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Processo n.º 849/2018 Data do acórdão: 2020-6-11 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O

Há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 849/2018
(Autos de recurso penal)
Recorrente (assistente): B (B)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 270 a 276v do Processo Comum Colectivo n.° CR2-17-0493-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, a 1.a arguida C (C), o 2.o arguido D (D) foram absolvidos da acusada prática, em co-autoria material, na forma consumada, de um crime de abuso de confiança em valor consideravelmente elevado, p. e p. sobretudo pelo art.o 199.o, n.o 4, alínea b), do Código Penal (CP), e absolvidos também do pedido de indemnização cível deduzido pelo ofendido constituído assistente B (B) contra os dois arguidos.
Inconformado, veio recorrer o assistente para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), imputando, na sua motivação apresentada a fls. 303 a 318 dos presentes autos correspondentes, àquele acórdão o vício de erro notório na apreciação da prova aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP) e a violação do disposto no art.o 114.o do CPP, a fim de rogar a condenação dos dois arguidos nos termos por que vinham acusados (com necessária procedência do pedido cível de indemnização), ou o reenvio do processo para novo julgamento.
Ao recurso respondeu o Ministério Público a fls. 321 a 322v dos presentes autos, pugnando pela manutenção da decisão absolutória penal recorrida.
Subido o recurso, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 336 a 337 dos autos, opinando também pela manutenção da decisão absolutória penal em causa.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. Os dois arguidos ofereceram o merecimento dos autos, na contestação una deles apresentada com citação do art.o 297.o, n.o 1, do CPP (cfr. a contestação escrita de fl. 225 dos autos).
2. O acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 270 a 276v, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
3. De acordo com a factualidade descrita como provada nesse acórdão:
– em determinado dia dos meados de 2014, a cidadã do Interior da China C (1.a arguida) e o cidadão do Interior da China D (2.o arguido) foram para Macau em conjunto, para se dedicarem à actividade de bate-fichas (cfr. o facto provado 1);
– em determinado dia dos meados de Dezembro de 2014, o ofendido B, no Interior da China, através da apresentação pelo amigo F (F), tomou conhecimento dos dois arguidos como praticantes, em Macau, da actividade de bate-fichas (cfr. o facto provado 2);
– em 18 de Dezembro de 2014, o ofendido entrou em Macau, por via do posto fronteiriço da Porta do Cerco, e ficou alojado no Hotel XXX, por arranjos dos dois arguidos (cfr. o facto provado 3);
– em 19 de Dezembro de 2014, cerca das doze horas do meio-dia, o ofendido chegou ao “G VIP Club” de um hotel casino para se preparar a jogar, momento em que os dois arguidos lhe disseram que se o ofendido fosse depositar o seu dinheiro em determinada conta indicada, e depois fazer apostas de jogo com fichas de jogo a serem levantadas dessa conta, então, como condição desse depósito, o ofendido, por cada milhão de dólares de Hong Kong a perder nos jogos, poderia reaver cinquenta mil dólares de Hong Kong (cfr. o facto provado 4);
– o ofendido concordou e foi levantar a quantia de três milhões e quatrocentos mil dólares de Hong Kong na tesouraria daquele Clube VIP, e depois foi depositar essa quantia em conta indicada (cfr. o facto provado 5);
– o 2.o arguido acabou por levantar dois milhões e novecentos mil dólares de Hong Kong em fichas de jogo para o ofendido jogar (cfr. o facto provado 6);
– até 20 de Dezembro de 2014, cerca das cinco horas da tarde, o ofendido perdeu todo esse montante; o ofendido pretendeu levantar as remanescentes fichas de jogo no valor de meio milhão de dólares de Hong Kong para jogar, o que foi recusado pelo 2.o arguido (cfr. o facto provado 7);
– em 24 de Dezembro de 2014, cerca das nove horas e cinquenta e quatro minutos da manhã, os dois arguidos saíram de Macau em conjunto para voltarem ao Interior da China (cfr. o facto provado 8);
– em 10 de Fevereiro de 2015, o ofendido fez participação criminal ao Ministério Público (cfr. o facto provado 9);
– os dois arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente (cfr. o facto provado 10).
4. O Tribunal recorrido julgou por não provado o seguinte:
– (quanto à parte penal:) os dois arguidos decidiram em conjunto em fazer seus os valores, em quantia consideravelmente elevada, entregues pelo ofendido; os dois arguidos sabiam que a conduta deles era proibida e punível por lei de Macau; e os outros factos alegados na acusação pública e na acusação do assistente que fossem incompatíveis com os factos provados;
– (quanto à parte civil:) o ofendido depositou dinheiro na conta bancária da 1.a arguida; e os outros factos alegados no pedido cível que fossem incompatíveis com os factos provados.
5. Na fundamentação probatória da decisão absolutória recorrida, o Tribunal recorrido chegou a afirmar (no penúltimo parágrafo da página 11 do texto do aresto recorrido, a fl. 275 dos autos) que: a explicação dada pelo 2.o arguido (segundo a qual existia dívida por parte do ofendido em relação à 1.a arguida, razão por que a 1.a arguida ordenou ao próprio 2.o arguido que não deixasse o ofendido a levantar valores pecuniários) não ofendia manifestamente as regras da experiência, não estando, pois, excluída a hipótese de se tratar de mero conflito de dinheiro de natureza civil, daí que para o tribunal havia dúvida sobre a apropriação, pelos dois arguidos, dos valores pecuniários do ofendido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Na sua motivação do recurso, o assistente fez sindicância do resultado do julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal recorrido, através da imputação a este do vício de erro notório na apreciação da prova e da violação do princípio da livre apreciação da prova vertido no art.o 114.o do CPP.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, o argumento de existência de dúvida sobre a apropriação, pelos dois arguidos, dos valores pecuniários do ofendido, tecido pelo Tribunal recorrido no penúltimo parágrafo da página 11 do texto do seu acórdão absolutório, ofende patentemente as regras da experiência da vida humana na normalidade de situações, porquanto qualquer homem médio colocado perante a matéria de facto já dada por provada em primeira instância não iria acreditar na versão fáctica do 2.o arguido sobre a circunstância de o ofendido já ter devido dinheiro à 1.a arguida.
É que o ofendido só conheceu a 1.a arguida em meados de Dezembro de 2014, e os factos de depósito de dinheiro ocorreram em 19 de Dezembro de 2014, pelo que, à falta de outros elementos de prova concretos a secondar a tese fáctica do 2.o arguido, não seria crível que dentro desse curtíssimo período de tempo de conhecimento, pela primeira vez, da 1.a arguida pelo ofendido, este já tivesse devido meio milhão de dólares de Hong Kong à 1.a arguida.
Assim sendo, por constatação efectiva do vício de erro notório na apreciação da prova, é de reenviar, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 3, do CPP, todo o objecto do processo para novo julgamento por outro tribunal colectivo, sem mais indagação por prejudicada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso, reenviando todo o objecto do processo para novo julgamento por tribunal colectivo.
Sem custas pelo presente recurso.
Fixam em mil patacas os honorários totais de um mesmo Ex.mo Defensor Oficioso dos dois arguidos recorridos.
Macau, 11 de Junho de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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