina, pelo que, podia ter sido objecto de perícia, como também pode ser objecto de outra prova que se tenha por conveniente para convencer o tribunal da respectiva veracidade.
Como resulta de fls. 1170 a convicção do tribunal resultou «De acordo com o relatório pericial, a reacção alérgica da síndroma Steven-Johnson é imprevisível, ao que acresce o esclarecimento do médico testemunha G, de que a percentagem de sofrer dessa síndroma por toma do Bactrim DS, segundo as estatísticas actualizadas, é de 2 a 7 por cada milhão. Assim, conclui-se pela resposta dada ao quesito 48º.».
Isto é a convicção do tribunal formou-se pela conjugação das respostas dadas pelos Peritos à matéria sujeita à sua observação e pelo depoimento da testemunha indicada.
Não estando a matéria do item 48º da base instrutória sujeita a uma forma de prova tarifada, não sendo a realização de perícia neste caso, uma forma de prova exclusiva para a demonstração de certos factos, nada obsta a que a convicção do tribunal se haja formado nos termos indicados.
Quanto à reapreciação da prova tem este Tribunal vindo a entender que:
«- Segundo o princípio da livre apreciação das provas previsto n° 1 do artigo 558.º do CPC, “O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
- A reapreciação da matéria de facto por parte deste TSI tem um campo muito restrito, limitado, tão só, aos casos em que ocorre flagrantemente uma desconformidade entre a prova produzida e a decisão tomada, nomeadamente quando não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.» - Cit. do sumário do Acórdão de 02/04/2020, proferido no procº nº 1162/2019 -.
Ora, no caso dos autos para além de não reconhecer credibilidade à testemunha ouvida e que serviu de base à convicção do tribunal, nada mais indica a Recorrente que levasse a reconhecer o erro na apreciação da prova feita pelo tribunal a quo quanto à resposta dada a este item, pelo que, nesta parte só pode o recurso improceder.

Da legalidade da decisão recorrida e sua conformidade com as normas jurídicas aplicáveis.
Em sede de matéria de direito da decisão sob recurso consta que:
«Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
Com a presente acção, alegou a Autora que, em 11 de Maio de 2010, dirigiu-se ao estabelecimento comercial da E onde foi atendida pela 2ª Ré e que verificou que estava grávida mas estava com infecção urinária. Foi-lhe prescrita pela 2ª Ré o medicamento Bactrim D.S., entre outros, para tratamento da infecção urinária.
Após a toma do Bactrim DS, começou a aparecer manchas vermelhas na face que alastrou, posteriormente, para todo o corpo e com febre, acompanhado com dificuldade de respiração e dores fortes, a Autora dirigiu ao Serviço de Urgências do Hospital Conde S. Januário onde foi diagnosticada de ter sofrido a Síndroma Steven-Johnson em consequência da toma do medicamento Bactrim DS e ficou, por isso, internada até 18 de Junho de 2010. Após a alta hospital, ela continuou submeteu-se ainda às consultas de cirurgia plástica, oftalmologia e dermotologia. Para além das despesas médicas despendidas, a Autora sofreu muito durante o internamento na Unidade dos Cuidados Intensivos, tendo muito dores e ficou angustiada e preocupada com a saúde da própria, com a eventual interrupção da gravidez e com a evolução do feto. A infecção cutânea fez a imagem dela deformada, por isso, a Autora teve sofrimento e perdeu a auto-estima e confiança.
Entende a Autora que a 2ª Ré actuou contra a leges artis, por o Bactrim D.S. ser contra-indicado para a grávida e que poderia causar as consequências graves.
Pretendendo que sejam ressarcidos pelos Réus os danos a ela causados pela Síndroma Steven Johnson em virtude da prescrição indevida do Bactrim D.S. Pela 2ª Ré.
*
A questão fulcral do presente litígio prende-se unicamente com a responsabilidade civil médica.
A responsabilidade civil pela prática do acto médico pode ser classificada como responsabilidade civil contratual e responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, consoante se entre o médico e o paciente existe ou não uma vinculação contratual.
Fundamentando a Autora o direito de indemnização na responsabilidade civil contratual. Urge aquilatar, em primeiro lugar, se foi estabelecido um vínculo contratual entre a Autora e as Rés.

Relação jurídica estabelecida entre a Autora e os Réus
“A relação médico-paciente configura um contrato consensual (219°C.C.), marcadamente pessoal de execução continuada, em regra sinalagmático e oneroso. A declaração de proposta resulta de o médico manter o seu consultório aberto e o doente ao entabular um contrato está a manifestar a sua aceitação.” (cfr. André Gonçalo Dias Pereira, in Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, Coimbra Editora, pg.671)
Preceitua-se o art°1080° do C.C. que “Contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes de obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.”
É comum o entendimento, quer na doutrina quer nas jurisprudências, de que a relação entre paciente e médico ou clínica é qualificada como contrato de prestação de serviço.
Nesse sentido, decide-se o Ac. n°125/2009, de 10 de Novembro de 2011, do T.S.I. que “Assim, em regra, a relação entre o médico e o doente que o procura configura uma relação contratual, um contrato de prestação de serviços, ou um contrato médico, pelo que lhe serão aplicáveis as regras da responsabilidade contratual. Considera-se que as partes - autor e réus - celebraram um contrato de prestação de serviços médicos (art. 1080.º do CC).
Trata-se de um contrato de prestação de serviços, mais propriamente um contrato médico ou um contrato socialmente típico que se insere basicamente na categoria dos chamados contratos de prestação de serviços, isto é, um contrato oneroso (em regra), sinalagmático, celebrado geralmente intuitu personae, com algumas características peculiares que necessariamente o distinguem da generalidade dos contratos deste género (dado o seu carácter sui generis. E tem como características específicas ser um contrato essencialmente pessoal e um contrato que, em princípio, não obriga a um resultado, isto é, o médico não se obriga a curar o doente, mas apenas prestar-lhe os cuidados considerados úteis e necessários à eventual cura.
A relação entre o doente e o médico nasce, assim, em regra, através de um contrato de prestação de serviços, visando o tratamento daquele, tendo por finalidade restituir-lhe a saúde, suavizar-lhe o sofrimento e salvar-lhe ou prolongar-lhe a vida.”
No caso em apreço, conforme os factos tidos por assentes, em 11 de Maio de 2010, a Autora dirigiu-se ao estabelecimento comercial de E, explorado pela Interveniente, pretendendo realizar um exame pré-natal a fim de saber se se encontrava grávida e ser consultada por estar com febre e sentir uma dor lombar no lado esquerdo. Foi respondido à Autora que lhe podiam ser prestados aqueles serviços.
A Autora foi atendida pela 2ª Ré a qual, após a realização de exame à urina da Autora, informou-a de que estava efectivamente grávida de 5 semanas e 6 dias e que a Autora enfermia duma infecção urinária, o que lhe fez com febre e sentir dor lombar no lado esquerdo.
A Autora solicitou àquela clínica serviços de cuidados de saúde e, assim, foi atendida pela 2ª Ré na clínica. Sem maiores dúvidas, foi estabelecido um acordo entre a Autora e a Inteveniente que consiste na prestação de serviços de cuidados médicos pela clínica à Autora, precisamente, a realização do exame urinária e o diagnóstico e tratamento terapêutico prestado pela 2ª Ré.
Portanto, estamos perante um contrato de prestação de serviço médico.

Responsabilidade civil contratual
Prevê-se o art°752°, n°1 do C.C.. “O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado”
“O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.” (art°787° do C.C.)
“Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua.” (art°788° do C.C.).
Por outro lado, preceitua-se o art°89°, n°1 do C.C., “O devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor.”
Tem sido muito discutida a problemática da presunção da culpa na relação médico-paciente, a posição dominante na doutrina e jurisprudências é no sentido de que na relação médico-paciente com vinculação contratual, é presumida a culpa do devedor/médico.
No aresto do Acórdão do T.S.I., n°778/2011, de 21 de Fevereiro de 2012, decide-se, “Tem-se o acto médico como o acto executado por um profissional de saúde que consiste numa avaliação diagnóstica, prognóstica ou de prescrição e execução de medidas terapêuticas quando realiza a prestação a que está vinculado (art. 752.º, nº 1), incumbindo-lhe provar, depois de apurada a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação, que estes não procedem de culpa sua (art. 788.º, nº 1). 22 3.7. O médico deve, por isso, agir segundo as exigências da legis artis e os conhecimentos científicos existentes na época, actuando de acordo com o dever objectivo de cuidado.” Entende-se, no mesmo acórdão “Erro médico pode ser definido como a conduta profissional inadequada resultante da utilização de uma técnica médica ou terapêutica incorrectas que se revelam lesivas para a saúde ou vida de um doente. E pode cometido por imperícia, inconsideração ou negligência.”
Porém, com a entrada em vigor da Lei n°5/2016 de 29 de Agosto de 2016, é estabelecido, especificamente, um regime jurídico do erro médico. Nesse diploma, o nosso legislador toma uma posição definitiva sobre a questão em causa, optando pela aplicação do regime jurídico da responsabilidade por factos ilícitos à responsabilidade civil dos prestadores de cuidados de saúde por erro médico. (art°20° do referida Lei). Sob o regime jurídico da responsabilidade por factos ilícios, cabe ao lesado o ónus de provar a culpa do lesante. (art°480° do C.C.) Portanto, na alçada do novo regime jurídico da responsabilidade médica, tem ou não um vínculo contratual, incumbe sempre ao pacinete a prova da culpa do médico.
Não obstante da sucessão das leis na matéria da responsabilidade civil por erro médico, ao presente caso não é aplicável o regime jurídico regulado pela Lei acima iludida, visto que o n°2 do art°43° dessa lei manda a aplicação do disposto desse diploma aos factos ocorridos após a sua entrada em vigor.
Tendo o facto que deu origem a responsabilidade ocorrido antes da vigência da nova lei, ao presente caso continua sujeitar-se à regra geral da lei civil.
Assim, tendo estabelecido entre a Autora e a 1ª Ré contrato de prestação de serviço, a culpa do devedor é presumida, incumbindo a este o ónus de ilidir a presunção.
Por força do n°2 do art°788° do C.C., o conceito da culpa é remetido para o padrão abstracto, tendo como paradigma a diligência de “bonus pater famílias” (n°2 do art°480° do C.C.).
Escreve André Pereira, “O critério de apreciação de culpa está previsto no art°487° em termos objectivistas, isto é, segundo a teoria da culpa em abstracto e, dentro desta, da culpa como deficiência da conduta. Ao afirmarmos a culpa como deficiência da consulta e não apenas como deficiência de cuidado, de zelo, de aplicação (a incúria, o desleixo, a precipitação, a leviandade ou ligeireza), mas também a falta de senso, de perícia ou de aptidão (a incompetência, a incapacidade natural e inaptidão e a inabilidade,. O grau de diligência exigível é da de um homem normal, medianamente sagaz, prudente, avisado e cuidadoso. Este critério traduz-se no domínio em análise como o médico normalmente prudente, diligente, sagaz e cuidadoso, com conhecimentos, capacidade física, intelectual e emocional para desempenhar as funções a que s propõe.”
E, “Segundo a doutrina dominante, entendemos que o incumprimento ou o cumprimento defeituosos da prestação médica é objecto de prova por parte do Autora. Prova essa que se revela difícil visto que sobre o médico recai uma obrigação de meios ou de diligências e não uma obrigação de resultado, donde a prova do incumprimento passa pela demonstração de que o médico não agiu de acordo com as leges artis.” ( in obra citada, pg. 707)
*
Feitas as considerações jurídicas acima expostas, regressemos ao nosso caso concreto, para apurar se se mostram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil contratual.
Dispõe-se o n°1 do art°477° do C.C.:
“Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
Flui do preceito acima transcrito, a responsabilidade por factos ilícitos depende da verificação cumulativa de requisitos: i) facto ilícito (que pode ser incumprimento ou cumprimento defeituosos; ii) que o facto seja imputável ao devedor, isto é, que este tenha agido com culpa; iii) danos sofridos pelo credor; iv) o nexo de causalidade entre o facto do agente e o dano.

Ilicitude
Argumenta a Autora que a 2ª Ré não lhe devia prescrever o Bactrim DS por ser contra-indicado para grávida e que poderia ter as consequências graves que efectivamente teve.
Conforme os factos tidos por assentes, a Autora dirigiu-se à clínica explorada pela Interveniente, solicitando-lhe os serviços de cuidados para apurar a causa de febre e os remédios para tratamento. A 2ª Ré atendeu à Autora e foi diagnosticado que a febre foi causada por infecção urinária. Para o seu tratamento, a 2ª Ré prescreveu-lhe Bactricm DS, duas vezes por dia, durante 14 dias. A Autora iniciou o tratamento em 11 de Maio. Mas em 23 de Maio, apareceram-lhes manches vermelhas nas faces, que alastraram ao pescoço e começou a sentir dores no corpo e com dificuldades em respirar. A infecção cutânea alastrou para os olhos da Autora, a pele do corpo queimou-se, começando a escamar e a descascar. A Autora foi diagnosticada com Síndroma de Steven-Johnson por ter tomado o medicamento Bactrim D.S. no Hospital de Conde de São Januário.
Coloca-se a questão em saber se a 2ª Ré não devia prescrever Bactrim D.S. para a Autora, uma vez que já confirmou que esta estava grávida. Ou seja, se a prescrição do Bactrim D.S. pela 2ª Ré para a Autora violou as regras de cuidados diligente ou regras leges artis.
Vem comprovado que o Bactrim DS está contra-indicado para grávidas, o qual poderá ser tomado no início da gravidez, sempre que as vantagens sejam maiores aos riscos associados à infecção em causa e que se faça em conjunto com ácido fólico.
Está provado igualmente que Bactrim DS 800mg/160gm é um antibiótico recomendado para combater uma infecção de largo espectro, sendo a probabilidade de contrair a Síndroma de Steven Johnson 5-7 por cada milhão. A síndroma de Steven-Johnson é uma doença rara mas potencialmente fatal, devendo ser conhecida de todos os médicos.
De acordo com esse acervo fáctico, a Autora foi diagnosticada com infecção urinária e com febre, o Bactrim D.S. é antibiótico recomendado para combater a infecção de largo espectro, à primeira vista, a prescrição desse medicamento para combater a infecção verificada não é indevida.
Apesar de probabilidade da contrair a Síndroma Steven Johnson de 5-7 por cada milhão é que o médico, nas consultas médicas, não podia prever qual dos pacientes poderia padecer essa doença. Certamente não por esta imprevisibilidade é que o médico não deve prescrever o medicamento, se fosse assim, quase todos os fármacos não poderia serem prescritos, a realidade que nos convivemos é que nunca temos garantia de cem por cento da segurança dos fármacos. A verdade é que em relação à maioria absoluta dos pacientes, o medicamente produz o seu efeito útil e não irá causar quaisquer efeitos secundários. Portanto, a prescrição do Bactrimo D.S. pelo médico para combater a infecção urinária, de per si, pese a existência desse risco com probabilidade muita rara, não violou as regras de legis artis.
Outra coisa bem diferente é que o Bactrim D.S. é um medicamento que está contra-indicado para grávidas.
Conhecendo a gravidez da Autora, a 2ª Ré não lhe devia prescrever, à partida, o Bactrim D.S..
Pese ser contra-indicado para grávida, o Bactrim D.S. poderá ainda ser tomado no início da gravidez, desde que as vantagens sejam maiores aos riscos associados à infecção em causa e que se faça em conjunto com ácido fólico.
Significa que não é absolutamente excluída a prescrição do Bactrim D.S. para paciente grávida, mas a sua prescrição está condicionada com a avaliação e ponderação cautelosa feita pelo médico sobre os riscos e as vantagens da toma desse medicamento.
No caso em apreço, não se demonstram factos reveladores de que a 2ª Ré, antes da prescrição do Bactrim D.S. para a Autora, tinha feito tal processo de ponderação dos riscos e vantagens. Pois, os factos indicam que a consulta realizada em 11 de Maio de 2010 é a primeira consulta à 2ª Ré, logo que verificasse a infecção urinária, foi prescrito o Bactrim D.S. à Autora, sem quaisquer pormenores sobre o estado de saúde da Autora, nomeadamente, os dias em que a Autora já estava com febre, o seu grau, se a Autora já tinha tomado outros antibióticos para combater a infecção e sem resultado, se existia risco para a vida da Autora caso não prescrevesse o Bactrim D.S., circunstâncias que entendemos dever ter tomado em consideração na prescrição desse medicamente para uma grávida.
Poi, sendo contra-indicado para grávidas, a não prescrição é regra, a sua prescrição já é excepção.
Os factos justificativos da prescrição do Bactrim-D.S. constituem factos impeditivos à regra geral, por força do disposto do n°2 do art°335° do C.C., incumbe ao médico o ónus de alegar e provar esses factos.
No entanto, não foram alegados nem provados quaisquer factos indicativos da necessidade da prescrição do Bactrim-D.S. para a Autora, quem estava grávida com 5 semanas e 6 dias, contra a regra da não prescrição para grávidas.
Na ausência dos factos indicadores para ponderação dos riscos e vantagens para a Autora, sendo esses factos favoráveis à 2ª Ré cujo ónus de prova lhe incumbe. Por força do disposto do art°437° do C.P.C., a questão será resolvida contra a 2ª Ré, portanto, é de julgar que não há justificação da maior vantagem para a Autora em relação aos riscos inerentes ao Bactrim D.S..
Assim, não deverá a 2ª Ré prescreveu o Bactrim D.S. para a Autora por ela estar no início da gravidez com apenas de 5 semanas e 6 dias, daí de resulta que a 2ª Ré violou as regras de arte legis, portanto, o cumprimento da prestação por parte da 2ª Ré é defeituoso.
Nestes termos, verifica-se o requisito da ilicitude.
*
Culpa
No que diz respeito à culpabilidade, conforme o que se deixa referido acima, ao presente caso é aplicável a regra geral da responsabilidade contratual, por força do disposto do art°788°, n°1 do C.C., a Autora goza da presunção da culpa por parte do devedor, incumbe a este provar o cumprimento defeituoso não provém da culpa sua.
No caso em apreço, não se mostra provada matéria factual que permite a afastar a presunção da culpa imputada ao devedor, assim, é de concluir que existe culpa por parte da 2ª Ré na sua actuação.

Danos
Não houve divergência das partes quanto à existência desse requisito.
Vem comprovado que, em 23 de Maio de 2010, apareceram à Autora manchas vermelhas nas faces, que alastraram ao pescoço, com dores e dificuldade de respiração, entre 24 e 25 de Maio a infecção cutânea alastrou por todo o corpo, até para o olho direito, no qual apareceu uma bolsa de líquido e um pequeno quisto junto na parte interna da pálpebra superior, havendo deslocamento epidérmico com um grau entre 10% e 30%. Todas essas são características típicas duma doença rara, aguda e fatal da pele e das mucosas conhecida por Síndroma Steven-Johnson, que é provocada pela toma do Bastrim D.S..
Por causa do sofrimento da Síndroma Steven-Johnson, a Autora ficou internada durante 24 horas na Unidade de Cuidados Intensivos e após a alta hospitalar em 18 de Junho de 2010, a Autora continuou a submeter-se às consultas de cirurgia plástica, oftalmologia e dermatologia.
Pois, a infecção cutânea grave acima descrita e as sequelas derivadas da infecção são danos físicas directamente produzidos à Autora após a toma do medicamento Bactrim D.S.
Assim, dúvidas não deverão haver que se verifica o requisito de dano.

Nexo de causalidade
Para que haja lugar a indemnização, é ainda necessário averiguar mais um requisito que é o nexo de causalidade entre os danos sofridos pela Autora e o facto ilícito praticado pela 2ª Ré.
Preceitua-se o art°557° do C.C. que “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.”
É consabido que é consagrada, nesse preceito, a chamada teoria de adequação causal, no que diz respeito ao nexo de causalidade.
Segundo o ensinamento do Prof. Antunes Varelas, “Para impor alguém a obrigação de reparar o dano sofrido por outrem, não basta que o facto praticado pelo agente tenha sido, no caso concreto, condição (s.q.n.) do dano; é necessário ainda que, em abstracto ou em geral, o facto seja uma causa adequada do dano. Há que escolher, entre os antecedentes históricos do dano, aquele que, segundo o curso normal das coisas, se pode considerar apto para o produzir, afastando aqueles que só por virtude de circunstâncias extraordinárias o possam ter determinado. Que o facto seja condição do dano será requisito necessário; mas não é requisito suficiente, para que possa ser considerado como causa desse dano.” ( in Obrigações em geral, Vol. I. pg. 887)
Existem duas variantes do conceito da causa adequada.
A primeira variante é que o facto será causa adequada do dano, sempre que este constitua uma consequência normal ou típica daquele, ou seja, sempre que, verificado o facto, se possa prever o dano como uma consequência natural ou como um efeito provável dessa verificação.
A segunda variante consiste na formulação negativa, o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo em todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto. (Antunes Varelas, in obra citada, pg. 888 e 889)
Assim, a causa adequada significa que basta o facto seja condição do dano, mesmo que seja apenas uma das condições do dano; não é necessário que o dano seja previsível para o autor do dano; a causalidade adequada não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu ao dano.

Olharemos para o nosso caso, se existe nexo causal entre o facto ilícito praticado pela 2ª Ré e os danos, sob as considerações supra expostas.
Ora, os danos que a Autora sofre consiste essencialmente na contracção da doença Steven-Johnson, que é, justamente, provocada pela toma do Bactrim D.S., medicamento prescrito pela 2ª Ré.
Não temos dúvidas de que a prescrição do Bactrim D.S. é condição do dano, pois sem esse facto, certamente, a Autora não sofresse da Síndroma de Steven Johnson.
No entanto, não achamos que nesse caso concreto, podemos estabelecer o nexo causal entre o facto ilícito e os danos, por seguintes razões:
Primeiro. Se consideramos isoladamente o facto ilícito, que é a prescrição do Bactrim D.S. para a Autora por ser grávida e os danos verificados, que é a contracção do Síndroma de Steven Johnson, provocada pela toma do referido medicamento, parece que os danos sofridos pela Autora são causados pelo acto da 2ª Ré.
No entanto, se considerarmos no próprio processo factual, a conclusão será outra. Com efeito, a ilicitude do acto da 2ª Ré não consiste somente na prescrição do Bactrim D.S. para tratar a infecção urinária que a Autora sofria mas somente em ter prescrito esse medicamento à Autora enquanto estava grávida, ou seja, se a Autora não estivesse grávida, a prescrição desse medicamento pela 2ª Ré não é censurável. Portanto, o erro que a 2ª Ré cometeu é a prescrição do Bactrim D.S. para a doente grávida por ser contra-indicado e não apenas a prescrição do Bactrim D.S.. Atenta a esta especificidade, então, os danos adequadamente produzidos por esse facto não devem ser quaisquer danos causados pelo Bactrim D.S. mas apenas os danos produzidos pelo acto que tenham ligação com a gravidez, segundo a lógica normal do processo factual. Por exemplo, o prejuízo causado ao estado de gravidez ou ao próprio feto, etc.
No caso concreto, a infecção cutânea grave de que a Autora padecia é diagnosticada como Síndroma Steven Johnson, que se trata, no fundo, duma reacção alérgica grave pela Autora ao medicamento Bactrim D.S., sendo uma doença rara e excepcional. Todavia, segundo o relatório pericial constante de fls. 1133, a contracção do Síndroma Steven Johnson não tem nexo causal com a gravidez. Ou seja, não por ser grávida que a Autora, depois de ter tomado o medicamento referido, sofreu dessa Síndroma ou sofreu as consequências mais graves. Dito de outro modo, a Autora sofreria, igualmente, da Síndroma de Steven Johnson com a toma do Bactrim D.S. mesmo que não fosse grávida.
Apesar de ser contra-indicado para grávida que a 2ª Ré não o devia prescrever para a Autora, no entanto, as consequências graves de que a Autora sofreu após a toma do Bactrim D.S. não tem conexão com a gravidez, nem se mostra que o estado de gravidez da Autora foi posto em causa em virtude do erro praticado pela 2ª Ré. Assim, não podemos dizer que existe o nexo causal entre o erro cometido pela 2ª Ré e os danos da Autora.
Segundo. Como se deixa referido acima, uma das variantes da causalidade adequada consiste na formulação negativa, isto é, o facto ilícito pode ser considerado de todo em todo indiferente, na ordem natural das coisas, para a produção dos danos, os danos são provados por circunstâncias excepcionais, anormais extraordinárias ou anómalas, que interferem no caso concreto.
É justamente nesse caso concreto. Vem comprovado que a probabilidade de contrair essa síndroma pela toma do Bactrim D.S. é apenas 5 a 7 por cada milhão. O risco de contrair a Síndroma de Steven-Johnson é muito raro.
A contracção da Síndroma de Steven-Johnson é imprevisível para o médico, sendo indiferente, para esse efeito, a prescrição do Bactrim D.S., para o doente grávida ou não grávida, a provocação dos danos depende da circunstância rara e excepcional, que é a reacção alérgica do próprio doente ao medicamento. Daí que, os danos sofridos pela Autora não são efeitos normal e adequadamente produzidos pelo facto de 2ª Ré ter prescrito o Bactrim D.S. a ela que estava grávida. Podemos dizer que os danos sobrevindos são indiferentes em relação ao erro cometido pela 2ª Ré. Assim, deverá também afastar o nexo causal entre o acto da Ré e os danos. Desse modo, não deverá considerar o facto ilícito da 2ª Ré como causa adequada do dano.
Em conclusão, não nos julgamos haver o nexo de causalidade entre o facto praticada pela 2ª Ré e o dano.».

Vejamos então.

A decisão sob recurso exclui o nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo (que consistiu na prescrição do Bac
0trim DS à Autora quando estava grávida) e a causa dos danos (que foi o ter contraído o síndroma Stevens-Johnson) com recurso à causa virtual.
A decisão quanto à existência de um acto ilícito culposo não é objecto do recurso, no entanto não pode analisar-se a questão “sub judice” sem nos debruçarmos sobre a parte em que se conclui pela existência de uma acção ilícita e culposa.
Conclui-se pela existência de “acto ilícito” porque não é recomendado prescrever Bactrim DS a grávidas sem que haja sido feita uma prévia avaliação da situação de onde resulte a ponderação entre os riscos e os efeitos benéficos.
Mas esta ponderação tem a ver com a gravidez!
Porém, como também se refere, nada se alega ou demonstra que tenha sido afectada a gestação da Autora.
Nada se alega de consequências negativas que tenham resultado para o feto e criança que terá vindo a nascer (uma vez que nada se diz em contrário).
Nada se alega de complicações que tenham ocorrido no parto.
Ou seja, nada se alega que tenha sido para a gestação e feto um efeito negativo proveniente da causa que foi a toma do Bactrim DS.
Como se vê da decisão sob recurso conclui-se que os danos que a Autora sofreu resultaram da doença Stevens-Johnson.
Da prova produzida o que resulta demonstrado é que em consequência de ter tomado Bactrim DS a Autora contraiu síndroma Stevens-Johnson e que essa reacção alérgica (em que se traduz o síndroma Stevens-Johnson) embora seja conhecida é impossível de precaver, sendo um dos efeitos possíveis subsequentes à toma daquele fármaco numa probabilidade de 2-7 por cada milhão.
Por um facto fortuito e imprevisível a toma do fármaco, numa percentagem muito baixa e que não se pode precaver pode causar uma reacção secundária lesante da saúde do paciente que resulta no síndroma Stevens-Johnson.
Não havia qualquer conduta de cuidado que pudesse ser exigida ao médico no sentido de prevenir a situação.
Logo, o efeito negativo e lesante em que se traduz a reacção alérgica (síndroma Stevens-Johnson) é algo que transcende a acção humana, sendo imprevisível no sentido que não pode ser evitada embora seja conhecida.
Isto é, o efeito resultou de uma causa exterior à actuação da 2ª Ré não lhe podendo ser imputável de modo algum.
Sendo várias as teorias sobre o nexo de causalidade, a solução do problema no caso em apreço reside na posição que se considere ter sido adoptada pelo legislador quanto ao nexo de causalidade entre a acção ilícita e culposa e o dano.
A este respeito escreve António Menezes Cordeiro em Tratado de Direito Civil, Vol. VIII, pág. 542 e 548 a 550:
«I. A fórmula da adequação traduziu, efectivamente, uma cobertura linguística que permitiu, ao longo de um século, aos tribunais, fazer prevalecer uma causalidade comum, assente no bom senso e na experiência. Os casos de fronteira ficavam, contudo, desamparados. A causalidade constitui um sector onde seria de esperar um progresso bem mais vincado, apoiada na realidade que, ao Direito, cumpre solucionar e, não, em meras locubrações centrais.
Um conhecimento, mesmo superficial, do actual estado das questões, na literatura jurídico-científica, mostra que a adequação não mais pode vir referida como a solução definitiva da causalidade. Estamos, já, bastante para além disso.
Antes de prosseguir, tendo em conta a realidade nacional, cumpre esclarecer que o artigo 563º, do Código Civil, ao contrário do que se entende em decisões jurisdicionais, não impõe a causalidade adequada, como Direito vigente. De resto, nem faria sentido prescrever teorias obrigatórias. O artigo 563º em causa, como compete a uma acção legislativa, tem duas finalidades objectivas:
- afasta, como princípio, a causalidade virtual, como fonte de imputação: não se responde, civilmente, por condutas que, embora ilícitas e culposas, não chegaram a provocar danos;
- arreda, como regra, a necessidade da absoluta confirmação do decurso causal: não há que provar tal decurso mas, simplesmente, a probabilidade razoável da sua existência.
Temos, pois, uma dupla directriz de equilíbrio: protege-se o responsável, evitando a causalidade virtual, particularmente na vertente positiva, e tutela-se o lesado, facultando a indemnização, perante meras probabilidades fácticas. Esclarecidos estes pontos prévios, vamos verificar como, na prática, são reconhecidas e enquadradas as questões de causalidade.».
E
«I. No tocante ao nexo de causalidade requerido pela responsabilidade aquiliana, cumpre deixar explícito que não existem, no estado actual da Ciência do Direito, fórmulas universais válidas. Ou melhor: tais fórmulas podem ser ensaiadas; mas são pouco úteis, em casos menos habituais, tanto mais que só são alcançáveis em planos de elevada abstracção. A causalidade relevante deve ser construída, caso a caso, perante as directrizes da Ciência do Direito.
II. O artigo 563º do Código Civil, a propósito da obrigação de indemnização, dispõe:
A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
A jurisprudência, sob influência de Antunes Varela cuja obra se conserva muito divulgada, afirma haver aqui uma formulação negativa da causa adequada. Na verdade, a lei não refere qualquer adequação, o que não prejudica, uma vez que estamos, por excelência, numa área de elaboração jurídico-científica. De todo o modo, fica claro que não se deve pedir ao artigo 563º o que ele não pretende dar.
No domínio da causalidade, podemos distinguir dois planos, para efeitos de análise:
- a causalidade enquanto pressuposto de responsabilidade civil;
- a causalidade como bitola de indemnização.
No primeiro plano, opera, como filtro negativo, a conditio sine qua non: se o facto ilícito foi indiferente para a produção do dano, não há como imputá-lo ao agente. Mas não chega: pela positiva, haverá que formular um juízo humano de implicação; dadas as condições existentes, era compaginável, para a pessoa normal, colocada na situação de agente, que a conduta deste teria como resultado razoavelmente provável ou, simplesmente, possível, a produção do dano. A “pessoa normal” é uma pessoa social, integrada no meio onde o problema se ponha. Temos, aqui, uma ideia de adequação, que pode ser enriquecida ao infinito com múltiplas considerações.
Mas também não chega: a causalidade pode não ser “socialmente adequada” mas ter sido voluntariamente montada para se conseguir, ainda que por via anómala, o resultado. Teremos, então, a causalidade provocada.
Progredindo: o elemento decisivo para fixar a causalidade será o escopo da norma violada: um avanço que não mais se pode perder.
Em síntese, podemos afirmar que a causalidade, enquanto pressuposto de responsabilidade civil, se vai desenvolver em quatro tempos:
- conditio sine qua non;
- adequada, em termos de normalidade social; ou
- provocada pelo agente, para obter o seu fim;
- consoante com os valores tutelados pela norma violada.
Estes tempos equivalem a cortes numa realidade onticamente unitária Derivam da necessidade de análise e da incapacidade da linguagem humana transmitir, numa só expressão, esta realidade.».
Também sobre esta matéria veja-se Comentário ao Código Civil, Direito da Obrigações, Universidade Católica Editora, pág. 555:
«A doutrina da causalidade adequada, que, como observaremos, foi acolhida no nosso direito, qualifica como causa de um dano o facto que, sendo em concreto uma condição necessária do resultado, é suscetível de produzir aquele prejuízo, segundo o curso normal dos acontecimentos. No juízo de prognose abstrata, são atendíveis as circunstâncias conhecidas ou cognoscíveis do lesante. Aquele juízo é, ainda, perspectivado numa formulação negativa ou numa formulação positiva. Nas hipóteses de responsabilidade civil por factos ilícitos, o facto só não constitui uma causa do dano se for de todo em todo indiferente à produção daquele, verificando-se o resultado pela intervenção de circunstâncias anómalas ou excecionais (formulação negativa, de ENNECCERUS-LEHMANN).».
Ora, como bem resulta das citações supra quando o dano resulta de circunstâncias anómalas ou excepcionais “não pode” ser imputado ao facto ilícito, da mesma forma que ninguém responde por factos ilícitos que não chegaram a gerar danos.
Na decisão sob recurso conclui-se pela existência de um facto ilícito e culposo do qual contudo não resultou dano algum.
No caso dos autos o dano resulta de uma circunstância rara, que sendo previsível, embora numa escala de muito baixa probabilidade, não pode de modo algum ser imputada ao agente, é alheia à vontade deste e resulta unicamente de circunstâncias que não podem de modo algum, neste estado da ciência, ser controladas pela ciência médica.
A reacção alérgica a um medicamento, nos níveis mínimos como ocorre no caso dos autos, que embora conhecida (e apenas por isso previsível) não há como previamente evitar, não pode ser imputada ao clínico que prescreveu o medicamento.
Bem andou a sentença recorrida ao afastar a responsabilidade médica por ter sobrevindo à Autora o síndroma Stevens-Johnson e os danos subsequentes a este.
Cabia à Autora ter demonstrado que a Ré médica violou algum dever de cuidado ou a “legis artis” ao ter-lhe receitado Bactrim DS que se tivesse cumprido (o dever de cuidado e a legis artis) tinha evitado o efeito. Seria pela violação desse dever de cuidado que a Autora veio a tomar Bactrim DS quando não o devia ter feito e por causa disso havia sofrido o Síndroma e todos os efeitos danosos que daí decorreram.
Contudo, aquela prova não foi feita.
E o que resulta da factualidade apurada é precisamente o contrário. Ainda que a prescrição de Bactrim DS à Autora “por estar grávida” não fosse adequada ou exigisse maiores cuidados, daí não resultou nenhum efeito danoso. Os danos resultam de uma causa que sendo previsível e conhecida, mas não evitável, uma reacção alérgica, e que pode ocorrer apenas pela simples toma do fármaco independentemente de estar grávida ou não.

Não é inócua a reacção da Autora à prova da matéria do item 48º porque é precisamente este o facto que afasta/impede o nexo de causalidade entre o facto ilícito culposo e o dano.

Assim sendo, das conclusões de recurso da Autora, é certa a conclusão E, mas está viciada de erro a conclusão F, uma vez que o acto ilícito culposo é prescrever Bactrim DS a grávidas, não havendo qualquer violação das normas legais como se indica em G, uma vez que não ocorre o nexo de causalidade previsto no artº 577º do C.Civ., não assistindo razão à Autora nas demais conclusões de recurso uma vez que lhe cabia, como se referiu, demonstrar não só o facto ilícito, como também, o nexo de causalidade entre este e os danos uma vez que são constitutivos do seu direito – artº 335º nº 1 do C.Civ. -, prova essa que como já se referiu não foi feita.

IV. DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos nega-se provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.

Custas a cargo da Recorrente.

Registe e Notifique.

RAEM, 18 de Junho de 2020.
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
Lai Kin Hong
Tong Hio Fong
1 Expurgámos das conclusões apresentadas a matéria referente ao pedido de rectificação que já foi satisfeito de modo a reduzir o texto ao que realmente interessa.
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1185/2019 CÍVEL 1