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Processo n.º 80/2020
(Autos de recurso jurisdicional)

Data: 24/Junho/2020

Recorrente:
- B (Autor)

Objecto do recurso:
- Despacho que julgou o Tribunal Administrativo incompetente e que determinou a remessa do processo para o Juízo Cível do TJB

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
B (Autor), com sinais nos autos, intentou acção para a efectivação da responsabilidade civil extracontratual junto do Tribunal Administrativo contra a RAEM (1ª Ré) e o Instituto de Formação Turística (2º Réu), pedindo a condenação dos Réus, solidariamente, no pagamento de uma indemnização por violação do direito do Autor, em resultado da omissão ilícita da consulta ao Autor do projecto originário que foi alvo de modificação; uma indemnização a título de dano de perda de chance, equivalente a 50% do valor do projecto de arquitectura apresentado para a Obra de Construção que incide sobre o edifício da Biblioteca Internacional da Universidade de Macau; e ainda uma indemnização devida a título de danos morais.
Por sentença proferida pelo Juiz do Tribunal Administrativo, declarou-se incompetente para apreciar a causa e, em consequência, foi ordenada a remessa do processo ao Juízo Cível do TJB para ali ser tramitado.
Inconformado, recorreu o Autor jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“1. O objecto do presente recurso cinge-se ao teor do despacho do Tribunal a quo constante de fls. 740 e seguintes dos Autos, nos termos do qual aquele douto Tribunal se considerou incompetente para julgar a presente causa, em razão da matéria, tendo decidido, em consequência, determinar a remessa do processo para o Juízo Civil do Tribunal Judicial de Base, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 33º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do n.º 1 do artigo 99º do Código de Procedimento Administrativo Contencioso.
2. O caso sub judice versa sobre alterações e modificações levadas a cabo na obra de arquitectura da autoria do Recorrente originariamente designada por “Biblioteca Internacional da Universidade de Macau”, edifício esse que veio a ser cedido pela RAEM ao IFT.
3. A causa de pedir da presente acção radica nas modificações à Biblioteca Internacional da Universidade de Macau que o Recorrente veio a conhecer em vista ao local (por todo o edifício, incluindo obviamente o seu interior, em visita guiada a convite e com responsáveis do IFT), no dia 15 de Dezembro de 2015, assim como nas modificações posteriores a essa mesma data, as quais chegaram ao conhecimento do Recorrente por via da consulta ao processo n.º 19/MF/2018/L, em 31 de Julho de 2018, processo esse que corre seus termos junto da DSSOPT.
4. O Recorrente foi totalmente alheio às alterações e modificações na obra de arquitectura ora em apreço, nunca lhe tendo sido comunicado o ensejo de as entidades responsáveis pretenderem proceder a alterações ou modificações na sua obra, nem tão-pouco sido consultado previamente, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 144º do Regime do Direito de Autor e Direitos Conexos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 43/99/M e republicado pela Lei n.º 5/2012 (doravante, o “RDADC”).
5. A RAEM é dotada de órgãos e serviços funcionais que lhe permitem a prossecução dos seus objectivos e incumbências.
6. No que particularmente releva para o caso em apreço, dispõe o artigo 1º do Decreto-Lei n.º 29/97/M, de 7 de Julho que: “a Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, abreviadamente designada por DSSOPT, constitui um serviço de apoio técnico da Administração do Território, no âmbito da gestão e utilização de solos, do urbanismo, do tráfego, das infra-estruturas, dos serviços básicos e dos transportes terrestres”.
7. Cabe à DSSOPT licenciar e fiscalizar todas as edificações urbanas, designadamente particulares, municipais ou de entidades autónomas, nos termos da legislação aplicável – cfr. artigo 2º, alínea j) do mesmo diploma legal.
8. Por seu turno, nos termos do Decreto-Lei n.º 45/95/M, de 28 de Agosto, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 42/96/M, de 29 de Agosto e pelo Regulamento Administrativo n.º 26/2016, de 30 de Setembro, o IFT é uma pessoa colectiva de direito público, sendo a entidade competente, na RAEM, em matéria de ensino e formação no âmbito dos sectores turístico e hoteleiro, encontrando-se sujeito à tutela do Chefe do Executivo.
9. O processo de licenciamento e de fiscalização das alterações introduzidas na obra de arquitectura “Biblioteca Internacional de Macau”, por parte do IFT, correram (e aparentemente correm) seus termos juntos da DSSOPT.
10. Ao não efectuarem a consulta prévia devida ao Recorrente, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 144º do RDADC, e ao não cumprirem com o previsto no PROGRAMA DE CONCURSO/CADERNO DE ENCARGOS da obra de arquitectura em apreço, os Recorridos adoptaram uma conduta lesiva dos legítimos direitos e interesses do Recorrente, conduta essa que se afigura, a todos os títulos, como uma conduta dolosa, culposa e consciente.
11. No caso em concreto, face à materialidade subjacente aos específicos actos praticados pela RAEM (através da DSSOPT) e pelo IFT, considera o Recorrente que se encontram preenchidos os critérios subjectivos, objectivos e finalísticos necessários para identificar tais actos como actos de gestão pública, pelo que mal andou o Tribunal a quo ao considerar-se como incompetente, em razão da matéria, para dirimir o litígio sub judice, tendo desse modo violado as disposições legais constantes do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 28/91/M, de 22 de Abril, bem como do subparágrafo (4), do parágrafo 3), do n.º 2 do artigo 30º da Lei n.º 9/1999, alterada e republicada pela Lei n.º 4/2019.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o despacho constante de fls. 740 e seguintes ser revogado e substituído por outro que declare o Tribunal a quo como competente, em razão da matéria, para julgar a presente causa, determinando-se em consequência os ulteriores termos do processo até final.”
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Contra-alegou a 1ª Ré, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
“A. Nos presentes autos, como as condutas ilícitas que o Autor atribui a estas entidades públicas – falta fiscalização da modificação da obra de arquitectura e indevida utilização da obra arquitectura – de que teriam resultado os alegados danos decorreram, segundo a sua descrição, no âmbito daquelas atribuições funcionais e numa posição de superioridade jus imperi, assim, forçoso é qualificá-las como de gestão pública.
B. Segundo art. 30º, n.º 2, al. (3), para. 4 da Lei n.º 9/1999, compete ao Tribunal Administrativo conhecer das acções sobre responsabilidade civil extracontratual da RAEM, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por prejuízos decorrentes de actos gestão pública.
C. Sempre que as pessoas colectivas de direito público devam responder extracontratualmente por prejuízos causados a outrem resultantes dos seus actos lesivos de gestão pública, o julgamento da respectiva causa pertencerá à jurisdição administrativa, independentemente da violação de norma de direito público ou de direito privado.
Pelo exposto, no nosso modesto entendimento, o Tribunal Administrativo tem competência para conhecer da presente acção de efectivação da responsabilidade extracontratual civil, e em consequência, deverá julgar-se provimento ao recurso e revogar-se a douta sentença recorrida.”
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Também contra-alegou o 2º Réu apresentando as seguintes conclusões alegatórias:
“i) A decisão recorrida não padece de qualquer vício, pelo que o alegado pelo Recorrente em nada prejudica os doutos argumentos nela expostos.
ii) As preocupações do Autor não encontram resposta no Direito Administrativo; e
iii) Os Réus embora sujeitos públicos estabeleceram in casu relações jurídicas de direito civil que não respeitam a actos de gestão pública.
Termos em que, e nos mais de Direito, deve o presente recurso ser julgado improcedente.
Assim se fazendo a serena e costumada Justiça!”
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Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
A questão que se coloca neste recurso é saber qual o Tribunal, o Tribunal Administrativo ou o Juízo Cível, o competente para julgar a acção intentada pelo Autor contra os Réus.
Vejamos.
Dispõe o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 28/91/M: “A Administração do Território e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante os lesados, pelos actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício.”
Por sua vez, prevê o artigo 30.º, n.º 2, alínea 3), ponto IV da Lei de Bases de Organização Judiciária: “No âmbito do contencioso administrativo, e sem prejuízo da competência do Tribunal de Segunda Instância, compete ao Tribunal Administrativo conhecer das acções sobre responsabilidade civil extracontratual da Região Administrativa Especial de Macau, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso.”
Sobre o conceito de gestão pública, decidiu o Acórdão do TUI, de 18.1.2006, no Processo n.º 23/2005, o seguinte:
“E são actos de gestão pública os que se compreendem no exercício de um poder público, integrando, eles mesmos, a realização de uma função pública da pessoa colectiva, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devam ser observadas".
Também de acordo com o Acórdão deste TSI, de 26.1.2006, no âmbito do Processo n.º 268/2005, deixou consignado o que são actos de gestão pública:
“Um acto de gestão pública integra-se no exercício da actividade pública de uma pessoa de direito público, enquanto realiza um fim de Estado, através do exercício de um poder de autoridade, próprio ou delegado, atribuído por lei e incumbe aos tribunais administrativos e fiscais dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais, devendo excluir-se da jurisdição administrativa e fiscal as acções ou recursos que tenham por objecto as questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja uma pessoa de direito público.
(…)
Será uma relação de direito público, quando um dos sujeitos (o de direito público) intervém na relação jurídica que em causa estiver, numa qualidade que lhe confere, por lei, e em razão do interesse público que prossegue, uma posição de supremacia sobre o outro sujeito dessa mesma relação, impondo-lhe unilateralmente a sua vontade, por via da necessidade daquele prosseguimento.
(…)
À luz destas reflexões, devem considerar-se actos de gestão pública os que se compreendem no exercício de um poder público, integrando eles mesmos a realização de uma função pública, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente ainda das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devam ser observadas.”
Em termos de doutrina, observam Lino Ribeiro e Cândido de Pinho1 o seguinte: “A jurisprudência do STA, no âmbito das acções de responsabilidade, em diversos acórdãos tem dado as seguintes definições: são «actos de gestão privada, os que se compreendem numa actividade em que uma pessoa colectiva, despida do poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas de direito privado»; são «actos de gestão pública, os que se compreendem no exercício de um poder público, integrando eles mesmos a realização de uma função pública da pessoa colectiva, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente ainda das regras técnicas ou de natureza que na prática dos actos devam ser observados.»”
Ainda nas palavras do Cândido de Pinho2: “O Território surge, neste contexto, vestido de soberania, manifestando-se nos poderes administrativos com igual roupagem, sendo legítima a conclusão de que o poder administrativo é um poder de autoridade.”
No caso sub judice, foi alegado pelo Autor ora recorrente que ele não foi informado da realização de alterações e modificações na obra de arquitectura de sua autoria “Biblioteca Internacional da Universidade de Macau”, nem tão-pouco foi previamente consultado.
Além disso, foi alegado ainda que o Instituto de Formação Turística (IFT) apresentou um pedido de licenciamento de obra de construção junto da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (DSSOPT), instruído com recurso a desenhos e informação digital relativa à obra de arquitectura, tendo aquele pedido sido autorizado sem que o Autor para tal tivesse dado a devida autorização.
Segundo o preceituado no artigo 2.º, alínea j) do Decreto-Lei n.º 29/97/M (Lei Orgânica da Direcção dos de Solos, Obras Públicas e Transportes), sendo um serviço funcional da 1ª Ré, compete à DSSOPT, entre outras atribuições, licenciar e fiscalizar todas as edificações urbanas, designadamente particulares, municipais ou de entidades autónomas, nos termos da legislação aplicável. E em termos de distribuição de tarefas, cabe à Divisão de Licenciamento daquele Serviço, entre outras, apreciar e informar os projectos elaborados pelos municípios e entidades autónomas relativos a obras de ampliação, construção, remodelação, conservação e reparação de edifícios públicos, de monumentos e de instalações especiais (artigo 8.º, n.º 2, alínea e) do mesmo diploma legal) e à Divisão de Fiscalização fiscalizar o cumprimento das leis e regulamentos gerais inerentes ao licenciamento das construções (artigo 8.º, n.º 3, alínea e)).
E em relação ao Instituto de Formação Turística (IFT), a sua estrutura orgânica e respectivo funcionamento vêm regulados no Regulamento Administrativo n.º 27/2019.
Segundo o artigo 2.º, n.º 1 do Regulamento, o IFT é uma pessoa colectiva de direito público, dotado de órgãos e património próprios e, como instituição de ensino superior pública, goza de autonomia científica, pedagógica, administrativa e financeira, e patrimonial.
Além disso, estatui-se na alínea 10) do artigo 31.º do mesmo Regulamento que compete ao Conselho Administrativo daquele Instituto administrar os bens do IFT, supervisionando o seu aproveitamento e conservação e garantir a elaboração e permanente actualização do inventário e cadastro dos bens móveis e imóveis.
Ora, alega o Autor ora recorrente na sua petição inicial que cabia às entidades públicas/órgãos funcionais da RAEM, a saber, o IFT e a DSSOPT, supervisionar o processo de licenciamento e de fiscalização das alterações introduzidas na obra de arquitectura de sua autoria, mas não o tendo feito por forma a evitar danos, antes tendo os Réus adoptado uma conduta lesiva dos legítimos direitos e interesses do recorrente. Sendo assim, somos a entender que a alegada falta de cumprimento das obrigações por parte daquelas entidades estava inserida no âmbito de actividades do respectivo domínio de gestão pública. Pois, os actos originadores de danos, a existirem, foram praticados pelos Réus no exercício das suas funções públicas, de acordo com as atribuições legalmente previstas.
Ademais, convém realçar que a ilicitude prevista no Decreto-Lei n.º 28/91/M, que regula o regime da responsabilidade civil extracontratual da Administração e demais pessoas colectiva públicas da RAEM, não se cinge apenas à violação das normas do direito público, antes abrange a violação do direito de outrem ou de uma disposição legal destinada a proteger os seus interesses, bem como situações em que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis (cfr. artigo 7.º do Decreto-Lei).
Isto posto, por a conduta imputada aos Réus foi praticada no exercício de funções públicas, o caso sub judice enquadra-se, salvo o devido e mui respeito, no âmbito da gestão pública, pelo que compete ao Tribunal Administrativo a apreciação da causa.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso jurisdicional interposto pelo recorrente B, revogando a decisão recorrida, declarando ser o Tribunal Administração o competente para conhecer da acção intentada pelo Autor ora recorrente.
Sem custas.
Registe e notifique.
***
RAEM, 24 de Junho de 2020

(Relator)
Tong Hio Fong

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Lai Kin Hong

(Segundo Juiz-Adjunto)
Fong Man Chong
1 Código do Procedimento Administrativo de Macau, Anotado e Comentado, FM e SAFP, pág. 47
2 Manual Elementar de Direito Administrativo, CFM, pág. 226
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Recurso Jurisdicional 80/2020 Página 1