Processo nº 923/2019
(Autos de Recurso Cível e Laboral)
Data do Acórdão: 18 de Junho de 2020
ASSUNTO:
- Usucapião
- Parques de estacionamento
- Partes comuns do prédio
SUMÁRIO:
- Os parques de estacionamento, sendo partes comuns do prédio, natureza esta estabelecida no respectivo registo do título constitutivo da propriedade horizontal, não são passíveis de apropriação individual, designadamente por meio da aquisição prescritiva, se e enquanto se mantiver inalterada esta natureza.
____________________________
Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 923/2019
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 18 de Junho de 2020
Recorrentes: A e B
Recorridas: C e D
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A e B, com os demais sinais dos autos,
vieram instaurar acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra,
C e D também eles com os demais sinais dos autos,
Pedindo em síntese que se declarem os Autores como únicos titulares do direito ou menções especiais do uso do parque 271 da fracção autónoma designada BJR/C do prédio descrito na Conservatória do registo Predial sob o nº 2XXX8 por o terem adquirido por usucapião.
Proferido despacho a indeferir liminarmente a p.i. por manifesta improcedência dos pedidos nos termos do artº 394º nº 1 al. d) do CPC, vieram os Autores interpor recurso do mesmo, apresentando as seguintes conclusões de recurso:
(1) No despacho de fls. 251 a 253v. dos autos, o Tribunal decidiu: “Pelo exposto indefiro liminarmente todos os pedidos dos AA.”.
(2) Mantemos o habitual respeito com a decisão judicial. Todavia, inconformados com a sentença recorrida, os 1º e 2ª Recorrentes vieram interpor o presente recurso ordinário.
(3) I. A sentença recorrida não indicou as normas jurídicas; na sentença recorrida apenas se procederam à análise e decisão sobre a petição inicial apresentada pelos 1º e 2ª Recorrentes, no entanto, não se indicaram as normas jurídicas em que se fundamentou a sentença, pelo que a sentença recorrida violou o disposto no nº 2 do artº 562º do Código de Processo Civil; padecendo do vício de nulidade previsto na alínea b) do nº 1 do artº 571º do Código de Processo Civil.
(4) Nesta conformidade, deve o Tribunal declarar nula a sentença recorrida; e providenciar o prosseguimento das ulteriores instâncias e a citação das Rés.
(5) II. A sentença recorrida é incompatível com o disposto nos artigos 394º, 139º e 405º, nº 3 do Código de Processo Civil, padecendo do vício de ilegalidade;
(6) Em conjugação com o disposto na Lei de bases da organização judiciária e no Código de Processo Civil, e com o valor da acção, a sentença recorrida só deve, nos termos do disposto nos artigos 394º, 139º e 405º, nº 3 do Código de Processo Civil, proferir a sentença final da causa.
(7) Ao abrigo do disposto no nº 3 do artº 405º do Código de Processo Civil, caso a sentença seja proferida de acordo com esta disposição, o Tribunal só pode proferir a sentença depois da apreciação das contestações dos Autores e das Rés.
(8) Entretanto, a presente causa ainda se encontra na fase de apreciação da petição inicial, e não foram citadas as Rés, portanto, no nosso entendimento, o Tribunal não deve proferir a sentença de acordo com a referida disposição, caso contrário, verificar-se-á a violação do artº 405º e das regras processuais mencionadas nas respectivas normas do Código de Processo Civil.
(9) Contudo, a sentença recorrida não concordou com isso, bem como indeferiu todos os pedidos formulados pelos 1º e 2ª Recorrentes, enfermando, portanto, do vício de ilegalidade.
(10) Os 1º e 2ª Recorrentes entendem que, com a aplicação correcta do disposto no nº 3 do artº 405º do Código de Processo Civil, deve o Tribunal declarar anulada a sentença recorrida; e providenciar o prosseguimento das ulteriores instâncias e a citação das Rés.
(11) Se o Tribunal não entender assim, a sentença recorrida foi proferida nos termos do disposto nos artigos 394º e 139º do Código de Processo Civil, sendo um caso de indeferimento liminar.
(12) Nos termos do disposto no artº 394º do Código de Processo Civil, a petição inicial é liminarmente indeferida quando se verifiquem os respectivos pressupostos.
(13) Nesta causa, a petição inicial apresentada pelos 1º e 2ª Recorrentes reúne os elementos constitutivos legais previstos nas supracitadas normas. Pelo que entendemos que a sentença recorrida resulta da aplicação incorrecta do disposto nos artigos 394º e 139º do Código de Processo Civil, padecendo do vício de ilegalidade.
(14) Entendem os 1º e 2ª Recorrentes que, com a aplicação correcta do disposto nos artigos 394º e 139º do Código de Processo Civil, deve o Tribunal declarar anulada a sentença recorrida; e providenciar o prosseguimento das ulteriores instâncias e a citação das Rés.
(15) III. Se merece ser sustentado o fundo da causa decidido na sentença recorrida.
(16) Se o Tribunal não entender assim, os 1º e 2ª Recorrentes vêm apresentar os seguintes fundamentos.
(17) Da sentença recorrida se vislumbra que, no nosso entendimento, é muito provável que a sentença recorrida se fundamente na parte final da alínea d) do nº 1 do artº 394º do Código de Processo Civil: “ou quando, por outro motivo, for evidente que a pretensão do autor não pode proceder”.
(18) A petição inicial apresentada pelos 1º e 2ª Recorrentes consta de fls. 2 a 12 dos autos, e uma das provas documentais relativamente essencial, ou seja, a certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial da R.A.E.M., também consta de fls. 29 a 229 dos autos.
(19) Uma das causas de pedir invocada pelos 1º e 2ª Recorrentes consiste na existência de documento que demonstra a compra do parque de estacionamento em causa, a par disso, tal parque foi usado há vários anos para o estacionamento de veículo; por conseguinte, no pedido existem mormente as seguintes solicitações: Foi requerido ao Tribunal que declarasse que os 1º e 2ª Recorrentes possuíam o referido parque de estacionamento, adquiriam o direito sobre o referido parque por usucapião – direito de uso, bem como declarasse que os Recorrentes eram os únicos titulares, e ordenasse a efectuação do registo predial adequado.
(20) A sentença recorrida analisou e esclareceu as causas de pedir e os pedidos supra mencionados, denegando todos os pedidos. Entendeu essencialmente que o referido parque de estacionamento era uma das partes comuns do edifício, não podendo ser possuído nem dividido, pelo que não era possível a aquisição de direito sobre o mesmo por usucapião.
(21) Devemos analisar o direito em apreço e tiramos uma nova conclusão.
(22) Primeiro; no condomínio, mesmo que seja a aquisição duma fracção autónoma, isto implica meramente a existência de direito legal sobre o aludido espaço, como o direito de propriedade; e não existe o direito de propriedade exclusivo sobre as restantes partes comuns do prédio; a par disso, relativamente às partes que são pertencentes comummente a todos os proprietários, não são permissíveis a alteração da sua utilidade, a sua divisão, entre outros, sem a conciliação dos comproprietários e a autorização da Administração (Governo).
(23) Assim sendo, no título constitutivo do edifício, com a apreciação e autorização do Governo, são definidas as partes que pertencem a indivíduo ou que pertencem comummente a todos os proprietários do edifício, sendo definido também o atributo do referido parque de estacionamento no edifício.
(24) Segundo; conforme a realidade actual de Macau, na propriedade privada, os parques de estacionamento são classificados em vários tipos, e, na análise da natureza do objecto, só se pode tirar uma conclusão depois de ter efectuado uma verificação geral da situação.
(25) Terceiro; embora o título constitutivo do edifício possa ser alterado nos termos dos artigos 1317º e subsequentes do Código Civil vigente, não se deve violar as respectivas legislações e normas da Administração Pública, com vista a garantir que o edifício seja idóneo para ser habitado, e evitar as influências negativas causadas ao ambiente circundante.
(26) Deste modo, o título constitutivo do edifício é justamente o fundamento principal que mostra se o direito sobre o objecto em causa pode ou não ser adquirido por posse e usucapião.
(27) Quarto; no que concerne ao direito de uso do objecto em causa – parque de estacionamento nº 271, de fls. 143 a 169 dos autos consta o título constitutivo do edifício (objecto), no qual foram estipuladas, em 30 de Janeiro de 1986, as partes comuns do prédio, as fracções autónomas e os respectivos direitos.
(28) Conforme o estipulado no ponto 5 de fls. 143, na alínea c) do ponto 6 de fls. 144 e em fls. 146 dos autos, no título constitutivo do edifício, foi constituído e distinguido um direito de uso relativamente autónomo sobre o objecto da acção, e não se tratam aqui das partes comuns do prédio indicadas no ponto 5 de fls. 143. Portanto, o objecto foi juridicamente delimitado em conformidade com o título constitutivo.
(29) Quinto; de fls. 230 a 231 dos autos constam 4 fotografias que mostram a situação actual do objecto, o objecto não é conectado a quaisquer instalações de higiene, de contra incêndios, de ambiente, de fornecimento de electricidade, água e gás, entre outras, que são indispensáveis para o edifício; ou o uso e a posse do objecto afectam a situação supra mencionada (sic).
(30) É imprescindível indicar que tal direito de uso é restringido pelo título constitutivo do edifício, ou seja, os parques destinam-se exclusivamente a estacionamento de veículo, e não têm outros fins que não sejam o supracitado.
(31) Por conseguinte, o objecto é, efectiva e realmente, dividido e delimitado, não havendo conexão significativa entre o mesmo e as instalações de fornecimento de água, electricidade e gás, os tubos de águas residuais, as instalações de contra incêndios, as fracções, entre outros, do edifício, nem se verificando a afectação do gozo dos direitos legais pelos demais titulares do edifício.
(32) Sexto; o título constitutivo do edifício foi emitido em 30 de Janeiro de 1986, pelo que é necessário ver o disposto no artº 1421º do Código Civil de 1966, aplicável a este caso. O nº 1 do artº 1421º do Código Civil de 1966 prevê o âmbito da compropriedade; isto é, basicamente, como o conteúdo das alíneas a) a o) do ponto 5 de fls. 143 dos autos que foi estabelecido como partes comuns;
(33) O nº 2 do artº 1421º do Código Civil de 1966 prevê a presunção do âmbito da compropriedade, tendo a natureza distinta da disposição supra mencionada; na alínea d) do nº 2 do referido artigo indicam-se “As garagens”, cuja tradução para chinês é “車庫”; e, na alínea e) descreve-se o seguinte: “Em geral, as coisas não sejam afectadas ao uso exclusivo de um dos condómninos (sic).”, cuja tradução para chinês é “其他未撥予分層建築物之某一所有人專用之物”.
(34) Conforme a norma basilar prevista no nº 2 do artº 350º do Código Civil de 1966, as presunções legais podem ser ilididas mediante a plena prova em contrário; nos títulos constitutivos constantes de fls. 143, 144 e 146 dos autos foi feita uma distinção manifesta entre os direitos de uso da garagem e do parque de estacionamento em causa.
(35) Assim sendo, o objecto da acção foi distinto das partes comuns, e sobre o qual foi constituído um direito de uso, cujo âmbito é o mera estacionamento de veículo; tais distinção e constituição eram compatíveis com o preceito legal aplicável na dada altura, a par disso, foram completados a respectiva autorização administrativa e o registo predial.
(36) Sétimo; conforme tanto o Código Civil de 1966, ou as disposições que sofreram alterações antes de 1999, como o Código Civil vigente, os títulos constitutivos de edifício não são inalteráveis, podendo os mesmos ser alterados ao abrigo das respectivas normas. Isto é, tanto o artº 1317º do Código Civil vigente como o artº 1417º do Código Civil de 1966 prevêem que os títulos constitutivos podem ser constituídos e alterados mediante várias formas legais.
(37) O direito em causa – direito de uso do parque de estacionamento – é, no âmbito legal, afastado da esfera jurídica dos co-proprietários do edifício, por conseguinte, o direito desse âmbito jamais afecta o título constitutivo ou os proprietários do edifício.
(38) Oitavo; na petição inicial dos autos, enumeramos detalhadamente os respectivos fundamentos, ou seja, entre os artigos 33º e 88º dos fundamentos de Direito, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido nos termos do princípio da economia processual;
(39) A lei não prevê expressamente a proibição da posse e da aquisição por usucapião do direito de uso reconstituído sobre as partes comuns do prédio; além disso, entendemos que foram satisfeitos todos os elementos constitutivos activos e passivos da posse e da aquisição por usucapião do direito de uso em causa.
(40) Suponhamos que seja constituída a propriedade horizontal sobre o terreno concedido por arrendamento, mencionado na Lei de Terras, seja possuída parte da fracção autónoma, e sejam possuídas as partes comuns do prédio inteiro, desde que se verifique o preenchimento dos respectivos pressupostos, os direitos em apreço podem ser adquiridos por posse e usucapião.
(41) Assim sendo, o direito de uso (estacionamento de veículo) delimitado, pelo título constitutivo, das partes comuns do prédio pode ser adquirido por posse e usucapião.
(42) Nono; recentemente, no douto acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância no processo nº 887/2018, foi confirmada a douta decisão do Tribunal Judicial de Base; sendo interpretada como: das partes comuns do prédio pode delimitar-se uma área e um espaço sobre os quais pode ser constituído um direito exclusivo de uso; tal direito deve ser constituído no título constitutivo, ademais, o Regulamento de Propriedade Horizontal aprovado pela Assembleia de Condomínios não pode alterar o aludido título; salvo actos de intervenções urgentes ou conservação da parte comum do prédio, entre outros eventos particulares e independentes, é proibido o uso do espaço delimitado, pelo título constitutivo, das partes comuns do prédio por todos os proprietários do edifício.
(43) Por outras palavras, é efectivamente restringido o direito de propriedade sobre as partes comuns que sobre elas foi constituído o direito exclusivo de uso, a par disso, não é permitida a ofensa ao direito exclusivo de uso sem a declaração de vontade do seu titular.
(44) O objecto entrou na área do direito privado; o direito de uso do objecto para o estacionamento de veículo foi delimitado no título constitutivo do edifício; e efectuou-se devidamente o registo predial relativo à referida delimitação, pelo que todos os proprietários das fracções autónomas do edifício não podem intervir no gozo legal do direito de uso do objecto pelo seu titular.
(45) Também não existe legislação que proíba absolutamente a aquisição do direito de uso por posse e usucapião, por cima, os 1º e 2ª Autores indicaram expressamente que eles reúnem plenamente todos os elementos constitutivos legais activas e passivas. Também não (sic) o título constitutivo do edifício e os interesses dos proprietários das partes comuns do prédio, nem influencia as instalações e necessidades básicas – tais como as instalações de fornecimento de água e electricidade, de drenagem de águas residuais, de contra incêndios, de higiene ambiental, entre outros.
(46) Deste modo, a análise acima exposta eliminou praticamente as dúvidas dos doutos professores invocadas na sentença recorrida, bem como salvaguardou os interesses legais de qualquer terceiro que não seja Autores nem Rés.
(47) Assim, pelo exposto, o Tribunal deve sustentar a prossecução da instância em vez de rejeitar a petição inicial por considerar que a pretensão é manifestamente improcedente. Portanto, a sentença recorrida aplicou erradamente a parte final da alínea d) do nº 1 do artº 394º do Código de Processo Civil, padecendo do vício de erro na aplicação da lei, pelo que deve a mesma ser declarada anulada.
(48) Os 1º e 2ª Recorrentes entendem que, com o apuramento correcto da matéria de facto da causa e com a aplicação correcta da parte final da alínea d) do nº 1 do artº 394º do Código de Processo Civil, deve o Tribunal providenciar a citação das Rés e o prosseguimento das ulteriores instâncias.
(49) IV. A posse é um facto jurídico e não um direito, mas é legalmente garantida, ou seja, é oponível à ocupação e posse por outrem.
(50) Os 1º e 2ª Recorrentes pediram na matéria de facto e na alínea (4) do pedido apresentadas por eles que o Tribunal declarasse os mesmos ser únicos possuidores do objecto; porém, a sentença recorrida indeferiu esse pedido.
(51) A alínea (4) do pedido formulado na petição inicial, sendo um pedido autónomo, solicitou que se declarasse os 1º e 2ª Recorrentes ser únicos possuidores a partir da data designada; a posse não é um direito, mas sim, apenas um facto, ou até apenas um facto jurídico, ou seja, a posse não equivale a gozo do direito, porém, a declaração da existência do facto da posse implica uma garantia legal; a questão da existência ou não da posse e a da aquisição ou não do direito devem ser resolvidas separadamente; embora não seja possível a aquisição do direito, a posse ainda se pode opor a qualquer terceiro.
(52) Deste modo, o Tribunal deve sustentar a prossecução da instância, para que os 1º e 2ª Recorrentes possam ser legalmente garantidos, em vez de indeferir liminarmente a acção. Portanto, o despacho recorrido aplicou erradamente o disposto no artº 394º do Código de Processo Civil, padecendo do vício de erro na aplicação da lei, pelo que deve o mesmo ser declarado anulado.
(53) Os 1º e 2ª Recorrentes entendem que, com a aplicação correcta do disposto no artº 394º do Código de Processo Civil e do disposto nos artigos 1193º a 1211º do Código Civil; deve o Tribunal providenciar a citação das Rés e o prosseguimento das ulteriores instâncias.
(54) V. A sentença recorrida não apreciou a matéria relativa à extinção do direito de uso.
(55) A alínea (7) do pedido formulado na petição inicial apresentada pelos 1º e 2ª Recorrentes; sendo um pedido autónomo, solicitou a extinção do direito das 1ª e 2ª Rés – direito de uso (estacionamento de veículo). O aludido pedido é o artº 28º dos factos; sendo um facto autónomo.
(56) A sentença recorrida indeferiu todos os pedidos formulados pelos 1º e 2ª Recorrentes por considerar que o objecto da acção – direito de uso (estacionamento de veículo) – não podia ser adquirido por posse e usucapião.
(57) Todavia, a matéria referida no artº 28º dos factos e na alínea (7) do pedido não tem nada a ver com as normas jurídicas da posse e da usucapião, bem como à qual não são aplicáveis as aludidas normas jurídicas.
(58) Nos termos do disposto nos artigos 1412º, nº 1, 1402º, nº 1, al. d), e 320º a 325º do Código Civil, se o artº 28º dos factos e os factos correspondentes forem provados, nos termos das disposições supracitadas, o Tribunal tem de declarar extinto o direito de uso (estacionamento de veículo) das 1ª e 2ª Rés. Consequentemente, os 1º e 2ª Recorrentes podem continuar a usar, fundadamente e sem oposição das Rés, o parque para estacionar o seu veículo.
(59) Nesta conformidade, no que concerne a essa parte, a sentença recorrida enferma do vício de erro na apreciação de facto; e padece do vício de aplicação da lei (sic), por ter cometido erro na interpretação do disposto no artº 391º do Código de Processo Civil, pelo que deve o Tribunal declarar anulada a sentença recorrida,
(60) Os 1º e 2ª Recorrentes entendem que, com o apuramento correcto da matéria de facto, e com a aplicação correcta do disposto nos artigos 1412º, nº 1, 1402º, nº 1, al. d), e 320º a 325º do Código Civil, e do disposto no artº 391º do Código de Processo Civil, deve o Tribunal providenciar a citação das Rés e o prosseguimento das ulteriores instâncias.
(61) Enfim; os Recorrentes vêm requerer ao Tribunal que aprecie nos autos todos os vícios previstos na lei que estejam sujeitos à apreciação oficiosa do tribunal, bem como faça a tão acostumada justiça.
Nestes termos, requer-se ao Tribunal:
(1) Que admita as presentes alegações do recurso, procedendo à junção destas aos autos; e
Solicita-se ao douto Tribunal de Segunda Instância:
(2) Que declare nula a sentença recorrida por ter violado o disposto no nº 2 do artº 562º do Código de Processo Civil, e enfermado do vício de nulidade previsto na alínea b) do nº 1 do artº 571º do Código de Processo Civil; e que providencie o prosseguimento das ulteriores instâncias e a citação das Rés.
Se o TSI não entender assim, requer-se
(3) Que declare anulada a sentença recorrida por ter violado o artº 405º e as regras processuais mencionadas nas respectivas normas do Código de Processo Civil, e enfermado do vício de ilegalidade; e que providencie o prosseguimento das ulteriores instâncias e a citação das Rés.
Se o TSI não entender assim, requer-se
(4) Que declare anulada a sentença recorrida por ter aplicado erradamente o disposto nos artigos 394º e 139º do Código de Processo Civil, e enfermado do vício de erro na aplicação da lei; e que providencie o prosseguimento das ulteriores instâncias e a citação das Rés.
Se o TSI não entender assim, requer-se
(5) Que declare anulada a sentença recorrida por ter aplicado erradamente o disposto na parte final da alínea d) do nº 1 do artº 394º do Código de Processo Civil, e enfermado do vício de erro na aplicação da lei; e que providencie a citação das Rés e o prosseguimento das ulteriores instâncias. E
(6) Que declare anulada a parte da sentença recorrida, que decidiu sobre o pedido formulado pelos 1º e 2ª Recorrentes que solicitou declarar os mesmos ser únicos possuidores do objecto, por ter aplicado erradamente o disposto no artº 394º do Código de Processo Civil, e enfermado do vício de erro na aplicação da lei; e que providencie a citação das Rés e o prosseguimento das ulteriores instâncias.
Se o TSI não entender assim, requer-se
(7) Que declare anulada a parte da sentença recorrida, que indeferiu a alínea (7) do pedido formulado pelos 1º e 2ª Recorrentes na petição inicial e rejeitou o artº 28º dos factos, por ter enfermado do vício de erro na apreciação de facto, aplicado erradamente o disposto nos artigos 1412º, nº 1, 1402º, nº 1, al. d), e 320º a 325º do Código Civil, e o disposto no artº 391º do Código de Processo Civil, padecido do vício de aplicação da lei (sic); e que providencie a citação das Rés e o prosseguimento das ulteriores instâncias. E
(8) Admita o pedido formulado pelos 1º e 2ª Recorrentes que requereu ao Tribunal que aprecie nos autos todos os vícios previstos na lei que estejam sujeitos à apreciação oficiosa do tribunal, bem como faça a tão acostumada justiça.
Citadas as Rés e Recorridas para os termos do recurso e da causa, veio a Ré D contra-alegar, apresentando as seguintes conclusões:
I. Vem o recurso a que ora se responde interposto do douto despacho de fls. 251 e seguintes, e através do qual o douto Tribunal a quo indeferiu liminarmente todos os pedidos das AA..
II. Antes de mais, a ora Recorrida está-se modestamente em crer que ao indeferir liminarmente todos os pedidos dos AA, aquilo que o Meritíssimo Juiz a quo pretendia era indeferir liminarmente a petição por manifesta improcedência dos pedidos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 394º, nº 1, alínea d) parte final.
III. De toda a aliás douta fundamentação constante do Despacho recorrido resulta claro que o douto Tribunal a quo é do entendimento que evidentemente as pretensões dos Autores não podem proceder e, consequentemente, que a petição que apresentam deve ser liminarmente indeferida.
IV. Em se tratando de um lapso manifesto, aliás reconhecido pelos próprios Autores no seu Recurso, ainda que assim não o qualificando mas antes apontado como um verdadeiro erro de direito por violação do disposto no artigo 394º do CPC, poderá o mesmo ser rectificado ao abrigo do disposto no artigo 570º do C.P.C.
Porém, caso assim não se entenda, sempre se diga o seguinte:
V. Subscrevemos na íntegra a douta fundamentação do despacho recorrido no que respeita à manifesta improcedência dos pedidos deduzidos pelos Autores na presente acção, e acrescentamos o seguinte em defesa do despacho recorrido.
VI. Analisada a petição inicial e as próprias alegações de Recurso a que ora se respondem, e se tomarmos por verdadeiros os factos ali invocados (ainda que por mera cautela de patrocínio) e a eles aplicarmos a lei, bem assim se recorrermos aos ensinamentos da doutrina e jurisprudência, é manifesto que a pretensão dos Autores, ora Recorrente, não pode proceder e, como tal,
VII. Também no interesse dos Autores a quem uma decisão célere em tudo aproveita, será de confirmar a decisão do Tribunal recorrido.
VIII. Com relevância em sede do presente Recurso, os Autores, deduzem, cumulativamente, os seguintes pedidos:
˙Serem declarados possuidores de boa-fé desde 18.08.1988 ou de 18.08.1994 do lugar de estacionamento 271, parte comum do-prédio descrito na CRP sob o nº 2XXX8, e destinado ao uso exclusivo da fracção autónoma BJR/C;
˙Serem declarados os únicos titulares do direito ao uso exclusivo do referido parque de estacionamento decorrente da posse e por usucapião;
˙Ordenar-se a abertura de uma nova inscrição sob a fracção autónoma BJR/C, descrita na CRP sob o nº 2XXX8, a fim de inscrever o 1º e a 2º Autores como únicos titulares do direito ao lugar de estacionamento;
˙Concomitantemente, ordenar-se o cancelamento do direito do Réus ao lugar de estacionamento da fracção autónoma BJR/C, descrita na CRP sob o nº 2XXX8.
IX. Os contratos promessa de compra e venda (simples) em que os Recorrentes fundam o seu alegado direito, por recaírem sobre uma parte comum de um prédio, são de objecto impossível no que respeita à virtualidade de conferirem ou titularem a constituição de um direito real, contra um direito de com propriedade que recai sobre o bem e ainda contra o respectivo acordo de utilização.
X. Pelo que, a posse do lugar de estacionamento em causa nos presentes autos, uma parte comum do prédio, cujo direito de uso está reservado a um dos condóminos por força do titulo constitutivo da propriedade horizontal, não é susceptível de ser transmitida através dos contratos promessa de compra e venda invocados pelos Recorrentes.
XI. Donde não resultam violadas nenhumas das disposições legais invocadas pelos Recorrentes, como sejam, os artigos 1193º a 1211º, 1412º, nº 1, 1402º, nº 1 alínea d) todos do Código Civil.
XII. Nenhuma das aludidas pretensões dos Autores é possível sem a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio onde se situa o lugar de estacionamento em causa nos presentes autos.
XIII. Conforme resulta da certidão predial da fracção BJR/C junta aos presente autos a fls ..., os lugares de estacionamento existentes no prédio onde se situa aquela fracção não constam do título constitutivo da propriedade horizonta como fracções autónomas e, com tal, por aplicação do disposto no artigos 1324º, nº 1, alínea i) do Código Civil, são partes comuns do prédio, sendo que o uso do lugar de estacionamento 271 está atribuído à fracção BJR/C, conforme o permite o e nº 2 alínea b) do referido artigo 1324º do C.C..
XIV. Donde, mediante a aplicação do disposto no artigo 1321º do Código Civil, patente se torna ser, na presente sede, impossível dar procedência às pretensões formuladas pelos Autores, pois que necessário se tornaria proceder à alteração do título constitutivo da propriedade horizontal.
XV. E a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal só é possível mediante a deliberação tomada por unanimidade dos condóminos de todo o condomínio, ou, por decisão judicial quando tal unanimidade não se atinja, mas se atinjam votos favoráveis de 2/3 do valor total do condomínio.
XVI. Assim, face à supra regulação legal, é manifesto que os pedidos deduzidos pelos Autores são manifestamente improcedentes.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente Recurso ser julgado improcedente, mantendo-se o douto despacho recorrido.
Termos em que se fará a costuma JUSTIÇA!
Foram colhidos os vistos.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
É o seguinte o teor da decisão recorrida:
A e B AA com os sinais melhor identificado nos autos, vêm com a presente acção pedir que sejam reconhecidos como possuidores, para efeitos de usucapião, do parque de estacionamento designado por n° 271.
Dos elementos carreados nos autos, e atento à informação constante no registo de fls. 9 a 229 (tendo em especial o constante a fls. 146), verifica-se que o parque de estacionamento n° 271, objecto da presente lide, é uma parte comum do prédio “XX”, e que cujo direito de uso pertence à loja “BJo” (fracção autónoma “BJR/C”, melhor id nos autos.
Trata-se de um direito de uso sobre um lugar da parte comum constante do título da constituição da propriedade horizontal onde por unanimidade decidiu o respectivo afectação de uso.
Assim, salvo o devido respeito, parece-nos que o pretendido dos AA que por via da aquisição originária ― a usucapião― para reconhecer a propriedade de uma significativa parte de uma dada fracção autónoma do prédio “XX”, para o qual pretendendo também alterar o título constitutivo da propriedade horizontal respectiva, está em manifesta revelia do regime estatuído e disciplinador da propriedade horizontal.
Em sistema comparado, o acórdão do STJ de Portugal de 20-10-2011 diz que a propriedade horizontal é uma “figura jurídica nova, de um direito real novo que, embora moldado sobre os direitos reais à custa dos quais se formou, é mais do que a sua justaposição, reunindo uma teia de relações num complexo incindível de propriedade singular que recai sobre uma parte determinada de um prédio urbano e de compropriedade sobre outras partes dele, essenciais tanto à sua estrutura como à sua utilização funcional, quer dizer, ao exercício do domínio pleno sobre ele” ―Cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, A Tipicidade dos Direitos Reais, 1965, p. 195, CARVALHO FERNANDES, Lições de Direitos Reais, 2009, p. 335, MANUEL H. MESQUITA, A propriedade horizontal…, Separata da RDES, 53.
Salienta ainda MANUEL H. MESQUITA que “ o que há de específico no direito de propriedade sobre as fracções autónomas é apenas o facto de sobre tal direito impenderem restrições que não derivam do regime normal do domínio mas que a lei estabelece ou permite em virtude de o objecto do direito de cada condómino se integrar num edifício de estrutura unitária, onde existem outras fracções pertencentes a proprietários diversos”.
Assim, denota que num prédio constituído em propriedade horizontal a posição jurídica dos respectivos titulares não é a mesma que a dos proprietários de prédios a ela não sujeitos, pois existem partes próprias e partes comuns, e, mesmo nas partes próprias, existem limitações sérias ao poder de alterar o seu conteúdo e objecto. Cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, in Direitos Reais, 1971, p. 498: a propriedade horizontal é caracterizada como um novo direito real, de estrutura composta e complexa, que não corresponde exactamente à junção de propriedade plena sobre as fracções próprias com o regime da compropriedade das partes comuns, havendo sérias limitações aos poderes e deveres numa noutra situação, desde logo a sujeição a um regime próprio de relações, poderes e deveres.
No direito real de propriedade horizontal a questão do domínio encontra-se repartida em vários sujeitos, os condóminos, entrelaçando-se os interesses de uns, de forma inseparável, com os interesses dos demais condóminos, através de regras próprias, sendo de destacar que não está na disponibilidade de um ou de vários deles, conseguir (em), só por si, a alteração do título de constituição desse tipo de propriedade.
Dispõe o artigo 1321° do CCM que “o título constitutivo da propriedade horizontal pode ser modificado mediante deliberação tomada pela unanimidade dos condóminos de todo o condomínio…” (o sublinhado é nosso). Daí que é importante realçar que para a alteração do título de constituição, é indispensável que o mesmo título de constituição o permita ou a assembleia de condóminos se pronuncie e aprove as alterações sem qualquer oposição.
Note-se que, no caso sub judice, não estamos perante uma situação de constituição da propriedade horizontal por via de decisão judicial e com suporte na usucapião – permitida nos termos do artigo 1317° do CCM, incluindo quanto a lugares de estacionamento (artigo 1315° n° 2 do CCM) – mas, ao invés, uma desejada alteração do título constitutivo.
Por outro lado, para a garantia de todos os cidadãos de que não ficam postos em causa interesses próprios protegidos (e.g. o direito à habitação, de saúde, higiene e de bem estar e o da defesa do ambiente) ou até mesmo outros interesses mais vastos da comunidade e que se encontram em ascensão (e.g., o urbanismo, o planeamento e o desenvolvimento da comunidade), exige-se que quer a constituição da propriedade horizontal quer as suas eventuais e posteriores alterações, sejam objecto de sindicalização e licenciamento pela autoridade competente, por forma a garantir a sua conformidade às leis e regulamentos em vigor.
In casu, a alegada detenção pelos AA do lugar de estacionamento nº 271 consubstanciando actos de posse porque assentes na prática reiterada, com publicidade de actos materiais de gozo e fruição do referido espaço, como sendo um direito próprios, ao longo do tempo, portanto com relevo para a usucapião, não tem, no entanto, vocação para que à luz dela se constituam outras fracções para além das que como tal estão identificados no título constitutivo.1
É que, no âmbito do direito a reconhecer não pode extravasar o respectivo suporte sobre o qual a posse é exercida.
Assim, no domínio da propriedade horizontal, a usucapião, como fonte aquisitiva de direitos, só pode actuar nos estritos limites em que a propriedade horizontal se enquadra (art. 1187º-a) do CCM. e nunca extravasá-la. Cfr. DGSI, acórdão do STJ de 13/12/2007, Processo nº07A3023).
Nestes termos, a usucapião só opera a aquisição do direito real por forma correspondente ao direito sobre o qual se exerce a posse.
No caso, o direito que se alega ter exercido é o da posse sobre uma parte física de uma fracção autónoma de que o A. também é titular, em prédio submetido ao regime de propriedade horizontal. Cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, in Direitos Reais, 1971, p 336, “a usucapião é uma das formas de aquisição de direitos reais, pelo que, como a lei admite, pode operar, efectivamente, no âmbito da aquisição da propriedade horizontal, através da posse e do factor tempo. No entanto, o exercício dessa posse teria de ser em consonância com a estrutura do próprio direito, ao mesmo tempo complexo e composto,…pelo que a usucapião só pode operar na aquisição da fracção autónoma ou sua compropriedade, como um todo indiviso dentro da fracção autónoma, e nunca apenas actuando em parte de fracção autónoma (ob cit. p. 498).
Ora, se na propriedade horizontal o direito de propriedade exclusiva só se pode exercer sobre fracções autónomas, perfeitamente individualizadas no título constitutivo e não sobre parte delas, logo, estando o lugar de estacionamento em causa inserida fisicamente no espaço que é pertença também do A., não pode a R. vir opor enquanto a situação de indivisibilidade se mantiver, o que só poderia vir a acontecer se entretanto se tivesse tornado possível a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal. Cfr. ARAGÃO SEIA, in Propriedade Horizontal, p. 55 e ss; também Acs. Do STJ in www. Dgsi.pt, de 23/09/2003, proc. nº 03ª1835 (Nuno Cameira) e de 03/10/2006, proc. nº 06ª2497 (Sebastião Póvoas): “… esse objectivo é legalmente impossível sem a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, área em que o Tribunal não pode actuar porque se exige acordo prévio de todos os condóminos”.
Destarte, não pode operar aqui a usucapião para adquirir a propriedade sobre aquela parte do lugar de estacionamento de um todo mais vasto que compõe dada fracção. Cfr. CARVALHO FERNANDES, in Lições de Direitos Reais p. 313 “relativamente a usucapião há uma particularidade a assinalar. Para além de se recordar que, naturalmente, a correspondente posse há-de traduzir-se num comportamento que seja equivalente ao que assumiria um condómino, em relação a uma certa unidade de um prédio urbano, vale também para a usucapião a exigência de requisitos legalmente impostos para a constituição da propriedade horizontal. Se eles se não verificam, tal como sustentámos noutro local, só pode ter-se como adquirida uma situação de compropriedade próprio sensu.”.
Pelo exposto indefiro liminarmente a petição por manifesta improcedência dos pedidos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 394º nº 1 al. d) in fine do CPC2.
*
Vejamos então.
Começam os Autores/Recorrentes por invocar a nulidade da decisão recorrida por não se indicarem as normas jurídicas em que se fundamenta e por violação de lei ao se ter decidido em sede de despacho liminar.
A este respeito mostra-se adequado transcrever o que Helena Cabrita escreve em “A Fundamentação de Facto e Direito da Decisão Cível”, Coimbra Editora, pág. 248/249:
«Contudo, embora o tribunal deva conhecer de todas as questões suscitadas pelas partes, tal não significa que tenha de analisar todas as razões jurídicas invocadas pelas mesmas para sustentar as respectivas pretensões, bastando que, na fundamentação da sentença, indique as razões jurídicas que servem de apoio à solução adoptada pelo juiz.
Para além disso, deverá igualmente indicar as normas jurídicas aplicáveis, o que na maioria dos casos será feito por reporte ao artigo e legislação que as contém. Note-se, contudo, que inexiste qualquer imposição legal no sentido de o juiz ter de especificar na sentença as disposições legais que fundamentam a decisão (ou seja, o juiz não tem forçosamente de referir que decidiu de determinada forma com base no artigo X ou Y do código A ou B), bastando que mencione os princípios, as regras ou as normas nos quais se baseou para alcançar a solução adoptada.
O tribunal deverá ainda referir as razões pelas quais procedeu ao enquadramento jurídico nos termos em que o fez, bem como, quando tal se revelar necessário (designadamente por as partes pugnarem por qualificação jurídica diversa ou por se tratar de questão controversa e objecto de debate doutrinal e jurisprudencial), justificar a razão pela qual optou por determinado enquadramento jurídico em detrimento de outro.
Daí que o tribunal não se deva limitar a indicar as normas jurídicas que sustentam a decisão que vai tomar a final, devendo igualmente interpretá-las, ou seja, explicitar não só o conteúdo que já resulta directamente da norma, como aquele que poderá retirar-se indirectamente da mesma ou os diversos entendimentos que a norma é susceptível de comportar.».
A possibilidade do juiz indeferir liminarmente a petição inicial por considerar manifestamente improcedentes os pedidos resulta do disposto na al. d) do nº 1 do artº 394º do CPC, não sendo condição para o efeito que se mencione o preceito legal, desde que a decisão legal se enquadre na mesma.
Após a interposição do Recurso veio o Mmº Juiz do tribunal “a quo” rectificar a redacção do dispositivo da decisão indicando a norma jurídica que autoriza o indeferimento liminar por manifesta improcedência da pretensão dos Autores, melhor fundamentando a sua decisão.
Da decisão sob recurso sempre constaram os fundamentos de direito que justificam, a manifesta improcedência da pretensão dos Autores, pelo que, sempre esteve satisfeito este requisito não enfermando o despacho recorrido da invocada nulidade, seja por falta de fundamentação seja por se ter entendido estar justificado o indeferimento liminar da p.i. nos termos da alínea d) do nº 1 do artº 394º do CPC.
Pelo que, é manifesta a improcedência dos dois primeiros fundamentos do recurso.
Mais invocam os Recorrentes a desconformidade da decisão sob recurso com o direito, sustentando que as partes comuns do edifício afectas ao uso de um dos condóminos, por serem individualizáveis podem ser objecto de prescrição aquisitiva (fundamentos III a V do recurso).
Analisemos.
Pretendem os Autores que seja reconhecida a sua aquisição de um parque de estacionamento por usucapião.
Contudo da análise do requerimento para registo da propriedade horizontal a fls. 73 a 140, resulta que o prédio em causa é composto por «rés-do-chão e primeiro andar, tendo no rés-do-chão 57 lojas e no primeiro andar sete lojas, por segundo, terceiro e quarto andares exclusivamente destinados a parques de estacionamento (…) e por trinta andares superiores exclusivamente afectos à habitação».
A fls. 138 do indicado requerimento podemos ler «os parques de estacionamento das viaturas são afectos às várias fracções e têm entrada (…)».
Da memória descritiva de fls. 141 a 170 (mais concretamente fls. 146) consta que o parque de estacionamento nº 271 fica afecto à fracção “BJo”, leia-se “BJr/c”.
Assim sendo dúvidas não há que o parque de estacionamento que os Autores pretendem usucapir é uma parte comum do edifício afecta ao uso de uma das fracções.
Nos termos do nº 1 do artº 1315º do C.Civ. “podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do condomínio ou para a via pública”.
De acordo com o nº 1 do artº 1317º do C.Civ. a propriedade horizontal pode ser constituída por usucapião, mas a questão que se suscita nos autos em apreço, como bem se refere na sentença sob recurso, não é a constituição da propriedade horizontal por usucapião mas a aquisição de partes comuns de prédio constituído em propriedade horizontal, por usucapião.
Não sendo fácil a definição da natureza jurídica da propriedade horizontal, esta tem vindo a ser vista como uma forma especial de propriedade ao permitir propriedades separadas de um prédio que é o todo3. A propriedade horizontal mais não é do que uma forma complexa de ser titular do direito de propriedade ou outros direitos reais de partes (as fracções autónomas) de um todo (o prédio).
O instituto da usucapião está construído para a aquisição de direitos reais – artº 1212º e segts. do C.Civ. -, sem prejuízo das excepções consagradas no artº 1218º do C.Civ..
Ora, segundo o artº 1315º, em caso de propriedade horizontal apenas as fracções autónomas podem ser objecto de direitos reais.
Tal como tem vindo a ser referido pela Jurisprudência a admitir-se a usucapião de partes comuns do prédio, tal viria impor uma alteração do título constitutivo da propriedade horizontal o que só pode acontecer nos termos do artº 1321º do C.Civ..
Destarte, tem vindo a ser entendimento deste Tribunal que «os parques de estacionamento, sendo partes comuns do prédio, natureza esta estabelecida no respectivo registo do título constitutivo doa propriedade horizontal, não são passiveis de apropriação individual, designadamente por meio da aquisição prescritiva, se e enquanto se mantiver inalterada essa natureza» - cf. Acórdãos deste Tribunal de 19.01.2017 procº 780/2016 e de 07.06.2018 procº 446/2017 -.
Pelo que, improcede a invocada anulabilidade da decisão recorrida por ter indeferido liminarmente a petição inicial, uma vez que, face aos fundamentos invocados, era manifesta a improcedência da acção.
Assim sendo, aderindo integralmente aos fundamentos da decisão sob recurso, bem andou o Mmº Juiz do Tribunal “a quo” ao indeferir a pretensão dos Autores por ser evidente que não podia proceder nos termos da alínea d) do nº 1 do artº 394º do CPC.
IV. DECISÃO
Termos em que, pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso mantendo a decisão recorrida.
Custas a cargo dos recorrentes.
Registe e Notifique.
RAEM, 18 de Junho de 2020.
_________________________
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
_________________________
Lai Kin Hong
_________________________
Fong Man Chong
1 No mesmo sentido, foi decidido pelo Venerando TSI nos procs n° 1047/2017, n° 780/2016, onde sumariamente veio dizer que “os parques de estacionamento, sendo partes comuns do prédio, natureza esta estabelecida na respectivo registo do título constitutivo da propriedade horizontal, não são passíveis de apropriação individual, designadamente por meio da aquisição prescritiva, se e enquanto se mantiver inalterada esta natureza”. (vide Proc n° 780/2016, proc 1047/2017 do TSI, CV1-13-0037-CAO).
2 rectificação conforme despacho de fls. 356
3 Veja-se Oliveira Ascensão na Ob. Citada a pág. 406 e seguintes.
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
923/2019 CÍVEL 26