Processo nº 1239/2019
(Autos de Recurso Cível e Laboral)
Data do Acórdão: 09 de Julho de 2020
ASSUNTO:
- Empréstimo para jogo.
- Obrigações naturais.
- Impossibilidade de cobrança coerciva
SUMÁRIO:
- O empréstimo em fichas de jogo por quem não esteja legalmente autorizado para o efeito não gera obrigações civis nos termos do artº 4º da Lei nº 5/2004;
- Quando não abrangido pelo disposto no artº 4º da Lei 5/2004 o empréstimo para jogo constitui uma obrigação natural que não pode ser judicialmente exigível.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 1239/2019
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 09 de Julho de 2020
Recorrente: B
Recorrido: C
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
C, com os demais sinais dos autos,
veio instaurar acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra,
B, também com os demais sinais dos autos,
pedindo a condenação do Réu a:
a) restituir ao Autor as fichas de jogo próprias do D Club no valor de HKD1.900.000,00 por nulidade do contrato de autorização de concessão de crédito para jogo e por nulidade do negócio jurídico de crédito;
Caso assim não se entenda,
b) restituir ao Autor as fichas de jogo próprias do D Club, no valor equivalente a HKD1.900.000,00 por enriquecimento sem causa do Réu;
Se a restituição em espécie não for possível
c) restituir ao Autor o valor correspondente em numerário, isto é, MOP1.957.000,00;
d) pagar ao Autor o juro de mora à taxa legal contado a partir da data da citação até ao integral e efectivo pagamento.
Foi proferida sentença julgando a acção parcialmente procedente condenado o Réu B a restituir ao Autor C as fichas mortas próprias do D Club no valor equivalente a HKD1.900.000,00, absolvendo o Réu do pagamento dos juros pedidos.
Não se conformando com a sentença proferida veio o Réu interpor recurso apresentando as seguintes conclusões:
1. Nos autos à margem acima referidos, o Recorrente foi condenado a “restituir ao Autor C as fichas mortas próprias do D Club no valor equivalente a HKD1.900.000,00”, isto é, o acórdão recorrido;
2. O Recorrente entende que conforme os factos provados dos autos à margem acima referidos, não deve só aplicar o artigo 282.º n.º 1 do Código Civil, ou seja, não deve condenar o Recorrente a “restituir tudo o que tiver sido prestado” por nulidade do acto de crédito;
3. Uma vez que o Recorrente entende que aos factos provados nos autos deve ser aplicado o artigo 282.º n.º 3, em conjugação com o artigo 1194.º do Código Civil,
4. Com a aplicação do artigo 282.º n.º 3 e do artigo 1194.º do Código Civil, mesmo que exista a situação jurídica de “nulidade”, a parte que exerça a posse de boa-fé não responde pela perda da coisa, sempre que tenha procedido sem culpa,
5. Quer isto dizer que não precisa de restituir tudo o que tiver sido prestado.
6. Dos factos provados nos autos à margem acima referidos resulta que as fichas mortas próprias do D Club contraídas pelo Recorrente já foram perdidas nos jogos, a situação de o Recorrente exercer a posse das referidas fichas mortas próprias do D Club preenche a situação de exercer a posse de boa-fé prevista nos artigos 1183.º e 1184.º do Código Civil.
7. Os factos provados confirmam: o Recorrente é um jogador, ele contraiu as fichas mortas do D Club para jogos de fortuna ou azar;
8. Como é sabido, as fichas mortas de jogo não podem ser convertidas em numerário, só podendo ser utilizadas nos jogos;
9. Mais ainda, o Autor aceitou a quantia de HKD4.100.000,00 paga pelo recorrente como liquidação da parte das fichas mortas próprias do D Club, tal acto basta para provar que o Autor também aceitou o facto de que as fichas mortas próprias do D Club contraídas pelo Recorrente já foram perecidas.
10. A par disso, a posse das referidas fichas mortas próprias do D Club por parte do recorrente foi de boa-fé;
11. Uma vez que ao receber as fichas mortas próprias do D Club junto do Autor, foi efectivamente impossível que o Recorrente soubesse que o referido acto de crédito é nulo por existir vício no contrato de autorização de concessão de crédito para jogo celebrado entre o Autor e a subconcessionária;
12. Ao receber as fichas mortas próprias do D Club, foi impossível que o Recorrente já tivesse plano para lesar o interesse do Autor com isso,
13. O Recorrente pensou ser um acto de crédito válido para obter as fichas mortas próprias do D Club, o que constitui a posse titulada;
14. A situação de o Recorrente exercer a posse das fichas mortas próprias do D Club preenche a situação de exercer a posse de boa-fé prevista nos artigos 1183.º e 1184.º do Código Civil.
15. Por fim, ao perder as fichas mortas próprias do D Club por si contraídas nos jogos, o Recorrente não teve qualquer culpa,
16. Uma vez que as fichas mortas de jogo limitam-se a ser utilizadas nos jogos, e isto também foi conhecido e aceite pelo Autor;
17. Mais ainda, de facto, a perda das fichas mortas ou fichas de jogo durante os jogos depende da sorte, não tendo nada a ver com a culpa do jogador.
18. Assim sendo, quanto à situação do presente caso, só com base nos factos provados do acórdão recorrido também basta para aplicar o artigo 282.º n.º 3, em conjugação com o artigo 1194.º do Código Civil;
19. Pelo que, quando o recorrente exerceu a posse de boa-fé e não teve culpa na perda das fichas mortas próprias do D Club,
20. O Recorrente não precisa de responder pela perda das referidas fichas mortas próprias do D Club (artigo 1194.º n.º 1 do Código Civil);
21. O Recorrente não precisa de restituir as fichas mortas próprias do D Club já perdidas por nulidade do acto de crédito;
22. Quanto a isso, o acórdão recorrido aplicou erradamente a lei,
23. Pelo que, a juíza do Tribunal Colectivo a quo deveria julgar que o Recorrente não precisa de restituir as fichas mortas próprias do D Club nem efectuar qualquer pagamento do valor correspondente a título de indemnização,
24. Deveria rejeitar todos os pedidos do Autor.
25. Não devendo proferir o acórdão recorrido.
Pelos acima expostos, solicita que os MM.ºs Juízes julguem procedentes os fundamentos do recurso:
(i) Anulem o acórdão recorrido por erro na aplicação da lei;
(ii) Declarem improcedentes os pedidos invocados na petição inicial do Autor e rejeitem todos os seus pedidos;
e
(iii) Condenem o Requerente no pagamento das custas processuais, taxa de justiça, custas e honorários a mandatário judicial da parte.
Notificado o Autor e ora Recorrido para os termos do recurso, veio este contra-alegar nos seguintes termos:
1. Em primeiro lugar, depois de citado, o Recorrente não veio contestar, pelo que, nos termos do artigo 405.º n.º 1 do Código de Processo Civil, consideraram-se reconhecidos os factos articulados pelo Autor, e em consequência, os pedidos invocados pelo Recorrido foram conhecidos com base nos factos provados e nos respectivos dispostos legais. Obviamente, não existe qualquer vício de ilegalidade invocado pelo Recorrente.
2. Na aplicação da lei, o artigo 282.º n.º 3 do Código Civil não é uma norma excepcional, pelo contrário, mediante o artigo 282.º n.º 3 do Código Civil, amplia-se o âmbito de aplicação dos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo, de forma que em qualquer dos casos previstos no artigo 1194.º e seguintes do Código Civil, os aludidos dois dispostos legais possam ser aplicados directamente ou por analogia para produzir a consequência jurídica.
3. O Recorrido entende que o Recorrente “faz as coisas às avessas”, considerando o pressuposto da aplicação da lei como a consequência jurídica prevista na lei, pelo que, evidentemente, o que invocado pelo Recorrente e a sua interpretação dos referidos dispostos legais violam o artigo 8.º do Código Civil.
4. Aliás, conforme o aludido texto do disposto legal pode-se ver que o legislador prevê que o possuidor que exerça a posse de boa-fé só precisa de “responder” pela perda ou deterioração da coisa quando o possuidor tenha procedido com culpa, e em conjugação com o pressuposto e o elemento da aplicação do referido disposto legal, pode-se saber que a expressão “responde” mencionada no disposto legal deve implicar a responsabilidade cível emergente de um facto ilícito, porém, a questão fulcral impugnada no presente processo reside em que o recorrente precisa de restituir tudo o que foi prestado por nulidade do acto de crédito entre o Recorrente e o Recorrido. O Recorrido entende que no caso em apreço já estão reunidas condições suficientes para tratar da matéria envolvida no presente processo mediante o mecanismo previsto no artigo 282.º n.º 1 do Código Civil, em vez de aplicar o artigo 1194.º n.º 1 do Código Civil.
5. Depois de citado, o Recorrente não apresentou qualquer contestação, pelo que, já se considerou que o Recorrente reconheceu os factos articulados pelo Recorrido e não invocou quaisquer factos. Assim sendo, o Recorrente invocou que “as fichas mortas próprias do D Club já foram perecidas por ter sido perdidas nos jogos”, este facto nunca foi dado como provado no presente processo. Já que o Recorrente não impugnou oportunamente o que invocado pelo Recorrido na petição inicial nem respondeu à excepção, o Recorrente não pode responder ao que o Recorrido invocou na petição inicial mediante o recurso ordinário e tal facto também não deve ser considerado no acórdão nem servir de fundamentação do acórdão do Tribunal a quo nos termos dos artigos 562.º e 563.º do Código de Processo Civil.
6. De facto, o Recorrido não sabe nem tem obrigação de saber se existe qualquer nexo de causalidade entre a não restituição, por parte do Recorrente, das fichas de jogo contraídas e a perda ou o alegado perecimento das referidas fichas nos jogos, pelo que, o facto alegado no ponto 16.º da petição de recurso não pode ser procedente, e o Recorrido também não pode compreender exactamente como é que conforme o aludido facto provado o Recorrente pode chegar a uma conclusão cujo sentido é completamente diferente e que não tem uma mínima correspondência nas suas letras.
7. A nível jurídico, tal como referido na jurisprudência do Tribunal de Última Instância, “as fichas de casino não podem ser objecto de direito de propriedade, e na realidade, as fichas de jogo podem ser utilizadas em casino como dinheiro e podem servir de suporte do referido crédito. Assim, pode-se ver que a ficha de casino é um título ao possuidor, não podendo ser objecto de direito de propriedade, pelo que, obviamente, a ficha de jogo não pode ser o objecto do direito de propriedade previsto no artigo 1226.º do Código Civil nem pode ser o objecto da posse estipulada no artigo 1175.º do mesmo Código.
8. Além disso, mesmo que as referidas fichas mortas já fossem perdidas nos jogos, tal como invocado pelo Recorrente, o Recorrente já perdeu a posse das referidas fichas mortas nos termos do artigo 1192.º do Código Civil. Assim, pode-se ver que quer a nível doutrinário quer a nível real, nunca pode o Recorrente exercer a posse das referidas fichas mortas, pelo que, não preenche o pressuposto da aplicação do artigo 1194.º n.º 1, isto é, “existe a referida posse”.
9. Mais ainda, mesmo que seja verdade que o recorrente perdeu as fichas mortas nos jogos, tal como referido pelo recorrente, se as referidas fichas mortas em causa foram perecidas, tal acto deve ser considerado como a transmissão onerosa das referidas fichas mortas ao referido casino estipulada no contrato de jogo celebrado entre si e o casino nos termos do artigo 1093.º n.º 1 do Código Comercial, não podendo ser considerado como perecimento das referidas fichas mortas de jogo, o que também se pode provar que não é aplicável o artigo 1194.º do Código Civil.
10. Mesmo que se entenda que o Recorrente exerceu a posse das fichas mortas em causa e as mesmas já foram perecidas, porém, nos termos do artigo 401.º alínea a) do Código de Processo Civil, a citação do Recorrente também fez cessar a boa-fé do Recorrente, pelo que, maximamente desde a data da citação do Recorrente, a alegada posse de boa-fé tornou-se para a posse de má-fé, pelo que, nos termos do artigo 1194.º n.º 2 do Código Civil, o Recorrente também deve responder pelo perecimento das referidas fichas de jogo.
11. Por fim, apesar de bem saber que seria muito possível que as referidas fichas mortas poderiam ser confiscadas (ou perecidas tal como alegado pelo recorrente), o Recorrente ainda aceitou a consequência trazida pelos jogos e continuou a fazer apostas. Daí pode-se ver que a sua conduta activa teve, pelo menos, dolo eventual, pelo que, a sua conduta também tem culpa. Assim sendo, mesmo que se entenda que o Recorrente exerceu a posse de boa-fé, o Recorrente ainda deve responder pela conduta relacionada com as fichas mortas de jogo nos termos do artigo 1194.º n.º 1 do Código Civil.
12. Daí pode-se ver que seja qual for o fundamento jurídico acima referido, o Recorrente ainda é obrigado a restituir as fichas mortas de jogo no valor correspondente a HKD1.900.000,00 ao Recorrido, porém, isto não impede que o Recorrente restitui o valor correspondente em numerário se for impossível a restituição das fichas mortas de jogo. Nestes termos, o Recorrido entende que todos os fundamentos do recurso invocados pelo Recorrente são improcedentes, o acórdão do Tribunal a quo andou bem e não violou a lei, pelo que, deve ser mantido.
Pelos acima expostos, o Recorrido entende que o acórdão recorrido não enferma de quaisquer vícios invocados pelo recorrente, pelo que, deve ser suportado. Assim sendo, solicita que o Tribunal Colectivo do Tribunal de Segunda Instância rejeite ou julgue improcedente o recurso, mantenha o acórdão do Tribunal a quo e condene o Recorrente a pagar todas as custas, incluindo os honorários a advogado do recorrido.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
a) Factos:
Da sentença sob recurso consta a seguinte factualidade:
- Em 27 de Março de 2002, por despacho do Chefe do Executivo n.º 76/2002 e nos termos dos dispostos na Lei n.º 16/2001 e no Regulamento Administrativo n.º 26/2001, o Chefe do Executivo da Região Administrativa Especial de Macau adjudicou à “YYY, S.A.” uma das três concessões para a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino postas a concurso.
- Em 19 de Abril de 2005, a YYY, S.A. e a XXX E, S.A. celebraram um contrato de subconcessão, o que faz com que esta última possa exercer a actividade de exploração de jogos de fortuna ou azar em casino em Macau na qualidade de subconcessionária.
- O Autor é um empresário comercial, pessoa singular, legalmente constituído em 27 de Janeiro de 2011, com a firma “C Empresário Individual”, registado sob o n.º 2****(CO), cujo objecto social é a promoção de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino em Macau.
- O Autor era titular da licença de promotor de jogos, pessoa singular, n.º I114, emitida pela Direcção de Inspecção de Coordenação de Jogos em 10 de Janeiro de 2011, com o prazo de validade até 31 de Dezembro de 2011, e por causa disso o Autor foi autorizado a exercer a actividade de promoção de jogos na subconcessionária.
- Em 12 de Novembro de 2010, a subconcessionária celebrou um contrato de promotor de jogo (Gaming Promoter Agreement) com o Autor, com vista a permitir ao Autor explorar a sala de VIP e exercer a actividade de promoção de jogo no seu casino.
- No mesmo dia, através de um contrato, a subconcessionária delegou poderes no Autor para que este pudesse exercer a actividade de concessão de crédito para jogo no seu casino, sendo o referido contrato renovável automaticamente.
- A administradora da XXX E, S.A., F, assinou os aludidos dois contratos na qualidade de representante legal da empresa, cujas assinaturas foram reconhecidas por semelhança com menção especial pelo notário.
- O nome do estabelecimento empresarial onde o Autor explorava as aludidas actividades de promoção de jogo e concessão de crédito para jogo é “XXX D Club”, em inglês “D Club”.
- Durante a exploração do “XXX D Club”, o Autor concedeu várias vezes créditos aos apostadores de jogo, a título de concessão de crédito para jogo.
- O Réu é um jogador. Em 30 de Agosto de 2011, o Réu pediu ao “XXX D Club” para lhe emprestar, do “XXX D Club”, as fichas mortas de jogo no valor equivalente a HKD5.000.000,00 para jogos de fortuna ou azar.
- Às 22h09 do mesmo dia, o Autor entregou ao Réu as fichas mortas próprias do “XXX D Club” no valor equivalente a HKD5.000.000,00 e o Réu recebeu tais fichas mortas.
- Para comprovar a aludida relação de crédito, o Réu assinou ao Autor uma “declaração de dívida”, com o n.º 25136, da qual constavam o nome do Réu, a quantia da dívida a liquidar e as assinaturas da testemunha e do responsável do “XXX D Club”, e o Réu assinou no campo de “creditado”.
- O Réu concordou que iria devolver, em numerário, o valor correspondente às aludidas fichas mortas ao Autor, isto é, HKD5.000.000,00, dentro dos 14 dias após o empréstimo, ou seja, antes do dia 13 de Setembro de 2011.
- Em 16 de Setembro de 2011, o Réu pediu ao “XXX D Club” para lhe emprestar as fichas mortas de jogo no valor equivalente a HKD1.000.000,00 para jogos de fortuna ou azar.
- Às 19h35 do mesmo dia, o Autor entregou ao Réu as fichas mortas próprias do “XXX D Club”, no valor equivalente a HKD1.000.000,00, e o Réu recebeu tais fichas mortas.
- Para comprovar a aludida relação de crédito, o Réu assinou ao Autor uma “declaração de dívida”, com o n.º 25380, da qual constavam o nome do Réu, a quantia da dívida a liquidar e as assinaturas da testemunha e do responsável do “XXX D Club”, e o Réu assinou no campo de “creditado”.
- O Réu concordou que iria devolver, em numerário, o valor correspondente às aludidas fichas mortas ao autor, isto é, HKD1.000.000,00, dentro dos 14 dias após o empréstimo, ou seja, antes do dia 30 de Setembro de 2011.
- Até 18 de Janeiro de 2013, o Réu devolveu, pessoalmente ou mediante outrem, ao “XXX D Club” a quantia total de HKD4.100.000,00.
- Desde então, o Réu não devolveu mais.
- Para exigir ao Réu a liquidação da aludida dívida, o Autor tentou, por várias vezes, contactar com o Réu mediante diferentes vias, porém, tudo foi em vão.
- Em 8 de Setembro de 2015, o Autor intentou no Tribunal Judicial de Base uma acção executiva com processo ordinário n.º CV2-15-0133-CEO para reclamar a aludida dívida.
- Citado para intervir na referida causa, o Réu deduziu embargos ao aludido processo de execução, cujo número é CV2-15-0133-CEO-A. O acórdão do referido processo foi proferido em 2 de Maio de 2018, no qual foi julgado que o contrato de autorização de concessão de crédito para jogo assinado pela representante legal da subconcessionária enfermou de vício na forma por não preencher o artigo 8.º n.º 1 da Lei n.º 5/2004, e em consequência, nos termos do artigo 212.º do Código Civil, tal contrato não pode produzir os efeitos para autorizar o Autor a conceder crédito para jogo no estabelecimento da subconcessionária, e ao abrigo do artigo 287.º do Código Civil, o crédito concedido pelo Autor ao Réu não produziu os seus efeitos por nulidade, não podendo o Autor exigir com fundamento no referido acto que o Réu cumpra a obrigação de restituição do capital nem podendo instaurar a acção executiva com base nos documentos assinados pelo Réu como fundamento da execução, razões pelas quais foi declarada extinta a acção executiva.
b) Do Direito
Veio o Réu e agora Recorrente invocar que a decisão sob recurso enferma de erro de julgamento no que concerne à subsunção jurídica da factualidade apurada, alegando que, pese embora a nulidade do contrato de mútuo, estando o devedor (aqui Réu/Recorrente) de boa-fé e na ignorância da nulidade do contrato quando recebeu as fichas, as quais só podem ser usadas para jogo cujo resultado depende da sorte, não foi por culpa do Réu/Recorrente que as perdeu (as fichas) pelo que, nos termos do artº 282º nº 1 e 3º conjugado com o artº 1194º nº 1 do C.Civ., não tendo sido por culpa sua que perdeu a coisa (as fichas) não lhe é exigido a restituição da mesma (das fichas).
Quanto ao argumento invocado pelo Recorrente este nunca poderia proceder, uma vez que, o artº 1194º nº 1 do C.Civ. se refere a culpa, sendo que, por culpa se entende a negligência e o dolo.
Ora, tal como o próprio Recorrente invoca nos jogos de fortuna e azar, ganhar ou perder depende essencialmente da sorte, pelo que, a ser assim, quem joga – especialmente quem joga valores como Réu/recorrente – tem consciência que o resultado da aposta pode ser ganhar ou perder tudo, logo no que respeita à perda da coisa (fichas de jogo), há sempre negligência consciente uma vez que admitindo-se tal resultado (perder) como provável e ainda assim aceitar jogar, se a solução jurídica da questão sub judice passasse pelas normas indicadas sempre ao Réu seria imputável a título de culpa a perda das fichas, por ter actuado com negligência consciente quanto à eventual perda da coisa que lhe havia sido entregue (as fichas) quando fez as apostas na sequência das quais, como diz, as perdeu.
Porém, pese embora não seja por essa construção jurídica que passa a solução do caso em apreço, não deixa de se concordar com o Recorrente quanto ao erro de julgamento por errada interpretação do direito.
Não estando o tribunal vinculado à argumentação jurídica invocada pelas partes, vejamos então.
Da factualidade apurada resulta que na acção “sub judicie” entre o Autor e Réu foi celebrado um empréstimo para jogo, cuja disciplina se encontra regulada na Lei nº 5/2004 e cujo artº 4º estabelece que:
Artigo 4.º
Eficácia
Da concessão de crédito exercida ao abrigo da presente lei emergem obrigações civis.
Também em sentido idêntico estabelece o Código Civil no seu artº 1171º:
Artigo 1171.º
(Eficácia)
1. O jogo e a aposta constituem fonte de obrigações civis sempre que lei especial o preceitue, bem como nas competições desportivas, em relação às pessoas que nelas tomem parte; de contrário, o jogo e aposta, quando lícitos, são mera fonte de obrigações naturais.
2. Se houver fraude na sua execução, o contrato não produz qualquer efeito em benefício de quem a praticou.
3. Fica ressalvada a legislação especial sobre a matéria de que trata este capítulo.
A respeito de obrigações naturais estabelece o mesmo diploma legal no seu artº 396º:
Artigo 396.º
(Noção)
A obrigação diz-se natural, quando se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça.
Ou seja, no nosso sistema jurídico as obrigações decorrentes de jogos de fortuna e azar, sejam elas o pagamento da aposta que perdeu ou o empréstimo contraído em fichas de jogo que permitem jogar (vulgo fichas mortas) não são fonte de obrigações civis (salvo se houver lei especial que o diga) dando origem apenas a obrigações naturais (e estas apenas se for lícito).
A diferença entre a obrigação civil e a obrigação natural reside precisamente na “exequibilidade”.
Enquanto a obrigação civil pode ser judicialmente exequível, isto é, o credor pode em sede de execução obter o cumprimento coercivo da obrigação do devedor, nas obrigações naturais o cumprimento nunca pode ser exigido judicialmente (artº 398º do C.Civ. “a contrário”).
Como resulta dos artº 397º do C.Civ. o devedor que queira cumprir a obrigação deve fazê-lo – poderemos até dizer que terá o dever “moral” de cumprir, de pagar – e se o fizer em regra não pode pedir a devolução do que prestou.
No entanto, nas obrigações naturais para além do cumprimento voluntário nunca há cumprimento coercivo da obrigação.
Ora, no caso em apreço houve um empréstimo feito em fichas de jogo, que também se pode dizer uma dívida decorrente da compra de fichas para jogo.
Por razões alheias aos contraentes veio a apurar-se que o mutuante não estava legalmente autorizado a fazer empréstimos para jogo, o mesmo é dizer, nem a ceder fichas sem que fossem imediatamente pagas.
Na sentença do processo de embargos que correu no TJB sob o nº CV2-15-0133-CEO-A conclui-se pela inexigibilidade da dívida com base no título executivo face ao disposto no artº 4º da Lei nº 5/2004 sem prejuízo da nulidade do mútuo com base no artº 287º do C.Civ..
A sentença sob recurso vem posteriormente a acompanhar a solução da nulidade do mútuo.
Estabelece o artº 287º do C.Civ. que «os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de caracter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei».
Sobre esta matéria e o fundamento teleológico desta invalidade remete-se para as anotações ao artigo em questão no Código Civil Anotado de João Gil de Oliveira e José Cândido de Pinho, Livro I, Tomo IV, pág. 395 e seguintes.
A questão que se coloca é a de saber se o empréstimo para jogo feito por quem não está habilitado para tal enferma de nulidade seja por violação do disposto no artº 273º ou do artº 287º ambos do C.Civ..
Ora, a realização de mútuos não é legalmente impossível ou contrária à lei, nem viola disposição legal de carácter imperativo.
O que sucede é que em determinadas circunstâncias o legislador entendeu condicionar a realização de mútuos à pré-existência de determinados requisitos.
Tal é o que acontece com o mútuo para jogo em determinadas circunstâncias.
O empréstimo para jogo ou aposta em casino, feito através da transmissão da titularidade de fichas de jogo de fortuna ou azar está regulado, como já referimos na Lei nº 5/2004.
Da conjugação do artº 4º da Lei nº 5/2004 com o artº 1171º do C.Civ., pode-se retirar que este empréstimo tendo sido para jogo e não obedecendo ao disposto no indicado diploma (por não ter sido feito por quem estava autorizado para tal) não gera obrigações civis, isto é, não pode ser coactivamente exigido.
Tal foi o que se decidiu no processo de embargos à execução que o aqui Recorrente (e Réu) deduziu contra a execução em que era exequente o aqui Recorrido (Autor).
Não sendo objecto desta decisão, mas bem se andou nos embargos à acção executiva quando se decidiu pela extinção daquela por não ser a obrigação exigível, mas já não tanto quanto à referência à nulidade que irremediavelmente arrastou a este processo1.
E a conclusão a que ali se chegou não poderia estar mais correcta na asserção de que o empréstimo feito em fichas de jogo por quem não está habilitado para tal não é exigível (porque não gera obrigações civis).
Porém, já não se concorda que seria um caso de nulidade.
Na esteira deste entendimento – de que o empréstimo seria nulo -, vem também a decisão sob recurso a concluir pela nulidade, havendo que repetir tudo o que foi prestado.
Porém, como referimos não é esta a solução jurídica.
Em momento algum o legislador quis cominar estes contratos (empréstimos para jogo) com a nulidade.
Tal solução equivaleria a que o mutuante não autorizado não correria praticamente risco algum com estes empréstimos para além de poder perder os juros, uma vez que da nulidade decorre sempre a repetição do que se prestou, o que pode ser judicialmente exigível.
Se fosse essa a intenção do legislador, não faria qualquer sentido o citado artº 4º da Lei 5/2004, bastando dizer que os contratos feito em desobediência do estipulado nesta lei seriam nulos.
No entanto não foi essa a solução do legislador.
Decorrendo do já estabelecido no Código Civil no artº 1171º para o jogo e aposta, o legislador vem dizer que os mútuos realizados nos termos da Lei 5/2004 geram “obrigações civis”, donde, aqueles (mútuos para jogo) que não forem celebrados nos termos desta lei, não geram obrigações civis.
São obrigações naturais quando lícitos. Ou seja, se o devedor quiser pagar, paga, e paga bem no cumprimento de uma obrigação natural (e que assumiu), não são é exigíveis coercivamente.
Mas não são nulos.
No entanto, como já vimos não podendo ser coactivamente exigido, ele (o empréstimo) não deixa de poder ser pago voluntariamente, sem que o devedor possa pedir a devolução do que prestou.
Assim sendo, tendo havido um empréstimo para jogo por quem não estava legalmente autorizado a fazê-lo, não estando o mesmo abrangido pela Lei nº 5/2004, não pode gerar obrigações civis nos termos da indicada lei, pelo que, a acção terá de improceder, embora por fundamentos jurídicos diversos dos invocados nas conclusões de recurso.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, concedendo-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida, absolvendo o Réu agora Recorrente dos pedidos.
Custas a cargo do Autor/Recorrido.
Registe e Notifique.
RAEM, 09 de Julho de 2020.
(Relator)
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)
Tong Hio Fong
1 Estamos a referir-nos quando se diz, na decisão dos embargos «que o Embargado carece de título executivo para fundamentar a obrigação eventualmente emergente do aludido negócio nulo» – fls. 12 da versão traduzida (a fls. 2 a 14 do apenso de traduções) da sentença a fls. 38 a 41 -. Diga-se ainda que no caso em apreço é por esta passagem, que independentemente da posição que se tenha sobre ela faz parte dos fundamentos da decisão e nessa medida também é abrangida pelo “caso julgado” que, entendemos que no caso em apreço a segunda decisão (e aqui objecto deste recurso) não viola o caso julgado formado pela anterior, que no fundo já se tinha pronunciado sobre a exigência/validade da obrigação subjacente ao título executivo, porque esta passagem contém um comando/sugestão de que haveria que instaurar uma acção declarativa para obter a declaração de nulidade.
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1239/2019 CÍVEL 1