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Processo n.º 995/2019 Data do acórdão: 2020-7-16 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– investigação policial sobre o carácter verídico do casamento
– combinação entre o casal sobre versão fáctica
– erro notório na apreciação da prova
– regras da experiência da vida humana
S U M Á R I O
1. As regras da experiência da vida humana ditam que qualquer casal verdadeiro, e não só no papel, não precisa de combinar versão fáctica, para enfrentar a investigação policial acerca do carácter verídico do casamento, sobre a causa de não organização do banquete de casamento aquando do registo de casamento, nem sobre a causa do registo do casamento tão cedo, nem tão-pouco sobre a data do início de conhecimento recíproco.
2. É que: a organização, ou não, do banquete é um assunto sério para quaisquer noivos, pelo que a causa da não organização do banquete não pode ser esquecível por eles; a data de início do conhecimento recíproco do casal também é matéria inesquecível para o próprio casal; e a causa do registo de casamento tão cedo também é matéria séria e inesquecível, dada a importância do acto de registo de casamento para a vida do casal. Ademais, atenta a consabida inegável relevância do acto de celebração do casamento para a vida de qualquer casal verdadeiro, não deixa de contrariar as regras da experiência da vida humana a circunstância de não existirem fotografias do casamento.
3. Havendo, seja como for, erro notório na apreciação da prova como vício aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal, há que reenviar o processo para novo julgamento.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 995/2019
(Autos de recurso penal)
  Recorrente:
  Ministério Público
  Recorridos:
   1.o arguido A
   2.a arguida B






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 190 a 194v do Processo Comum Colectivo n.º CR3-18-0235-PCC do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), absolutório do 1.o arguido A e da 2.a arguida B da acusada prática, em co-autoria material, na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.o 18.o, n.o 2, da Lei n.o 6/2004, por meio previsto no art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal, veio o Digno Delegado do Procurador recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), imputando à decisão recorrida os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova, aludidos nas alíneas a) e c) do n.o 2 do Código de Processo Penal (CPP), para pedir a condenação directa dos dois arguidos no crime acusado, ou o reenvio do processo para novo julgamento (cfr. em detalhes, a motivação do recurso apresentada a fls. 201 a 208 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu o 1.o arguido (a fls. 210 a 213 dos presentes autos), defendendo a improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer (a fls. 222 a 223v dos autos), pugnando pelo reenvio do processo para novo julgamento, por verificação dos dois vícios apontados na motivação do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. A acusação pública contra os dois arguidos constava de fls. 116 a 118 dos autos, cujo teor integral se dá por aqui reproduzido.
2. O acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 190 a 194v dos autos, cujo teor (incluindo a sua fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui integralmente reproduzido.
3. Do confronto da factualidade acusada (num total de 15 factos acusados) no dito libelo com a factualidade julgada no acórdão recorrido, vê-se que:
– o Tribunal recorrido deu por provados os factos acusados 1, 3 e 6, e parcialmente provado o facto acusado 5, ao mesmo tempo que deu especificadamente por não provados os factos acusados 2, 4, 12 e três factos acusados seguintes;
– e ao teor das comunicações entre os dois arguidos através de mensagens trocadas entre si em Wechat em 13 de Março de 2017, detalhadamente referido e transcrito nos factos acusados 7 a 11, o Tribunal recorrido afirmou, na fundamentação fáctica do seu acórdão absolutório, que não ficou provado que em 13 de Março de 2017 os dois arguidos forjaram versão fáctica, através de Wechat, para enfrentarem a investigação policial no dia seguinte;
– e sobre a situação de movimentação fronteiriça dos dois arguidos no período do Primeiro de Janeiro de 2010 a 10 de Abril de 2017, como tal descrita na primeira parte do teor do facto acusado 12, o Tribunal recorrido não deu isto por provado, porque entendeu que esta parte do teor da acusação ser prova ou análise da prova.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, apreciando.
O Digno Delegado do Procurador ora recorrente imputou à decisão absolutória penal da Primeira Instância os vícios referidos nas alíneas a) e c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
Desde já, a respeito do assacado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada:
Da leitura da fundamentação fáctica do acórdão recorrido, sabe-se que o Tribunal recorrido não referiu concretamente, na indicação da matéria de facto julgada por provada, o teor das mensagens trocadas entre os dois arguidos em Wechat (então referido e transcrito nos factos acusados 7 a 11).
Ora, o teor das mensagens trocadas em Wechat em causa, como tal transcrito na factualidade acusada no libelo então deduzido pelo Ministério Público contra os dois arguidos, não é logicamente incompatível com o sentido e alcance dos quatro factos descritos no acórdão recorrido como dados por provados (alusivos à relação de camaradagem e boa amizade entre a mãe do arguido e a mãe da arguida, à causa de conhecimento recíproco entre os dois arguidos, à data e ao local do registo de casamento entre os arguidos, aos anos de cursos escolares dos dois arguidos à data do registo do casamento, ao entendimento das Autoridades competentes de Segurança Pública do Interior da China de ser duvidosa a relação matrimonial dos dois arguidos, e ao contacto ao 1.o arguido feito em 13 de Março de 2017 pelo pessoal do Corpo de Polícia de Segurança Pública para pedir a deslocação conjunta dos dois arguidos ao Departamento de Informações dessa Corporação para auxiliarem na investigação), pelo que a fórmula genérica empregue pelo Tribunal recorrido no intróito da indicação da matéria de facto não provada (segundo a qual “Os outros factos da acusação não conformes com os factos provados acima referidos não ficaram provados, nomeadamente […]”) deve ser considerada como não abrangente daquele teor das mensagens trocadas entre os dois arguidos em Wechat.
Sobre o teor dessas mensagens, o Tribunal recorrido afirmou que não ficou provado que em 13 de Março de 2017 os dois arguidos forjaram versão fáctica, através de Wechat, para enfrentarem a investigação policial no dia seguinte. Mas, esta afirmação não passa de ser uma conclusão tirada pelo mesmo Tribunal recorrido (cfr. o teor da linha 11 da página 8 do texto do acórdão recorrido a fl. 193v, em sintonia com o qual o Tribunal recorrido afirmou aí que “não há prova suficiente a demonstrar que o conteúdo de Wechat dos dois arguidos é versão fáctica forjada”), pelo que o mesmo Tribunal, antes de tirar essa conclusão, deveria emitir concretamente pronúncia sobre os factos acusados 7 a 11, no sentido de julgar provado, ou de julgar não provado, que os dois arguidos tenham trocado mensagens em Wechat no dia 13 de Março de 2017, e de julgar provado, ou não, o teor das mensagens entre ambos, transcritas nos factos acusados 7 a 11.
Por outro lado, também o mesmo Tribunal, antes de concluir por se tratar de “prova ou análise da prova”, deveria emitir concretamente pronúncia, na fundamentação fáctica do seu acórdão, sobre a primeira parte do facto acusado 12, já que a acusada situação de movimentação fronteiriça dos dois arguidos como tal aí descrita, com base nos dados de movimentação fronteiriça, não deixou de ter carácter factual, e não meramente conclusivo, e isto independentemente da veracidade ou não da própria acusada situação de movimentação fronteiriça.
Do acima exposto, decorre a evidência de que a decisão absolutória penal ora recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, por ter omitido pronúncia material quanto aos factos acusados 7 a 11 e à primeira parte do facto acusado 12.
E agora do também assacado vício de erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP:
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos:
Mesmo com a abstracção da existência, acima analisada, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, o resultado do julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal recorrido não deixaria de ser patentemente desrazoável, por seguintes razões:
– aos olhos do homem médio colocado na situação concreta dos autos, o teor das mensagens trocadas entre os dois arguidos e como tal descrito nos factos acusados 7 a 11 demonstra nitidamente que os dois arguidos estavam a combinar versão fáctica sobre a causa de não organização do banquete de casamento aquando do registo do casamento (cfr. as mensagens transcritas no facto acusado 9), e também sobre a causa de terem registado o casamento entre si tão cedo (cfr. as mensagens transcritas no facto acusado 10), e ainda também sobre a data do início do conhecimento recíproco entre si (cfr. as mensagens transcritas no segundo parágrafo do facto acusado 9 e e no facto acusado 10). É que as regras da experiência da vida humana ditam que qualquer casal verdadeiro, e não só no papel, não precisa de combinar versão fáctica sobre a causa de não organização do banquete de casamento aquando do registo de casamento, nem sobre a causa do registo do casamento tão cedo, nem tão-pouco sobre a data do início de conhecimento recíproco. A verdade das coisas não precisa de ser combinada: a organização, ou não, do banquete é um assunto sério para quaisquer noivos, pelo que a causa da não organização do banquete não pode ser esquecível por eles; a data de início do conhecimento recíproco do casal também é matéria inesquecível para o próprio casal; e a causa do registo de casamento tão cedo também é matéria séria e inesquecível, dada a importância do acto de registo de casamento para a vida do casal; ademais, atenta a consabida inegável relevância do acto de celebração do casamento para a vida de qualquer casal verdadeiro, não deixa de contrariar as regras da experiência da vida humana a circunstância, referida no teor das mensagens transcritas no facto acusado 8, de não existirem fotografias do casamento dos dois arguidos;
– daí que é manifestamente desrazoável o facto de o Tribunal recorrido ter dado por não provado que em 13 de Março de 2017 os dois arguidos forjaram versão fáctica, através de Wechat, para enfrentarem a investigação policial no dia seguinte; e esse entendimento do Tribunal recorrido arrastou a razoabilidade do resultado do julgamento dos factos acusados 2, 4, 12 (segunda parte), 13, 14 e do último facto acusado.
Do acima expendido, há que reenviar, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 3, do CPP, por constatação efectiva dos dois vícios de julgamento da matéria de facto apontados na motivação do recurso do Ministério Público, o processo para novo julgamento no TJB, por um novo Tribunal Colectivo, a quem caberá julgar os factos acusados 2, 4 e 7 a 14 e o último facto acusado, e depois decidir da causa penal em questão, em função do resultado do novo julgamento desses factos acusados e de acordo com os quatro factos já descritos como concretamente provados no acórdão ora recorrido.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso do Ministério Público, reenviando o processo para novo julgamento no Tribunal Judicial de Base por um novo Tribunal Colectivo, a quem caberá julgar os factos acusados 2, 4 e 7 a 14 e o último facto acusado, e depois decidir da causa penal em questão, em função do resultado desse novo julgamento e de acordo com os quatro factos já descritos como provados no acórdão ora recorrido.
Custas do recurso pelo 1.o arguido, com quatro UC de taxa de justiça (por ter ele defendido a improcedência do recurso).
Comunique o presente acórdão (com cópia também do acórdão recorrido) ao Corpo de Polícia de Segurança Pública e à Direcção dos Serviços de Identificação de Macau.
Macau, 16 de Julho de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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