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Processo nº 408/2020
(Autos de Recurso Cível e Laboral)

Data do Acórdão: 02 de Julho de 2020

ASSUNTO:
- Inventário
- Venda de bens da herança
- Direito de Preferência

SUMÁRIO:
- Acordando os interessados no inventário na venda de bem da herança, os herdeiros não gozam de direito de preferência nessa mesma venda.
- Os bens que integram o acervo da herança pertencem a esta (à herança) não tendo os herdeiros nenhum quinhão hereditário ou quota sobre os mesmos.


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Rui Pereira Ribeiro

Processo nº 408/2020
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 02 de Julho de 2020
Recorrente: A
Recorridos: B, C, D, E, F, G, H e I
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO
  
  Nestes autos de inventário para partilha da herança aberta por óbito J, em conferência de interessados foi acordado proceder-se à venda do único imóvel que consta da relação de bens – cf. fls. 167 -.
  Procedendo-se à venda por propostas em carta fechada, aquando da abertura das mesmas, um dos proponentes, K, casada com o herdeiro agora Recorrente requereu o exercício do direito de preferência uma vez que vivia na casa, o que foi indeferido com o fundamento da requerente não beneficiar de direito de preferência algum – cf. fls. 381 e 382 -.
  Posteriormente veio o ora Recorrente requerer que lhe fosse autorizado exercer o direito de preferência em relação ao imóvel pelo mesmo preço que foi oferecido – fls. 384 a 386 com tradução a fls. 387 -.
  Por despacho de fls. 389 foi indeferido o exercício do direito de preferência pelo herdeiro agora Recorrente A.
  Não se conformando com aquele despacho veio o herdeiro interpor recurso do mesmo, apresentando as seguintes conclusões:
1. A existir nos presentes autos uma realidade que se conceba como “quinhão” a mesma aproxima-se, senão mesmo coincide, com o único bem a partilhar, ou seja, a fracção autónoma designada “F2”.
2. A fracção autónoma designada “F2” é o único bem da herança trazido pelos interessados aos presentes autos para o efeito da sua partilha judicial, coincidindo, assim, com o conceito de “quinhão” e, assim sendo, a unidade da herança reconduz-se a não mais que à fracção autónoma designada “F2”, o que significa que todo o “quinhão” se subsume e contém, in casu, na fracção “F2”, único bem trazido à partilha judicial.
3. Cada co-herdeiro e cada co-interessado sempre haverá, porém, de ter direito a receber, na quota-parte que lhe seja devida ou que acorde, uma correlativa e proporcional parcela ou porção individual e definida do valor deste bem único a partilhar, parcela ou porção que se não deve confundir, todavia, com “quinhão” hoc sensu.
4. Sendo exercido o direito de preferência sobre tal bem único, a correlativa parcela ou porção definida do valor do bem que juridicamente cabe a cada co-herdeiro e cada co-interessado, é tutelada ou assegurada face aos mesmos por via do dever de pagar tornas que impende sobre o co-herdeiro ou co-interessado que haja exercido a preferência.
5. Mesmo que não se sobrepusesse, no caso vertente, o “quinhão” ao ”bem único a partilhar”, diga-se que sempre resulta expressamente da lei que mesmo “bens concretos” poderão ser objecto de preferência, tanto legal como convencional, tal qual se depreende do nº 2 do art. 1001° do C.P.C.
6. A titularidade de um direito de preferência - e respectivo exercício pelo recorrente em 29 ABR 2019 - tem a sua sede legal no citado art. 1970º do Código Civil e, bem assim, no art. 968º do C.P.C.
7. Ao não ter adoptado a ora propugnada interpretação e aplicação das normas jurídicas constantes do art. 1970º do Código Civil e do art. 968º do C.P.C., o Tribunal a quo procedeu à violação das mesmas normas jurídicas, o que se invoca nos termos e para os efeitos das alíneas a) e b) do nº 2 do art. 598º do C.P.C.
TERMOS EM QUE se solicita a V. Ex.as seja julgado procedente o recurso, seja revogado o despacho recorrido e, dest’arte, seja o mesmo substituído por outro que admita e defira o exercício do direito legal de preferência por parte do recorrente em 29 ABR 2019.

  Notificados os demais interessados, estes silenciaram.
  
  Foram colhidos os vistos.
  
  Cumpre, assim, apreciar e decidir.
  
II. FUNDAMENTAÇÃO
  
  É o seguinte o teor da decisão recorrida:
  «Como decorre da acta que antecede, já havia sido pedido que se relevasse um alegado direito de preferência da proponente K.
  Tal direito, como se referiu, não existe.
  Ele apenas ocorre em relação ao quinhão hereditário - art. 1970º do Código Civil.
  Não é o caso, pois que do que se trata aqui é da alienação de um bem concreto da herança e não de qualquer quinhão de um ou mais interessados. Se o requerente pretendia que o bem lhe fosse adjudicado não deveria ter anuído na sua venda, que constitui um dos modos de composição dos quinhões hereditários. - Cfr., por todos, Ac. Relação de Évora de 01.11.2018, proc.2644/16.0T8PTM.E1: “1. O art. 2130º do C.C. consagra o direito preferencial da alienação de quinhão hereditário e não de bens compreendidos em herança indivisa; 2. (….); 3. Nenhum interesse desse jaez se descortina no caso em que se procede (por acordo dos herdeiros) à venda de um bem da herança a terceiro”.
  Pelo exposto, uma vez mais, indefiro o exercício do alegado direito de preferência invocado por A, esposo da 1ª proponente.
  Custos do incidente com taxa de justiça fixada em 4UC.
  Notifique.».
  Nas suas conclusões de recurso o Recorrente fundamenta a sua pretensão no disposto no artº 1970º do C.Civ. e artº 968º do CPC, os quais rezam que:
«Artigo 1970.º
(Direito de preferência)
  1. Quando seja vendido ou dado em cumprimento a estranhos um quinhão hereditário, os co-herdeiros gozam do direito de preferência nos termos em que este direito assiste aos comproprietários.
  2. O prazo, porém, para o exercício do direito é de 2 meses a contar da comunicação para a preferência.».
  E,
«Artigo 968.º
(Exercício do direito de preferência)
  1. A preferência na alienação de quinhões de interessados na partilha pode ser exercida no processo de inventário, salvo se envolver a resolução de questões de facto cuja complexidade se revele incompatível com a tramitação daquele processo.
  2. Apresentando-se a preferir mais de um interessado, observa-se o disposto no n.º 3 do artigo 1308.º do Código Civil.
  3. O incidente suspende os termos do processo, a partir do momento em que deva ser convocada a conferência de interessados.
  4. O não exercício do direito de preferência no inventário não obsta a que se intente acção de preferência, nos termos gerais.
  5. Se for exercido o direito de preferência fora do processo de inventário, pode determinar-se, oficiosamente ou a requerimento de algum dos interessados directos na partilha, a suspensão do inventário, nos termos do artigo 223.º».
  Sobre esta matéria mostra-se oportuno transcrever o que a respeito escrevem João António Lopes Cardoso e Augusto Lopes Cardoso, em Partilhas Judiciais, Vol. II, 5ª Ed., Almedina, pág. 157 e sgts:
  «I. Importa neste parágrafo estudar o especial direito legal de preferência dimanante da alienação do quinhão hereditário, consagrado no art. 2130º CCiv., um dos muitos direitos legais de preferência que a nossa lei contempla.
  E, note-se bem, dizemos da alienação de quinhão hereditário e não de alienação de bens compreendidos em herança indivisa, porque, é sabido, a de pare especificada sem consentimento dos consortes é havida como disposição de coisa alheia (CCiv., analogicamente, art. 1408º-2 ex vi art. 892º) e, assim, ineficaz em relação aos demais co-herdeiros (res inter alios acta).
  II. Na vigência da lei substantiva de 1867 houve quem exceptuasse da preferência a dação em cumprimento, critério, porém, que o art. 2130º-1 do que o substituiu repudiou ao reportar-se expressa e exclusivamente àquelas duas formas de alienação.
  A outorga do direito de preferência restringe-se, pois, à alienação de quinhão em herança indivisa, mas não a toda e qualquer forma de alienação, antes tão-somente à venda ou dação em cumprimento desse quinhão.
  Por outro lado, a preferência outorgada só tem lugar quando o quinhão hereditário se transmite a estranho, ponto de vista que o mesmo normativo expressa e antes dele igualmente expressara o art. 1566º do Código de Seabra.
  Neste particular é seguro que como estranhos não se consideram os demais interessados na herança, pelo que a cessão de um dos co-herdeiros a outro ou ao meeiro não poderá objectivar a outorga do direito de preferência.
  É que o motivo determinante da preferência reside na passagem da propriedade comum (ou indivisa) para a propriedade singular, além de que, como já se acentuou, o cônjuge sobrevivo é herdeiro legitimário do cônjuge predefunto.
  III. O art. 1514º CPCiv. de 1939, enquanto se reportava a «bens pertencentes à herança», permitia supor que estabelecia uma preferência para a herança na alienação dos bens que dela fizessem parte.
Essa preferência desapareceu em 1961.».
  Como resulta das disposições legais citadas e do que ensina Lopes Cardoso a respeito, aos herdeiros apenas assiste o direito de preferência sobre a venda de quinhão hereditário por algum interessado na partilha.
  No entanto, tal como resulta do despacho recorrido, essa preferência não existe relativamente a bens da herança que venham a ser vendidos.
  E nem fazia sentido que esse direito existisse uma vez que nos termos do nº 1 do artº 990º do CPC apenas se pode proceder à venda de bens da herança por acordo unânime dos interessados.
  Se o interessado queria ficar com o bem bastava-lhe não acordar na venda e aguardar a licitação de bens nos termos do artº 1001º do CPC.
  Tendo sido acordado que se procedesse à venda, não há qualquer disposição legal de onde emane o invocado direito de preferência, realizando-se esta, no caso em apreço, de acordo com as regras da modalidade da venda ordenada.
  O Recorrente nas suas alegações e conclusões de recurso, salvo melhor opinião, faz alguma confusão entre o que se entende ou deve entender por quinhão hereditário e bem ou bens da herança.
  O facto da herança ter um único bem imóvel a partilhar não gera confusão entre o quinhão hereditário e o bem a partilhar, no sentido que o recorrente parece pretender de que cada herdeiro tenha uma quota sobre o(s) bem(ens) da herança.
  A herança é uma universalidade de facto, um património autónomo, sendo que, o activo e passivo da herança pertence a esta e não aos herdeiros.
  Os herdeiros têm apenas um direito à herança ou parte dela na medida do seu quinhão, da parte ideal que lhes cabe, isto é, na proporção que segundo as regras da sucessão lhes couber.
  Ou seja, os herdeiros não têm direito algum sobre os bens da herança, contrariamente ao que se passa com os comproprietários em regime de compropriedade.
  Quando no nº 1 do artº 1970º do C.Civ. se diz que co-herdeiros gozam do direito de preferência nos termos em que este direito assiste aos comproprietários, a referência a comproprietários é feita no sentido de que o direito de preferência de uns e outros (de co-herdeiros e comproprietários) é igual, mas não no sentido de que os co-herdeiros são comproprietários dos bens da herança, asserção que é errada face à natureza jurídica da herança.
  A herança em momento algum é uma compropriedade de bens. A herança é um património autónomo a quem a lei inclusivamente reconhece personalidade judiciária – artº 40º do CPC -.
  Neste sentido veja-se Acórdão deste Tribunal de Segunda Instância de 09.07.2015, Procº 644/2014 em cujo sumário se diz: «Tanto a jurisprudência, como a mais abalizada doutrina apontam no sentido de que só se adquirem os bens da herança após a partilha. Até à partilha, os co-herdeiros de um património comum, adquirido por sucessão mortis causa, não são donos dos bens que integram o acervo hereditário, nem mesmo em regime de compropriedade, pois apenas são titulares de um direito sobre a herança (acervo de direitos e obrigações) que incide sobre uma quota ou fracção da mesma para cada herdeiro, mas sem que se conheça quais os bens concretos que preenchem tal quota.».
  Em sentido igual vejam-se também Acórdãos deste TSI de 01.03.2012, Procº 753/2011 e de 09.07.2015, Procº 823/2014, decisões estas que acompanham inúmera Jurisprudência comparada dos Tribunais Superiores de Portugal, que por desnecessidade não se cita e Acórdão do Tribunal da Relação de 21.01.1976, citado em anotação 9 ao artº 2130º do C-Civil Anotado de Abílio Neto, 16º ed..
  Destarte, bem andou a decisão recorrida ao negar ao herdeiro e aqui recorrente o direito de preferência por este reclamado na venda do bem.
  
IV. DECISÃO

  Termos em que pelos fundamentos expostos, negando-se provimento ao recurso se mantém a decisão recorrida nos seus precisos termos.
  
  Custas a cargo do recorrente.
  
  Registe e Notifique.
  
  RAEM, 02 de Julho de 2020
  
  Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
  Lai Kin Hong
  Fong Man Chong
  
  



408/2020 CÍVEL 10