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Processo n.º 373/2019 Data do acórdão: 2020-7-16 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
Há erro notório na apreciação da prova aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 373/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrente (1.a arguida): A





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão proferido a fls. 262 a 269v do Processo Comum Colectivo n.º CR2-18-0419-PCC do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base que a condenou como autora material, na forma consumada, de dois crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art.o 18.o, n.o 2, da Lei n.o 6/2004, na pena de dois anos e nove meses de prisão por cada, e, em cúmulo jurídico dessas duas penas, finalmente na pena única de três anos e seis meses de prisão, veio a 1.a arguida recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), imputando, na sua motivação apresentada a fls. 288 a 299 dos presentes autos correspondentes, a essa decisão condenatória os vícios de contradição insanável da fundamentação e de erro notório na apreciação da prova, referidos nas alíneas b) e c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), para pedir a invalidação da decisão condenatória em causa, sem deixando de pretender, subsidiariamente, a aplicação da figura de crime continuado a seu favor nos termos dos art.os 29.o, n.o 2, e 73.o do Código Penal (CP), e, fosse como fosse, a redução da pena, com rogada punição dela em pena final de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na execução por quatro anos.
Ao recurso, respondeu o Ministério Público a fls. 303 a 306v dos presentes autos, no sentido de não provimento do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer a fls. 315 a 317 dos autos, pugnando também pela improcedência do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 262 a 269v, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. Nesse acórdão, foi dado provado inclusivamente que: o 3.o arguido, sob arranjos de um senhor de identidade desconhecida, teve encontro com a 1.a arguida; após negociações, a 1.a arguida e o 3.o arguido convencionaram no sentido de caber à 1.a arguida, mediante a sua qualidade na casa de cabeleireiro em causa, ajudar o 3.o arguido a pedir a Autoridades Competentes de Macau o Título de Identificação de Trabalhador Não-Residente; por isso, o 3.o arguido entregou à 1.a arguida os dados necessários ao tratamento desse documento de identificação, e entregou àquele senhor cinquenta mil dólares de Hong Kong (cfr. com mais detalhtes, o teor do facto provado 10, como tal descrito em chinês no quinto parágrafo da página 8 do texto desse acórdão, a fl. 265v).
3. Na fundamentação probatória do mesmo acórdão, o Tribunal recorrido escreveu (no terceiro parágrafo dessa fundamentação, e ora concretamente nas linhas 3 a 8 da página 11 desse texto decisório, a fl. 267), em chinês, e no seu essencial, que a pedido expresso pelo 3.o arguido a fl. 106 dos autos, foi lido na audiência de julgamento o teor das declarações que ele tinha chegado a prestar no Órgão de Polícia Criminal e no Ministério Público (para tanto, o teor das declarações do arguido de fl. 74 e seu verso, de fl. 102 e seu verso, e, conjugadamente, de fls. 69 a 70, se dá por aqui integralmente reproduzido); aí, o 3.o arguido admitiu a prática dos factos acusados, e disse que entregou à 1.a arguida cinquenta mil dólares de Hong Kong, para tratar do título de trabalhador não-residente, com o objectivo de o facilitar na entrada em Macau e na saída de Macau de modo livre, mas que nunca chegou a trabalhar na casa de cabeleireiro em causa.
4. Segundo o teor das declarações do 3.o arguido dado por integralmente reproduzido no acima referido terceiro parágrafo da fundamentação probatória do acórdão recorrido, o 3.o arguido disse que entregou cinquenta mil dólares de Hong Kong a um senhor de identidade desconhecida.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, apreciando.
A 1.a arguida ora recorrente começou por apontar à decisão condenatória penal da Primeira Instância o vício de contradição insanável da fundamentação, alegando que no teor das declarações do 3.o arguido lidas na audiência de julgamento, este disse que entregou o dinheiro de cinquenta mil dólares de Hong Kong a um senhor de identidade desconhecida, mas o Tribunal recorrido afirmou na fundamentação probatória do seu acórdão que o 3.o arguido entregou tal montante de dinheiro à própria arguida recorrente, enquanto já julgou por provado (como facto provado 10) que o 3.o arguido entregou a mesma soma de dinheiro à própria arguida, discrepância essa que integra o vício previsto na alínea b) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, invalidador da decisão condenatória ora recorrida.
Pois bem, à primeira vista, há contradição entre o teor do facto provado 10 e o terceiro parágrafo da fundamentação probatória do acórdão recorrido, na parte concretamente respeitante a quem o 3.o arguido entregou a dita soma de dinheiro.
Mas, essa contradição não é irredutível ou insanável, porque o Tribunal Colectivo recorrido deu já por integralmente reproduzido no mesmo terceiro parágrafo da fundamentação probatória do seu acórdão o teor das declarações do 3.o arguido lidas na audiência de julgamento. E como o facto provado 10 na parte concreta em causa condiz com o teor dessas declarações no atinente a quem foi feita a entrega, pelo 3.o arguido, do tal montante de dinheiro, a decisão condenatória ora sob impugnação pela 1.a arguida não pode ter padecido do vício de contradição insanável da fundamentação de que se fala na alínea b) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
E agora do vício de erro notório na apreciação da prova aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP:
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, visto o teor de todos os elementos de prova então carreados aos autos e já referidos na fundamentação probatória da decisão condenatória penal recorrida, não se vislumbra que o resultado de julgamento dos factos feito pelo Tribunal recorrido tenha violado de modo patente quaisquer normas sobre o valor legal das provas, ou quaisquer regras da experiência da vida humana, ou quaisquer leges artis, situando-se esse resultado do julgamento dos factos dentro do padrão da razoabilidade humana, pelo que a decisão condenatória penal ora impugnada não pode ter violado o princípio de in dubio pro reo.
Em face da factualidade já dada por assente pela Primeira Instância, é acertada a qualificação jurídico-penal dos factos provados decidida pelo Tribunal recorrido, no sentido de condenação da arguida recorrente nos dois crimes por que vinha acusada.
Observa-se que naufraga também a pretensão de aplicação da figura de crime continuado à conduta delitual penal da arguida recorrente. É que os dois crimes de falsificação de documento em causa foram cometidos pela recorrente ao abrigo e através de prévias negociações feitas por ela em concreto, e separadamente, com os 2.o e 3.o arguidos (cfr. os factos provados 4 e 10, respectivamente), pelo que não se patenteia, desde logo, qualquer situação exterior de que se fala no art.o 29.o, n.o 2, do CP, na perpetração, pela recorrente, do segundo crime de falsificação de documento.
E da sempre pretendida redução da pena: também não assiste razão à recorrente, porquanto vistas todas as circunstâncias fácticas já apuradas pela Primeira Instância com pertinência à medida da pena, é de louvar mesmo a decisão judicial já feita no acórdão recorrido no tangente à matéria da medida da pena, nos termos permitidos pelo art.o 631.o, n.o 5, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do CPP, sem mais indagação por desnecessária.
Do exposto, resulta necessariamente intacta a pena única de três anos e seis meses de prisão achada no acórdão recorrido para a recorrente, o que acarreta qualquer viabilidade da aplicação, a seu favor, do instituto de suspensão da execução da pena, dada a inverificação, para já, do pressuposto formal postulado na norma do n.o 1 do art.o 48.o do CP.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o recurso.
Custas do recurso pela arguida recorrente, com oito UC de taxa de justiça.
Comunique o presente acórdão (com cópia também do acórdão recorrido) ao Corpo de Polícia de Segurança Pública e à Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais, para os efeitos tidos por convenientes.
Macau, 16 de Julho de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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