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Processo n.º 323/2020 Data do acórdão: 2020-7-16 (Autos em recurso penal)
Assunto:
– erro notório na apreciação da prova
S U M Á R I O
Há erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 323/2020
(Autos de recurso penal)
  Recorrente (1.a arguida): A






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão proferido a fls. 811 a 824 do Processo Comum Colectivo n.º CR4-18-0457-PCC do 4.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), que a condenou como co-autora material (conjuntamente com o co-arguido B) de um crime consumado de falsificação de documento, p. e p. pelo art.o 18.o, n.o 2, da Lei n.o 6/2004, por meio previsto no art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal (CP), na pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na execução por dois anos, sob condição de prestação, dentro de três meses, de vinte mil patacas de contribuição a favor da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), veio a 1.a arguida A recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para rogar a sua absolvição penal, alegando, para o efeito, no essencial, na sua motivação apresentada a fls. 840 a 845 dos presentes autos correspondentes que: essa decisão condenatória penal violou o disposto no art.o 18.o, n.o 2, da Lei n.o 6/2004 e no art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do CP, porquanto não ficando provado que, no divórcio dela com o 2.o arguido, ela tinha tido falsa vontade de se divorciar com este, e não apontando a matéria de facto provada que ela, no casamento que tinha contraído depois com o 4.o arguido, tinha prestado falsa vontade na celebração deste casamento, o Tribunal sentenciador não podia ter condenado ela como agente do acusado crime de falsificação de documento, precisamente por falta de comprovação de que ela tinha feito constar no assento de casamento com o 4.o arguido a falsa vontade de celebração do casamento, com a achega de que a matéria de facto provada nem mencionou o modo como ela e o 4.o arguido tinham chegado ao acordo de praticar o casamento falso, nem sobre a remuneração ou não, ou condições, disso, sendo de salientar que nem se poderia basear em factos ocorridos supervenientemente para a partir dos mesmos se fazer conjecturar a existência da prestação de falsa vontade na celebração do casamento dela com o 4.o arguido.
Ao recurso, respondeu o Digno Procurador-Adjunto a fls. 849 a 857v dos presentes autos, no sentido de provimento do recurso, com absolvição da recorrente, ou de, pelo menos, reenvio do processo para novo julgamento com fundamento na contradição insanável da fundamentação na decisão recorrida.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer, em sede de vista, a fls. 867 a 868 dos autos, pugnando pelo reenvio do processo para novo julgamento, por verificação da contradição insanável da fundamentação na decisão recorrida.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 811 a 824 dos autos, cujo teor (incluindo a sua fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. Segundo a factualidade aí descrita como provada:
– (cfr. o facto provado 5:) em 9 de Janeiro de 2006, a 1.a arguida A divorciou-se com o 2.o arguido;
– (cfr. o facto provado 7:) em 3 de Agosto de 2006, o 4.o arguido B e a 1.a arguida registaram o casamento em Zhuhai;
– (cfr. o facto provado 8:) em 15 de Julho de 2010, a arguida, a título de junção familiar com o marido B, obteve com sucesso o Bilhete de Identidade de Residente de Macau n.o 15XXXX0(9) (fls. 259 e 314 dos autos);
– (cfr. a primeira parte do facto provado 10:) após a obtenção com sucesso do Bilhete de Identidade de Residente de Macau, a 1.a arguida nunca habitou ou viveu com o 4.o arguido, nem em Zhuhai nem em Macau;
– (cfr. o facto provado 16:) no período compreendido de 2006 a 2016, só houve uma vez em que o 4.o arguido e a 1.a arguida tiveram movimentação fronteiriça em conjunto, por um mesmo posto fronteiriço (cfr. fl. 349 dos autos);
– (cfr. o sentido e alcance do facto provado 17:) a 1.a arguida e o 4.o arguido agiram por acordo conjunto, em conjugação de esforços e por divisão de tarefa, e de modo livre, voluntário e consciente; para a própria 1.a arguida obter o estatuto de residente legal em Macau, a 1.a arguida, após divorciada com o 2.o arguido, voltou a celebrar casamento com o 4.o arguido como residente de Macau, e depois apresentou o pedido de junção familiar, e obteve com sucesso o estatuto de residente de Macau.
Por outro lado, em sintonia com o conteúdo do formulário (de teor certificado a fl. 314 a 314v dos autos) de pedido de emissão, pela 1.a vez, de Bilhete de Identidade de Residente da RAEM a que alude no facto provado 8, formulário esse com a assinatura da própria pessoa requerente (ora 1.a arguida) e a declaração dela no sentido de que “as informações no presente requerimento são verdadeiras e tenho conhecimento de que declarações falsas podem ser punidas penalmente”, esta tinha, à data do requerimento (15 de Julho de 2010), por cônjuge B.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, apreciando.
A 1.a arguida ora recorrente assacou à decisão condenatória penal recorrida a violação sobretudo da norma do art.o 18.o, n.o 2, da Lei n.o 6/2004.
E da leitura da sua motivação do recurso, vê-se que ela não deixou de se insurgir materialmente contra a justeza do resultado do julgamento da matéria de facto no atinente à condenação dela e do 4.o arguido no crime de falsificação de documento previsto e punível na referida norma.
Pois bem, sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto.
Portanto, é de julgar o recurso com base na matéria de facto já dada por assente no acórdão recorrido.
O art.o 18.o, com a epígrafe de “falsificação de documentos”, desta Lei tem a seguinte redacção:
1. Quem, com a intenção de frustrar os efeitos da presente lei, por qualquer dos meios previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 244.º do Código Penal, falsificar bilhete de identidade ou outro documento autêntico que sirva para certificar a identidade, passaporte ou outros documentos de viagem e respectivos vistos, bem como qualquer dos documentos legalmente exigidos para a entrada e permanência ou os que certificam a autorização de residência na RAEM, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
2. A mesma pena é aplicada à falsificação, pelos meios referidos no número anterior, de documento autêntico, autenticado ou particular, bem como às falsas declarações sobre elementos de identificação do agente ou de terceiro, com intenção de obter qualquer dos documentos legalmente exigidos para a entrada, permanência ou autorização de residência na RAEM.
3. Quem usar ou possuir qualquer dos documentos falsos referidos nos números anteriores, é punido com pena de prisão até 3 anos.
A arguida recorrente focou a sua tese jurídica da sua devida absolvição penal, na circunstância de não ter constado da matéria de facto provada em primeira instância a menção de que a certidão do registo de casamento dela com o 4.o arguido em Zhuhai era falsificada.
Entretanto, a falta de declaração judicial expressa, no acórdão recorrido, sobre a falsidade dessa certidão do registo de casamento não obsta à consumação da conduta, praticada por ela em co-autoria material com o 4.o arguido B, de falsificação desse documento:
É que a matéria de facto dada por provada no acórdão recorrido (e descrita nos factos provados 16, 8 e 10, sendo de notar que a situação referida no facto provado 16 abrange o período de tempo do ano de 2006, ano em que ela e o 4.o arguido registaram o casamento em Zhuhai) representa a prova concreta de não serem ela e esse arguido verdadeiro casal entre si. Com efeito: é incrível, como ditam as regras da experiência da vida humana, que um verdadeiro casal, ao longo de dez anos de tempo desde a celebração do casamento, só tenha tido uma única vez de movimentação fronteiriça em conjunto, por um lado, e, por outro, se a obtenção, pela arguida recorrente, pela primeira vez, do seu Bilhete de Identidade de Residente de Macau foi a título de junção familiar, em Macau, com o seu (alegado) verdadeiro marido B, é incompreensível, para todo o homem médio, que após a obtenção desse Bilhete de Identidade, ela nunca habitou ou viveu, em Macau, com este indivíduo (portador do Bilhete de Identidade de Residente de Macau). É mesmo que julgar logicamente, a nível de factos, à luz do art.o 342.o do Código Civil, que a real intenção de ambos no tratamento do casamento entre si em Zhuhai não foi para ambos serem verdadeiro casal com vida em comum, mas sim para a arguida recorrente poder pedir a emissão do Bilhete de Identidade de Residente de Macau a seu favor, com base na alegada junção familiar conjugal em Macau.
A análise das coisas acima feita suporta que o facto provado 17 não é matéria factual meramente conclusiva, e que todos os factos provados descritos no aresto recorrido na parte respeitante à incriminação da arguida recorrente e do 4.o arguido não se apresentam irredutivelmente contraditórios entre si.
Daí que a matéria de facto provada em primeira instância sustenta cabalmente a prática, pela recorrente, em co-autoria material com o 4.o arguido, de um crime de falsificação de documento nos termos legais já acusados pelo Ministério Público e finalmente condenados no acórdão recorrido (sendo de notar que sem a participação do 4.o arguido através da divisão de tarefas e conjugação de esforços com a arguida recorrente, nunca poderia ter ocorrido a falsificação intelectual da certidão do registo de casamento em causa, pelo que esse arguido foi indubitavelmente o co-autor da arguida recorrente, independentemente da mais indagação por ociosa ou prejudicada).
E a conclusão acima tirada mantém-se válida mesmo que o Tribunal recorrido tenha julgado não provado, por insuficiência da prova, o carácter falso do divórcio da arguida recorrente com o 2.o arguido. Isto porque basta a falsidade intelectual do documento de casamento dela com o 4.o arguido, com intenção de obtenção, para ela, do Bilhete de Identidade de Residente de Macau como documento que lhe habilitasse a residência legal em Macau, para garantir a legalidade da condenação dela como co-autora, com o 4.o arguido, do crime por que ambos vinham condenados igualmente em primeira instância.
Improcede o recurso, sem mais abordagem por desnecessária ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o recurso da 1.a arguida A.
Custas do recurso pela recorrente, com oito UC de taxa de justiça.
Comunique o presente acórdão (com cópia também do acórdão recorrido) à Direcção dos Serviços de Identificação de Macau, para os efeitos tidos por convenientes.
Macau, 16 de Julho de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



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