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Processo n.º 629/2018 Data do acórdão: 2020-6-24 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– contrato de trabalho
– art.o 1079.o, n.o 1, do Código Civil
– trabalhador de Hong Kong
– crime de emprego
– art.o 16.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004
– co-autoria material na prática do crime
S U M Á R I O

1. Sendo condenada como co-autora material de um crime de emprego, essa co-autoria implicou que os factos de emprego ilegal do trabalhador em causa não tiveram que ser executados todos pela arguida.
2. No caso, o trabalhador dos autos, à data dos factos, já era empregado de uma companhia de artigos de ouros e jóias em Hong Kong, e sob acordo ajustado pela arguida com a patroa dessa companhia, deslocou-se a Macau para desempenhar as funções de venda na loja da arguida, sob arranjos desta.
3. Assim, ele foi efectivamente trabalhador ilegal em Macau, por ter sido encontrado a fazer tarefas de venda na loja da arguida, sob arranjos da arguida, ainda que não tenha ficado provado que a arguida lhe tenha fixado o horário de trabalho nem que lhe tenha pago vencimento. É que estes dois factos não provados não têm a pretendida virtude de afastar a incriminação da conduta da arguida em sede do tipo legal de emprego ilegal, previsto pelo art.o 16.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004, cuja letra evidencia que a própria norma incriminadora não exige que a remuneração do trabalho tenha que ser paga pessoalmente pela arguida. E os arranjos da arguida já significaram que ela não deixou de exercer também, sobre esse trabalhador, o poder de autoridade e direcção caracteristíco da relação de trabalho por conta de outrem (cfr. o conceito do contrato de trabalho definido no n.o 1 do art.o 1079.o do Código Civil).
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 629/2018
(Autos de recurso penal)
Recorrente (1.a arguida): B (B)





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com a sentença proferida a fls. 342 a 348v do Processo Comum Singular n.o CR4-17-0332-PCS do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base que a condenou, pela prática em co-autoria material, na forma consumada, de um crime de emprego, p. e p. pelo art.o 16.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004, na pena de cinco meses e quinze dias de prisão, suspensa na execução por dois anos, sob condição de prestação, dentro de um mês contado do trânsito em julgado da decisão, de sessenta mil patacas de contribuição pecuniária a favor da Região Administrativa Especial de Macau, veio a 1.a arguida desse processo recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando no seu essencial e rogando o seguinte, na sua motivação apresentada a fls. 368 a 370v dos presentes autos correspondentes:
– a matéria de facto dada por provada na sentença não pode servir para se dar por julgado que a própria recorrente tenha cometido o crime de emprego, ou seja, não dá para dar por comprovado que a conduta dela já tenha preenchido os elementos do tipo legal de emprego;
– no caso, o ponto chave está no estabelecimento ou não da relação de trabalho;
– não tendo a recorrente o poder de dirigir os trabalhos concretos do trabalhador dos autos, acatando este só os arranjos da sua entidade patronal em Hong Kong (a qual se pretendesse o regresso desse trabalhador a Hong Kong, ou não o deixasse ir a Macau, a recorrente não teria o poder de ordenar que ele ficasse em Macau), e não estando provado na sentença que a recorrente podia fixar o horário de trabalho dele e não estando provado também que ela pagava remuneração ao mesmo trabalhador, não se poderia condenar a recorrente pela prática do crime de emprego;
– de maneira que deveria ela ser absolvida, porquanto ela não foi a entidade patronal do dito trabalhador.
Ao recurso respondeu o Ministério Público a fls. 380 a 381v, no sentido de negação de provimento ao recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 393 a 394, pugnando pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Não sendo impugnada a matéria de facto já dada por provada em primeira instância (pois a recorrente se limitou a questionar a subsunção dos factos ao Direito feita pelo Tribunal sentenciador), é de tomá-la como factualidade fundamento da presente decisão de recurso.
Dessa factualidade provada (descrita mormente nas páginas 4 a 5 do texto decisório ora recorrido, a fls. 343v a 344 dos autos), sabe-se que:
– o trabalhador dos autos, sob arranjos da arguida ora recorrente, chegou a desempenhar, na loja dela, as funções de instrutor e de venda de jóias (cfr. os 4.o, 5.o e 6.o parágrafos da matéria de facto provada);
– em 11 de Agosto de 2015, cerca das 10:30 horas, dois agentes do Corpo de Polícia de Segurança Pública foram à dita loja para investigação, e presenciaram assim que o referido trabalhador estava, no balção de jóias, a propor a venda de respectivos artigos a clientes, com máquina calculadora na mão a reportar preços de venda a alguns clientes (cfr. o 8.o parágrafo da matéria de facto provada);
– a arguida sabia que os não residentes de Macau apenas podiam trabalhar em Macau se munidos de documentos de respectiva autorização para o efeito, e sabia que o referido trabalhador não era titular deste tipo de documentos, e apesar disso, ajustou acordo com a pessoa patrona da companhia de artigos de ouros e jóias referida na sentença, no sentido de indigitar o dito trabalhador de Hong Kong para vir para Macau para desempenhar, na loja da própria arguida, as funções de instrutor e de venda, tendo o mesmo trabalhador trabalhado nessa loja dela, sob arranjos dela, sabendo ela que a sua conduta, praticada de modo livre, voluntário e consciente, era violadora da lei e punível por lei (cfr. os últimos três parágrafos da factualidade provada).
Ao mesmo tempo, não ficou provado em primeira instância o seguinte (conforme a fundamentação fáctica da sentença tecida na página 6 do respectivo texto, a fl. 344v):
– a arguida fixou horário de trabalho do mesmo trabalhador;
– a arguida pagou vencimento ao mesmo trabalhador.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Há, pois, que aquilatar da rectidão, ou não, da subsunção dos factos ao Direito como tal feita pelo Tribunal recorrido na sentença recorrida.
Observa-se desde já que a arguida foi aí condenada como co-autora material de um crime de emprego, co-autoria essa que implicou que os factos de emprego ilegal do trabalhador em causa não tenham que ser executados todos pela própria pessoa da arguida.
É consabido que a remuneração é um dos elementos essenciais caracterizadores da relação de trabalho por conta de outrem (cfr. o art.o 1079.o, n.o 1, do Código Civil).
No caso dos autos, segundo a matéria de facto provada em primeira instância, o dito trabalhador, à altura dos factos, já era empregado de uma companhia de artigos de ouros e jóias em Hong Kong.
O que sucedeu é que, sob acordo ajustado pela arguida com a pessoa patroa dessa companhia em Hong Kong, o referido trabalhador deslocou-se a Macau para desempenhar as funções de instrutor e de venda na loja da arguida, sob arranjos desta.
Como esse trabalhador de Hong Kong, comprovadamente sem documentos de autorização dele para trabalhador em Macau, chegou a desempenhar as funções de venda na loja da arguida, funções de venda essas insusceptíveis de pertencer ao âmbito de “prestação de serviços de direcção, técnicos, de controlo de qualidade ou de fiscalização”, ele, independentemente do carácter esporádico ou não do serviço por ele pretado na loja da arguida, nunca pôde beneficiar da excepção à necessidade de obtenção prévia de autorização, por quem de direito em Macau, para exercer aqui actividade por conta de outrem.
Assim, ele foi efectivamente trabalhador ilegal em Macau, por ter sido encontrado a fazer tarefas de venda de artigos de jóias na loja da arguida, sob arranjos da própria arguida, ainda que não tenha ficado provado que a arguida lhe tenha fixado o horário de trabalho nem que ela lhe tenha pago vencimento.
É que estes dois factos não provados não têm a pretendida virtude de afastar a incriminação da conduta da arguida em sede do tipo legal de emprego ilegal, previsto pelo art.o 16.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004, nos seguintes termos: “Quem constituir relação de trabalho com qualquer indivíduo que não seja titular de algum dos documentos exigidos por lei para ser admitido como trabalhador, independentemente da natureza e forma do contrato, ou do tipo de remuneração ou contrapartida, é punido com pena de […]”, termos esses que evidenciam que a própria norma incriminadora não exige que a remuneração do trabalho tenha que ser paga pessoalmente pela arguida.
A matéria de facto provada em primeira instância, interpretada no seu conjunto e na globalidade, dá para se entender que a prestação de serviço de venda por parte daquele trabalhador de Hong Kong na loja da arguida foi por conta do acordo ajustado entre a arguida e a pessoa patroa da companhia empregadora do mesmo trabalhador em Hong Kong, razões por que a arguida foi condenada na sentença recorrida a título de co-autora material, porquanto sem comparticipação da pessoa patroa dessa companhia de Hong Kong, o mesmo trabalhador não teria prestado serviço de venda na loja da arguida, e sob arranjos da arguida. E os arranjos da arguida já significaram que ela não deixou de exercer também, sobre esse trabalhador, o poder de autoridade e direcção caracteristíco da relação de trabalho por conta de outrem (cfr. o conceito do contrato de trabalho definido já no acima referido n.o 1 do art.o 1079.o do Código Civil), ainda que não fique provado que foi ela quem fixou horário de trabalho desse trabalhador.
Em suma, a tese da arguida sustentada na sua motivação ficou precludida pelo nexo de co-autoria material na prática dos factos de emprego ilegal daquele trabalhador em Macau.
Naufraga o recurso, sem mais indagação por prejudicada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o recurso.
Custas do recurso pela arguida, com seis UC de taxa de justiça, e um total de duas mil e setecentas patacas de honorários a favor dos seus três Ex.mos Defensores Oficiosos (a ratear de modo seguinte: duas mil patacas a favor da Ex.ma Defensora que minutou a motivação do recurso, duzentas patacas ao Ex.mo Defensor que a substituiu, e quinhentas patacas à Ex.ma Defensora que substituiu este).
Macau, 24 de Junho de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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