Processo n.º 113/2019 Data do acórdão: 2020-7-16 (Autos em recurso penal)
Assunto:
– erro notório na apreciação da prova
S U M Á R I O
Há erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 113/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrentes:
– Demandante civil A
– Advogado Dr. B
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 3522 a 3553v do Processo Comum Colectivo n.º CR5-15-0009-PCC do 5.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), que lhe julgou não procedente (por entendido não provado mormente que o cheque n.o 0XXX20, no valor de HKD2.882.620,00, tenha sido emitido para pagar esse montante por causa de uma conta aberta junto do casino dos autos) o pedido cível de indemnização por si aí enxertado, veio o demandante A recorrer para este Tribunal de Segunda Instância, para rogar que o seu pedido cível passasse a ser julgado como procedente, alegando, para o efeito, e materialmente, na sua motivação apresentada a fls. 3571 a 3614 dos presentes autos correspondentes, que essa decisão recorrida padeceu dos vícios de erro no julgamento dos factos e de contradição insanável da fundamentação, sobretudo a respeito da entendida, pelo Tribunal recorrido, não verificação do dolo por parte da arguida na emissão do cheque sem provisão em causa, e que discordou ele do entendimento desse Tribunal segundo o qual como não estava apurada qual a motivação para a emissão do cheque em questão, não se poderia condenar a arguida no respectivo crime de emissão de cheque sem provisão.
Ao recurso, respondeu a também demandada C, a fls. 3627 a 3634 dos presentes autos, pugnando pela manutenção do julgado, para além de suscitar, a montante, a falta de legitimidade do recorrente demandante para impugnar a decisão do Tribunal sentenciador em matéria penal.
Por despacho proferido a fl. 3679 pela M.ma Juíza titular do processo em primeira instância, foi decidido em não admitir o recurso daquele recorrente na parte concernente à matéria penal do acórdão recorrido, por carecer ele da legitimidade para o efeito.
Entrementes, recorreu também para este TSI o Advogado Sr. Dr. B, do despacho proferido pela mesma M.ma Juíza a fl. 3621 a 3621v, que lhe condenou como litigante de má fé, nos aí citados termos do art.o 385.o, n.o 2, alínea b), do Código de Processo Civil (CPC), com fundamento em que ele tinha ocultado o facto, em si relevante para a decisão da causa, de ele ter já feito instaurar acção executiva em nome da pessoa chamada D, que figurou no cheque n.o H0XXX82, invocado no pedido cível enxertado pelo demandante E nos presentes autos penais.
Na sua motivação apresentada a fls. 3636 a 3640 dos autos, o Advogado recorrente começou por assacar a esse despacho recorrido a violação do princípio do contraditório (pois o Tribunal só mandou a apresentação da justificação do facto de duplicação da pretensão cível com base numa mesma causa de pedir, e não do alegado facto de ter ele ocultado factos relevantes para a decisão da causa), e depois questionou o mérito da condenação dele como litigante de má fá, sobretudo porque dadas as circunstâncias do caso, quer E quer D precisavam de instaurar acções civis separadamente, aquele através de processo declarativo de condenação, e esta por meio de acção executiva.
Subidos os autos, a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista dada a fl. 3705, opinou pela sua ilegitimidade para emitir parecer nos autos, por se tratar de matéria recursória circunscrita ao assunto civil.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. Na petição cível de indemnização então apresentada pelo demandante A a fls. 3072 a 3078 dos presentes autos penais, este reclamou, materialmente, o pagamento da quantia de HKD2.882.620,00 e respectivos juros, alegando, nomeadamente nos art.os 2, 3, 4, 8, 9 e 10 a 13 da mesma peça, que a arguida demandada F lhe emitiu, em nome do Hotel G, um cheque com o n.o 0XXX20, no valor de HKD2.882.620,00, para pagar o valor total das comissões de troca de fichas de jogo em HKD2.638.000,00 e correspondentes juros de mora a que ele tinha direito, numa conta de comissões de troca de fichas de jogo por ele aberta no casino dentro desse hotel.
2. O acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 3522 a 3553v, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
3. Nesse acórdão, a arguida F foi inclusivamente absolvida da imputada conduta penal de emissão do cheque sem provisão contra o ofendido A.
4. Nesse mesmo acórdão, foi julgado não procedente o pedido cível de indemnização então enxertado por esse ofendido, por se entender judicialmente que, por falta de prova suficiente, não ficou mormente provado que o cheque referido nesse pedido tenha sido emitido para pagar o montante pecuniário e respectivos juros de mora reclamados por esse demandante, por causa de uma conta por ele aberta junto do casino dos autos (cfr. o teor das considerações tecidas pelo Tribunal recorrido sobretudo no terceiro parágrafo da página 55 e no penúltimo parágrafo da página 60, ambas do texto do acórdão recorrido, a fls. 3549 e 3551v, respectivamente, para sustentar a decisão de improcedência desse pedido cível).
5. No mesmo acórdão, foi também julgado não procedente o pedido cível de indemnização então enxertado pelo ofendido E, cujo mandatário judicial era o Advogado Sr. Dr. B.
6. Na petição cível de indemnização desse ofendido E, minutada por esse mesmo Advogado e apresentada em Abril de 2015 a fls. 2393 a 2394v dos autos, foi alegado, no art.o 9.o da mesma peça, que tal como o referido nos art.os 20 a 23 da acusação pública, o cheque em causa foi emitido pela arguida para pagar a quantia de HKD17.199.209,00 que o casino dos autos devia a esse demandante.
7. Conforme a versão fáctica descrita nos art.os 23.o e 24.o da mesma acusação pública, esse cheque teve por número H0XXX82, e foi finalmente passado não em favor de E, mas sim de uma pessoa amiga dele, chamada D, por na altura aquele se encontrar ausente de Macau e por isso não conseguir ir buscar o cheque.
8. Em todo o teor da petição cível de E, não chegou a ser referido que esse cheque n.o H0XXX82 já serviu de título para a instauração, pela dita pessoa chamada D, de uma acção executiva.
9. Na sessão da audiência de julgamento realizada em 21 de Setembro de 2018 no âmbito do presente processo penal em primeira instância (cfr. o teor da respectiva acta, lavrada a fls. 3443 a 3444 dos autos), a M.ma Juíza Presidente do Tribunal Colectivo ditou despacho no sentido de determinar, para efeitos de depois decidir da verificação da situação de litigância de má fé do art.o 385.o do CPC, que o Advogado Sr. Dr. B viesse a apresentar, no prazo de dez dias, justificação sobre o facto de ele ter apresentado, com base numa mesma causa de pedir, pretensão cível em nome da pessoa exequente D na Acção Executiva n.o CV3-12-0108-CEO e também no presente processo penal em nome do demandante E.
10. De acordo com a certidão junta a fls. 3452 e seguintes dos presentes autos penais, o mesmo Advogado fez instaurar, em Dezembro de 2012, no TJB, em nome da exequente D, uma acção executiva para pagamento de quantia certa, para executar a quantia constante no cheque n.o H0XXX82, no valor de HKD17.199.209,00 (cfr. o teor do requerimento inicial a que aludem as fls. 3453 a 3454 dos presentes autos).
11. Na exposição apresentada a fls. 3504 a 3506 dos autos, o mesmo Advogado defendeu, no seu essencial, que apesar de o cheque em causa ser um título executivo, o demandante E não podia intentar acção executiva com base nesse cheque, por o cheque ter sido emitido não para ele mas sim para D, a qual precisou, assim, de instaurar a acção executiva com base no mesmo cheque, e, entretanto, para prevenir a eventual possibilidade de improcedência da acção executiva, ele, como advogado do ofendido E, precisou de apresentar pedido cível nos presentes autos penais para defender o direito de crédito desse ofendido.
12. Subsequentemente, a M.ma Juíza titular do processo em primeira instância, por despacho proferido a fl. 3621 a 3621v, acabou por condenar o mesmo Advogado como litigante de má fé, nos aí citados termos do art.o 385.o, n.o 2, alínea b), do CPC, com fundamento em que ele tinha ocultado o facto, em si relevante para a decisão da causa, de ele ter já feito instaurar acção executiva em nome da pessoa chamada D que figurou no cheque n.o H0XXX82, cheque esse invocado no pedido cível enxertado pelo demandante E nos presentes autos penais.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, apreciando.
Do recurso do demandante A:
Sendo meramente demandante civil, não pode este recorrer da decisão absolutória penal da arguida da então acusada, pelo Ministério Público, conduta de emissão de cheque sem provisão contra ele, pelo que este TSI não pode conhecer do recurso dele no atinente, por exemplo, à sindicância do juízo de valor do Tribunal recorrido segundo o qual não se deu por verificado, por falta de prova suficiente, o dolo da arguida na prática dessa acusada conduta penal.
No fundo, o que esse recorrente pretendeu atacar ao Tribunal recorrido é o resultado do julgamento de factos, imputando ao mesmo os vícios de erro no julgamento dos factos e de contradição insanável da fundamentação, para rogar a procedência, a final, do seu pedido cível de indemnização enxertado nos autos.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida que julgou não procedente o pedido cível do demandante A ora recorrente, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto.
O resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido não é desrazóavel, sendo, pois, de subscrever o entendimento desse Tribunal segundo o qual não ficou provado que o cheque referido no pedido cível desse demandante tenha sido emitido para pagar o montante pecuniário e respectivos juros de mora reclamados por ele, por causa de uma conta sua aberta junto do casino dos autos. E como nem se patenteia qualquer contradição irredutível da fundamentação fáctica do mesmo acórdão recorrido na parte respeitante ao pedido cível desse demandante, improcedem assim, sem mais, os suscitados vícios de erro de julgamento de factos e de contradição insanável da fundamentação.
Em suma, é de louvar, nos termos permitidos pelo art.o 631.o, n.o 5, do CPC, a decisão civil ora recorrida por esse demandante, sem mais indagação por ociosa ou prejudicada.
Resta ver o recurso do Advogado Sr. Dr. B:
O art.o 385.o, n.o 2, do CPC, prevê, nas suas quatro alíneas, diversas situações, distintas entre si, de litigância de má fé.
E por causa da disposição do art.o 388.o do CPC, uma vez condenado pessoalmente como litigante de má fá, o mandatário da parte é susceptível de sanções respectivas pelo organismo representativo dos advogados.
Tendo a condenação em sede da litigância de má fé natureza sancionatória, há que cumprir o contraditório primeiro, para se poder decidir da condenação ou não.
Na motivação do recurso em causa, foi suscitada, antes do mais, a violação do princípio do contraditório.
No caso dos autos, a M.ma Juíza Presidente do Tribunal Colectivo julgador da causa em primeira instância determinou àquele Advogado ora recorrente a apresentação da justificação sobre o facto de ele ter apresentado, com base numa mesma causa de pedir, pretensão cível em nome da pessoa exequente D na Acção Executiva n.o CV3-12-0108-CEO e também no presente processo penal em nome do demandante E. Na sequência disso, o mesmo Advogado apresentou a sua justificação sobre esse facto.
Entretanto, por despacho judicial proferido a fl. 3621 a 3621v dos autos, acabou o mesmo Advogado por ser condenado como litigante de má fé, nos aí citados termos do art.o 385.o, n.o 2, alínea b), do CPC, com fundamento em que ele tinha ocultado o facto, em si relevante para a decisão da causa, de ter já feito instaurar acção executiva em nome daquela pessoa D que figurou no cheque n.o H0XXX82.
Observa-se assim que o facto (de ocultação da já instauração da acção executiva com uma mesma causa de pedir) pelo qual foi condenado o mesmo Advogado como litigante de má fé é diverso do facto (de instauração de duas causas cíveis com uma mesma causa de pedir) a respeito do qual ele foi previamente ouvido. Aquele facto de ocultação de facto relevante para a decisão da causa é enquadrável na situação prevista na alínea b) do n.o 2 do art.o 385.o do CPC, enquanto o facto de instauração de duas causas cíveis com uma mesma causa de pedir já não é subsumível nesta alínea b). Portanto, é de concluir que o mesmo Advogado acabou por ser condenado como litigante de má fé, por facto não imputado anteriormente acerca do qual também não foi ele ouvido para efeitos de apresentação da defesa, o que gera a nulidade da própria decisão condenatória ora recorrida por ele, nos termos analogicamente aplicados do art.o 360.o, n.o 1, alínea b), do Código de Processo Penal, cabendo ao mesmo Tribunal recorrido decidir novamente se há litigância de má fé, após feita a necessária audição do mesmo Advogado acerca do imputado facto de ocultação de facto relevante para a decisão da causa.
Procede, assim, a questão principal colocada no recurso sub judice, embora com fundamentos algo diversos dos invocados concretamente na motivação do recurso.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o recurso do demandante civil A, e provido o recurso do Advogado Sr. Dr. B, declarando, por conseguinte, nulo o recorrido despacho judicial de condenação de litigância de má fé, cabendo ao mesmo Tribunal recorrido decidir novamente da questão de litigância de má fé, após feita a necessária audição desse Advogado nos termos acima referidos.
Custas do recurso do demandante A totalmente a cargo deste. E sem custas no recurso do dito despacho judicial.
Macau, 16 de Julho de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
Processo n.º 113/2019 Pág. 15/15