Processo nº 1188/2019
Data do Acórdão: 02JUL2020
Assuntos:
Negócio de compra e venda
Negócio usurário
Impugnação da matéria de facto
Fundamentos para a impugnação da decisão de facto
Prova
Thema probandum
Expressões conclusivas e valorativas
Elementos normativos
Factos instrumentais
Questão de facto
Questão de direito
SUMÁRIO
1. A prova consiste na mensagem contida nos meios de prova, capaz de demonstrar de per si factos materiais ou da qual se podem fazer inferir factos materiais com o recurso à lógica das coisas ou às regras da experiência de vida.
2. Tal mensagem pode ser extraída mediante o exame e a valoração dos meios de prova já constituídos e admitidos aos autos ou através da produção de prova a constituir pelo Tribunal, no âmbito da causa e para a causa.
3. A prova só pode incidir sobre factos, e em caso algum sobre conclusões e juízos valorativos que compete aos Tribunais formular na decisão de direito.
4. As expressões “idade muito avançada”, “crescentes dificuldades mentais de entendimento”, “condições de vulnerabilidade”, “progressivo isolamento”, se destituídas do suporte de factos materiais no contexto em que se encontram inseridas, em caso algum podem ser thema probandum.
5. Se é verdade que, por força do princípio da livre apreciação das provas consagrado no artº 558º do CPC, como regra geral, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, não é menos certo que a matéria de facto assente de primeira instância pode ser alterada nos termos e ao abrigo do disposto no artº 629º do CPC.
6. Apesar de a lei exigir sempre a objectivação e motivação da convicção íntima do Tribunal na fundamentação da decisão de facto, ao levar a cabo a sua actividade cognitiva para a descoberta da verdade material, consistente no conhecimento ou na apreensão de um acontecimento supostamente ocorrido no passado, o julgador não pode deixar de ser subjectivamente influenciado por elementos não explicáveis por palavras, nomeadamente quando concedem a credibilidade a uma testemunha e não a outra, pura e simplesmente por impressão recolhida através do contacto vivo e imediato com a atitude e a personalidade demonstrada pela testemunha, ou com a forma como reagiu quando inquirida na audiência de julgamento. Assim, desde que tenham sido observadas as regras quanto à valoração das provas e à força probatória das provas e que a decisão de facto se apresenta coerente em si ou se não mostre manifestamente contrária às regras da experiência de vida e à logica das coisas, a convicção do Tribunal a quo, colocado numa posição privilegiada por força do princípio da imediação, em princípio, não é sindicável.
7. O recurso ordinário existe para corrigir erro e repor a justiça posta em causa pela decisão errada. Para impugnar com êxito a matéria fáctica dada por assente na primeira instância, não basta ao recorrente invocar a sua discordância fundada na sua mera convicção pessoal formada no teor de um determinado meio de prova, ou identificar a divergência entre a sua convicção e a do Tribunal de que se recorre, é ainda preciso que o recorrente identifique o erro que, na sua óptica, foi cometido pelo Tribunal de cuja decisão se recorre.
8. Os julgadores de recurso, não sentados na sala de audiência para obter a percepção imediata das provas ai produzidas, naturalmente não podem estar em melhores condições do que os juízes de primeira instância que lidaram directamente com as provas produzidas na sua frente. Assim, o chamamento dos julgadores de recurso para a reapreciação e a revaloração das provas, já produzidas e/ou examinadas na 1ª instância, com vista à eventual alteração da matéria de facto fixada na 1ª instância, só se justifica e se legitima quando a decisão de primeira instância padecer de erros manifestamente detectáveis.
9. Para que possa abalar com êxito a convicção formada pelo Tribunal a quo com vista à revogação da decisão de facto e à sua ulterior modificação pelo Tribunal ad quem, é preciso que o recorrente identifique erro manifesto na valoração de provas e na fixação da matéria de facto, e não a simples divergência entre ele e o Tribunal no que diz respeito à valoração de provas ou à fixação da matéria fáctica. Integram em tais erros manifestos, inter alia, a violação de regras quanto à valoração de provas e à força probatória de provas, v. g. o não respeito à força vinculativa duma prova legal, e a contrariedade da convicção íntima do Tribunal a regras de experiência de vida e à lógica das coisas.
10. Não obstante a predominância do princípio dispositivo na matéria de ónus de alegar e de provar, os factos instrumentais com relevância à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa, mesmo não articulados nem feitos constar da matéria de facto assente, se resultantes da instrução e discussão da causa, podem e devem ser tidos em conta ex oficio pelo Tribunal na fundamentação da decisão de direito.
11. Tendo, na sequência do êxito da impugnação por via de recurso da matéria de facto fixada na 1ª instância, sido eliminadas dessa matéria as expressões “isolamento” em que se encontrava o pai do Réu, os autores “tomaram vantagem das referidas condições de vulnerabilidade e isolamento do pai do Réu a fim de obter vantagens patrimoniais”, por terem sido consideradas meramente valorativas, conclusivas e destituídas de qualquer suporte fáctico, não se pode manter a decisão de direito que anulou o negócio jurídico por usura, com fundamento alicerçado no juízo meramente conclusivo de que houve aproveitamento consciente e reprovável por parte dos Autores da situação de inferioridade e fraqueza que, na óptica do Tribunal a quo, advieram ao pai do Réu das suas condições de vulnerabilidade e isolamento em que se encontrava nos tempos imediatamente anteriores e no próprio momento da celebração do negócio jurídico.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 1188/2019
Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I
A e B, devidamente identificados nos autos, instauraram no Tribunal Judicial de Base contra a C, todos devidamente identificados nos autos, uma acção ordinária que veio a ser registada sob o nº CV2-16-0003-CAO e corria os seus termos no 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, pedindo que fossem declarados como legítimos e únicos proprietários da fracção autónoma identificada na petição inicial, que fosse declarada a ocupação pelo Réu como ilegal, abusiva, não titulada e de má-fé e que fosse ordenada a desocupação do Réu da fracção autónoma e a restituição aos Autores da fracção livre de pessoas e devoluta, assim como o ressarcimento dos danos causados aos Autores pela privação do uso e gozo da mesma.
Citado, veio o Réu contestar e deduzir pedido reconvencional da anulação do contrato de compra e venda da fracção autónoma, e, subsidiariamente, a condenação dos Autores a lhe pagar indemnização correspondente ao valor da fracção autónoma em causa.
Na sequência do despacho a fls. 316 e 317, o Réu pediu a intervenção principal provocada de D e E como seus associados.
Admitido o incidente do chamamento e deferida a intervenção dos chamados apenas como associados ao reconvinte, foram citados os chamados D e E, estes vieram declarar que aderiam e faziam seu o pedido reconvencional (vide as fls. 380, 438 e 439 dos p. autos).
Entretanto faleceu na pendência da acção o Autor B, que deu ao lugar ao incidente de habilitação, onde por despacho a fls. 33 e v. dos autos do incidente, foram habilitados A, F, G e H, todos identificados nos autos, para a prosseguição da causa na posição do Autor B.
A final, foi a acção julgada improcedente e procedente a reconvenção pela seguinte sentença:
I – Relatório:
A , titular do BIRPM n.º XXX, e B, titular do BIRPM n.º XXX, casados entre si no regime de comunhão de adquiridos, ambos com residência em Macau XXX;
veio intentar a presente
Acção Ordinária
contra
C, maior, ocupante do imóvel sito na XXX em Macau;
com os fundamentos apresentados constantes da petição inicial de fls. 2 a 12,
concluiu pedindo que fosse julgada procedente por provada a presente acção, e em consequência:
1. Fossem os Autores declarados como legítimos e únicos proprietários da fracção autónoma melhor descrita no art. 1.º da presente petição inicial;
2. Fosse a ocupação da fracção por parte do Réu declarada como ilegal, abusiva, não titulada e de má-fé; e
3. Fosse o Réu condenado a reconhecer que os Autores são titulares do invocado direito de propriedade; a desocupar e restituir aos legítimos e únicos proprietários, de imediato, a referida fracção livre e devoluta de pessoas e bens, e em bom estado de conservação; a ressarcir os Autores dos prejuízos patrimoniais sofridos pela ocupação indevida e ilegal da fracção desde o dia 1 de Setembro de 2014 até à efectiva restituição da fracção livre e devoluta de pessoas e bens, e que até à presente data perfazem o montante total de MOP$250.500,00.
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O Réu contestou a acção com os fundamentos constantes de fls. 66 a 81 e 330 a 334 dos autos
concluiu pedindo que fossem julgado improcedente os pedidos dos Autores e que estes fossem condenados no pedido reconvencional por si formulado.
Na sequência do despacho a fls. 316 a 317, vem o Réu pedir a intervenção principal provocada de D e E como associados do Réu.
Por despacho de 22 de Novembro de 2016 proferido a fls 364 e 364v, foi admitido o chamamento.
Citados os mesmos, estes não intervieram.
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Face ao falecimento do Autor, B, em 10 de Abril de 2017, por decisão de 20 de Novembro de 2017, proferida a fls. 33 e 33v nos autos de habilitação apensos aos presentes autos:
1ª – A, titular do BIRPM com o n.º XXX, residente em MacauXXX;
2ª – F, casada, titular do BIRPM com o n.º XXX, com residência em Macau na Taipa XXX;
3º - G, casado, portador do BIRPM com o n.º XXX, residente em Macau na XXX;
4º - H, divorciado, portador do BIRPM om o n.º XXX, residente em Macau na XXX;
foram habilitados para, em lugar do citado Autor, prosseguirem a acção.
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Este Tribunal é o competente em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e de legitimidade "ad causam".
O processo é o próprio.
Inexistem nulidades, excepções ou outras questões prévias que obstem à apreciação "de meritis".
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Procedeu-se a julgamento com observância do devido formalismo.
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II – Factos:
Dos autos resulta assente a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
Da Matéria de Facto Assente:
- Conforme a inscrição n.º 108480G do registo predial, a 1ª Autora, casada com o 2º Autor, é registada como proprietária da fracção autónoma “B13”, sita em Macau, na Avenida de Sidónio Pais, N.º 30-A/B, 13º andar “B”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º 20387 a fls. 77v. do Livro B44. (fls. 20 dos autos) (alínea A) dos factos assentes).
- O registo referido na al. A. tem por base a escritura pública de compra e venda outorgada em 22 de Abril de 2005, a fls. 81, do Livro 13 do Cartório da Notária Privada Luísa Empis de Bragança. (fls. 23 a 26 dos autos) (alínea B) dos factos assentes).
- No dia 23 de Abril de 2005, foi outorgada uma procuração no Cartório do Notário Privado Dr. Ricardo Sá Carneiro, pela qual os ora Autores constituíram sua bastante procuradora a sua filha F, maior (alínea C) dos factos assentes).
- A quem conferiram os mais amplos e plenos poderes relativamente à fracção autónoma referida na al. A., nomeadamente o de os representar em tribunal em quaisquer questões ou matérias relacionadas com a referida fracção autónoma ou os seus direitos sobre a mesma, e o de usar de todos os poderes e exercer todos os direitos que possuem na qualidade de proprietários (alínea D) dos factos assentes).
- Em Maio de 2014, o Sr. C faleceu (alínea E) dos factos assentes).
- Até à data presente, o Réu encontra-se a ocupar a fracção autónoma referida na al. A. (alínea F) dos factos assentes).
- Os Autores, por intermédio da sua bastante procuradora e dos seus mandatários, interpelaram o ora Réu através de carta registada com aviso de recepção datada de 24 de Agosto de 2015, solicitando-lhe que desocupasse e restituísse a referida fracção livre e devoluta de pessoas e bens no prazo de 15 (quinze) dias a contar da recepção dessa carta, conforme cópia da carta e aviso de recepção que se juntam como documento n.º 4 com a petição inicial (alínea G) dos factos assentes).
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Da Base Instrutória:
- Após a celebração da escritura referida em B) dos Factos Assentes, C, pai do Réu, continuou a viver na fracção autónoma como fazia até então sem pagar aos Autores qualquer contrapartida (resposta ao quesito 1º da base instrutória).
- A Autora e a sua procuradora, F, tinham uma boa relação de amizade pessoal com C (resposta ao quesito 2º da base instrutória).
- Por força do falecimento de C, os Autores, através da sua procuradora, entraram em contacto com o Réu e solicitaram que este desocupasse e lhas entregasse livre de pessoa e bens (resposta ao quesito 3º da base instrutória).
- No mês de Agosto de 2015, os Autores, por intermédio da sua procuradora, pediram novamente ao Réu que desocupasse a fracção e que a entregasses aos Autores livre e devoluta de pessoas e bens (resposta ao quesito 8º da base instrutória).
- O Réu recusou-se a fazê-lo (resposta ao quesito 9º da base instrutória).
- O Réu ocupa a fracção contra a vontade dos Autores e sem qualquer contrapartida, o que impede a que Autores a usassem e ocupassem (resposta ao quesito 10º da base instrutória).
- Não obstante o pedido dos Autores, o Réu continua a negar-se a desocupar a fracção autónoma, continuando a ocupá-la (resposta ao quesito 11º da base instrutória).
- A ocupação da fracção por parte do Réu impossibilita os Autores de a colocar no mercado de arrendamento (resposta ao quesito 12º da base instrutória).
- E receber as respectivas rendas (resposta ao quesito 13º da base instrutória).
- O valor de mercado das rendas mensais, entre Junho de 2014 e Setembro de 2015, para aquela fracção era de MOP$16.700,00 (resposta ao quesito 14º da base instrutória).
- O imóvel referido em A) dos factos assentes em Abril de 2005 valia MOP$1.649.000,00 (resposta ao quesito 15º da base instrutória).
- Depois da celebração da escritura pública referida em B) dos factos assentes, os Autores e a filha deles, F, não fizeram qualquer pedido de tradição do imóvel, nomeadamente através da entrega das respectivas chaves (resposta ao quesito 19º da base instrutória).
- O Réu tem permanecido na fracção autónoma após o óbito do seu pai (resposta ao quesito 21º da base instrutória).
- À data da escritura pública, o pai do Réu tinha 81 anos de idade (resposta ao quesito 22º da base instrutória).
- O pai do Réu passou a viver em progressivo isolamento (resposta ao quesito 25º da base instrutória).
- Esse isolamento deveu-se ao facto de morar sozinho na sua casa e à circunstância de a sua família residir fora de Macau (resposta ao quesito 26º da base instrutória).
- Os Autores e a sua filha e procuradora, F, bem conheciam da condição do pai do Réu e tomaram vantagem das referidas condições de vulnerabilidade e isolamento em que o pai do Réu se encontrava, a fim de obter vantagens patrimoniais nomeadamente adquirir a fracção “B13”, celebrando a escritura pública referida em B) dos factos assentes (resposta ao quesito 29º da base instrutória).
- Devido à sua idade e ao isolamento em que estava a viver, o pai do Réu celebrou a escritura pública referida em B) dos factos assentes (resposta ao quesito 30º da base instrutória).
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III – Fundamentos:
Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
Arrogando-se da qualidade de proprietário da fracção autónoma designada por “B13” sita em Macau na Avenida de Sidónio Pais, n.º 30ª/B, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º 20387 e aí registada a seu favor sob o n.º 108480G, vêm os Autores reivindicar o imóvel em questão por alegadamente o Réu ter estado a ocupá-lo sem qualquer título pedindo a declaração dos mesmos como proprietários do imóvel bem como a condenação do Réu a reconhecer esta qualidade dos Autores, a restituir-lhes o imóvel livre de pessoas e bens e a indemniza-los dos prejuízos sofridos.
Contestando a presente acção, o Réu reconhece que se encontra efectivamente a ocupar a fracção autónoma negando, contudo, a obrigação de entrega porque, segundo o Réu, os Autores não adquiriram validamente o imóvel.
Para fundamentar esse seu entendimento, alega que a fracção autónoma, objecto de reivindicação nos presentes autos, era do seu falecido pai que o comprara por MOP$454.700,00, preço por que a Autora alegadamente comprou ao pai do Réu mas que nunca pagaram. Mais defende que o seu pai nunca quis vender nem doar o imóvel a ninguém porque sempre lá viveu e era sua intenção deixá-lo aos seus três filhos, o Réu e os dois intervenientes, e que os Autores aproveitando-se da avançada idade, do progressivo isolamento, da deterioração das capacidades de querer e entender e da condição de vulnerabilidade e de dependência em que se encontrava o pai do Réu, fizeram com que este dispusesse do imóvel a seu favor para daí tirar vantagens excessivas e injustificadas.
Com base no alegado excepciona os pedidos dos Autores com fundamento na invalidade da compra e, em reconvenção, pede que seja anulada a compra e venda realizada entre estes e o seu pai e que seja cancelado registo predial de aquisição do imóvel a favor da Autora ou, subsidiariamente, que os Autores sejam condenados a pagar-lhe o valor efectivo do imóvel à data da compra e venda.
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Flui do acima exposto que o que está aqui primordialmente em causa é o pedido de reconhecimento do direito de propriedade alegadamente pertencente aos Autores e o da consequente restituição do imóvel alegadamente ocupada sem título pelo Réu.
Nos termos do artigo 1235º do CC, “1. O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertencer. 2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei.”
Segundo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça português de 7 de Fevereiro de 1995, BMJ, 444º, PG 618, “A acção dita de reivindicação é essencialmente uma acção declarativa comum, cujo núcleo consiste no pedido de entrega de uma coisa ao autor, alegadamente o seu proprietário, e no uso e detenção pelo réu.”
Desse preceito vê-se que os referidos pedidos formulados pelos Autores só procedem se os mesmos forem realmente proprietários da fracção autónoma por si indicada e o Réu estiver a ocupá-la sem título.
Quanto à questão relativa à existência ou não de título para fundamentar a ocupação, por se tratar de uma excepção à pretensão dos Autores, cabe ao Réu demonstrar que a sua ocupação é titulada.
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Conforme os factos assentes, mediante escritura pública outorgada em 22 de Abril de 2005, a Autora, casada com o Autor, adquiriu a fracção autónoma reivindicada pelo preço de MOP$454.700,00 e está registada como proprietária da mesma a qual continuou a ser ocupada pelo Réu mesmo depois de este ter sido interpelado para a restituir aos Autores.
Nos termos do artigo 7º do Código do Registo Predial, “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”
Perante essa presunção de titularidade a favor dos Autores e a efectiva ocupação da fracção autónoma por parte do Réu, deverão proceder os pedidos formulados pelos Autores?
Só se a defesa e reconvenção apresentadas pelo Réu não procederem.
Como foi já referido, o Réu excepciona o pedido dos Autores alegando que a compra e venda feita por estes era inválida e pede, com base nisso, que o negócio jurídico seja anulado e cancelado o respectivo registo.
Pelo que, urge analisar se assiste razão ao Réu quando impugna a compra e venda feita entre o seu pai e a Autora.
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Alega o Réu, em primeiro lugar, à data da compra e venda, o seu pai não tinha capacidade de quere e entender e não pretendia vender o imóvel fosse qual fosse o preço muito menos o indicado na escritura pública de compra e venda, preço bastante inferior ao valor de mercado do imóvel e nem sequer pago. O mesmo acontece com eventual doação do imóvel.
Feito o julgamento da matéria de facto, o Réu não logrou demonstrar que, à data da compra e venda, o seu pai não tinha capacidade de querer e entender, não pretendia vender o imóvel, que não foi pago o preço, nem que o seu pai não pretendia doar a fracção autónoma.
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Em segunda linha, sustenta o Réu que os Autores, aproveitando-se da avançada idade, do progressivo isolamento e da condição de vulnerabilidade e de dependência em que se encontrava o pai do Réu, fizeram com que este dispusesse do imóvel a seu favor para daí tirarem vantagens excessivas e injustificadas.
Conforme também os factos assentes, o imóvel foi vendido, em Abril de 2005, pelo preço de MOP$454.700,00 mas, nesta data, o mesmo valia MOP$1.649.000,00 e, à data da escritura pública, o pai do Réu tinha 81 anos de idade, passou a viver em progressivo isolamento devido à circunstância de a sua família residir fora de Macau e ao facto de morar sozinho na fracção autónoma reivindicada, onde sempre viveu, condição que os Autores e a sua filha e procuradora, F, bem conheciam tendo estes tomado vantagem das referidas condições de vulnerabilidade e isolamento a fim de obter vantagens patrimoniais nomeadamente adquirir a fracção autónoma.
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Nos termos do artigo 275º do CC “1. É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, aproveitando conscientemente a situação de necessidade, inépcia, inexperiência, ligeireza, relação de dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios que, atendendo às circunstâncias do caso, sejam manifestamente excessivos ou injustificados. 2. Fica ressalvado o regime especial estabelecido nos artigos 553.º e 1073.º.”
Segundo, Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição actualizada, Coimbra Editora, Limitada, pg 533 e 534, “… o legislador concede sob a designação de usura alguma relevância ao velho instituto da lesão … exigindo … a verificação de requisitos objectivos … e requisitos subjectivos. Devem, portanto, verificar-se requisitos objectivos: benefícios excessivos ou injustificados. Tem de haver uma desproporção manifesta entre as prestações. Só haverá benefícios excessivos ou injustificados, quando segundo todas as circunstâncias, a desproporção ultrapassa os limites do que pode ter alguma justificação. … Devem, igualmente, verificar-se requisitos subjectivos, a saber: 1º A exploração de situações tipificadas, que não é excluída pelo facto de a iniciativa do negócio provir do lesado; 2º Uma situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter.”
Para Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 1015 - 8ª edição, Almedina, pg 596, “A usura como vício complexo que é, afeta o negócio numa dupla dimensão: enquanto ato que põe em vigor uma relação privada e enquanto regulação posta em vigor pelo ato. Por isso, a usura é vício da vontade e vício do conteúdo. É vício da vontade enquanto o discernimento e a liberdade de decisão vítima da usura estão diminuídos. Mas isso não é suficiente: é necessário que haja um aproveitamento consciente e reprovável da situação de inferioridade da vítima e ainda que o negócio assim celebrado esteja desequilibrado injustificadamente. O negócio usurário, além de sofrer de um defeito de formação, sofre de um defeito de conteúdo e colide ainda com os bons costumes.”
Desses ensinamentos vê-se que, nos negócios usurários, não se está perante uma situação de ausência de vontade ou de divergência entre a vontade e a declaração, mas sim casos em que a vontade é patologicamente formada por causa das condições pessoais do declarante de que o declaratário se aproveita para daí conseguir ganhos manifestamente desequilibrados.
Ou seja, o instituto em questão não se destina a lidar com problemas de falta de vontade ou com a não correspondência entre a vontade e a declaração, mas antes tem em vista casos em que a vontade declarada corresponde ao que é querido pelo declarante mas que a liberdade do declarante foi constrangida durante o processo de formação da vontade. Assim, ainda que não tivesse sido dado como provado que o pai do Réu nunca tinha querido vender ou doar o imóvel, ou vender pelo preço indicado na escritura pública, o negócio jurídico pode estar viciado, desta feita, porque era usurário nos termos acima definidos.
Resta agora saber se assim foi.
Para o efeito, há que analisar se o pai do Réu se encontrava em algumas das condições elencadas na norma acima transcrita e se os Autores se aproveitaram destes estados e obtiveram vantagens excessivas. Em suma, cabe aqui aquilatar se os requisitos subjectivos e objectivos, nas palavras de Carlos Alberto da Mota Pinto, estão presentes na compra e venda impugnada pelo Réu.
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Ao nível do requisito objectivo, constata-se que houve um desfasamento grande entre o preço indicado na escritura pública que o pai do Réu declarou ter recebido e o valor de mercado do imóvel. O preço de venda correspondia apenas a 27,57% do valor de mercado do imóvel.
Analisadas as demais circunstâncias do negócio jurídico, como ensina Carlos Alberto da Mota Pinto, não se julga que a boa amizade pessoal que a Autora e a sua procuradora, F, mantinham com o pai do Réu pudesse justificar uma tão drástica redução do preço, para além de se estar em causa um imóvel onde o pai do Réu sempre viveu.
Dir-se-á que o facto de os Autores terem deixado que o pai do Réu ficasse a viver no imóvel durante 9 anos sem exigir a entrega do mesmo nem qualquer contrapartida deve ser tido em conta na ponderação a fazer quanto à justeza do preço acordado.
Contudo, nunca os Autores alegaram que o preço fora fixado abaixo do valor de mercado porque as partes tinham estipulado que a fracção autónoma seria apenas entregue depois da morte do vendedor. Conforme os Autores, consentiram que o pai do Réu usasse a fracção autónoma sem pagar qualquer contrapartida até ao momento em que os Autores pretendessem reavê-la porque mantinham com este uma excelente relação de amizade pessoal e já de longa data, facto este não demonstrado em audiência de discussão e julgamento.
Ademais, o equilíbrio das prestações deve ser aferida a partir do que ficou estabelecido no momento em que as partes acordaram nos termos da compra e venda não devendo posteriores vicissitudes não tidos em cona naquele momento entrar em linha de consideração nessa nossa pesquisa.
A isso acresce que, como foi já salientado na fundamentação dada pelo tribunal colectivo quando decidiu sobre a matéria de facto, não se afigura normal a um comprador comum, só por mera amizade, deixar o vendedor permanecer na coisa comprada por tantos anos sem qualquer contrapartida. Com efeito, uma cláusula contratual de não entrega imediata do imóvel, perfeitamente plausível, destina-se usualmente a permitir ao vendedor ultrapassar dificuldades de mudança temporárias e tem geralmente prazo certo bem definido.
Além disso, não se pode olvidar que, à data da venda, o pai do Réu tinha 81 anos de idade, vivia sozinho em progressivo isolamento porque não tinha acompanhamento regular dos seus familiares. Ora, essa condição do pai do Réu faria com que, à medida que o tempo ia passando, lhe fosse, objectiva e subjectivamente, cada vez mais difícil desocupar a casa onde sempre viveu para fixar-se num outro local. Como é que os Autores, compradores do imóvel e conhecedores dessa condição do pai do Réu, aceitariam aguardar sem qualquer garantia de uma desocupação do imóvel sem transtorno e atrasos indefinidos, quando quisessem a entrega da fracção autónoma?
Portanto, por nada justificar uma redução tão grande do preço, houve inequivocamente desproporção excessiva entre as prestações envolvidas.
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Quanto à razão desse desequilíbrio, está provado que foi devido à idade e ao isolamento em que estava a viver que o pai do Réu celebrou a escritura pública de compra e venda. Não há dúvidas de que essa condição do pai do Réu consubstancia um estado de fraqueza.
Mais acima foi já salientado que o Réu não logrou demonstrar que o seu pai não pretendia vender ou doar o imóvel. Assim, o acto de venda não pode deixar de ser considerado como correspondente à sua vontade.
Contudo, não é por isso que a validade do negócio não pode ser questionada porque, da articulação das circunstâncias analisadas mais acima, pode-se concluir que o discernimento e a liberdade de decisão do pai do Réu estavam diminuídos.
Com efeito, mais acima entendeu-se que, à data do negócio, o estado de fraqueza em que se encontrava o pai do Réu levou-o a vender o imóvel à Autora por um preço excessivamente baixo. Houve, portanto, um constrangimento na vontade do pai do Réu no processo de formação da sua vontade de vender o imóvel.
Resta saber se isso foi abusivamente aproveitado pela Autora quando comprou a fracção autónoma, ou seja, se houve “um aproveitamento consciente e reprovável da situação de inferioridade da vítima” por parte da Autora, nas palavras de Pedro Pais de Vasconcelos.
Posta a questão nesses termos, a resposta encontra na matéria dada por assente. Pois, consta da matéria provada que os Autores e a sua filha e procuradora, F, bem conheciam as condições de vulnerabilidade e isolamento em que se encontrava o pai do Réu e tinham tomado vantagem desta condições a fim de obter vantagens patrimoniais nomeadamente adquirir a fracção autónoma.
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Com o expendido, verifica-se todos os requisitos previstos no artigo 275º do CC estão presentes no presente caso sendo, portanto, a compra e venda celebrada entre a Autora e o pai do Réu anulável.
Contra essa eventualidade, defendem os Autores que o Réu, por ser mero herdeiro do seu pai, não tem legitimidade para arguir a citada invalidade além de o prazo de arguição se encontrar já caducado.
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No que concerne à legitimidade, o artigo 280º, nº 1, do CC só atribui legitimidade para arguir a anulabilidade às pessoas em cujo interesse a lei a estabelece.
Flui do acima exposto que o vício de que padece o negócio jurídico sub judice tem a ver com o aproveitamento do estado de fraqueza a que foi sujeito o pai do Réu que o levou a ficar obrigado a uma prestação substancialmente mais valiosa em troca de uma prestação de muito menor valor. Trata-se, inquestionavelmente, de um regime destinado a proteger os interesses do pai do Réu dotando este da necessária legitimidade de arguir a anulabilidade.
Sendo o Réu filho da vítima, pode-se colocar a questão de saber se a este assiste o direito de invocar o vício como vem agora equacionado pela Autoras e os habilitados.
Sobre esse problema, os despachos proferidos a fls 316 a 316v e 364 a 364v não podem ser mais claros. Com efeito, com o falecimento do pai do Réu, o direito de arguir a anulabilidade transmitiu aos seus herdeiros como qualquer direito transmissível por morte, sendo estes herdeiros o Réu e os dois Intervenientes, D e E.
Também assim o entende Pedro Pais de Vasconcelos, ob. cit., pg 651, “As anulabilidades são tipicamente regimes jurídicos de protecção, estatuídos em benefício de certas pessoas e a legitimidade para anular é restrita a essas mesmas pessoas ou aos seus representantes ou herdeiros.”
Improcede, pois, os argumentos aduzidos pelos Autora quanto à ilegitimidade do Réu, ou melhor, do Réu e dos Intervenientes.
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No que diz respeito à caducidade do direito de anulação, conforme ainda o citado artigo 280º, nº 1, do CC que a anulabilidade deve ser arguida dentro do prazo de um ano contado a partir da cessação do vício.
O negócio jurídico impugnado foi celebrado em 22 de Abril de 2005 e o pedido de anulação foi formulado com a contestação do Réu apresentado em 14 de Março de 2016.
Mesmo sem indagar pela data da cessação do vício que não pode deixar de ter cessado com a morte do pai do Réu em Maio de 2014, pode-se afirmar que o prazo de impugnação caducou quando o pedido de anulação foi formulado.
Contudo, dispõe o artigo 280º, nº 2, do CC que “Enquanto, porém, o negócio não estiver cumprido, pode a anulabilidade ser arguida, sem dependência de prazo, tanto por via de acção como por via de excepção.”
Conforme Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, pg 264, “Cessa o limite do prazo, nos termos do nº 3 (o correspondente ao nº 3 do artigo 280º do CC de Macau), se o negócio ainda não foi cumprido, como se, por exemplo, não foi ainda entregue a coisa vendida ou entregue o prelo, num contrato de compra e venda anulável.”
Flui da exposição feita que o negócio jurídico não foi cumprido porque nunca houve entrega da fracção autónoma vendida.
Pelo que, mais uma vez improcede a excepção arguida pelos Autores.
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Assente que a compra e venda é anulável, procede o pedido reconvencional de anulação formulado pelo Réu de que os Intervenientes são seus associados.
Mais pede o Autor que seja cancelado o registo de aquisição a favor da Autora fundado na referida compra e venda.
Sendo a compra e venda inválida nos termos acima definidos, é manifesto que o registo feito com base neste negócio não pode manter-se.
Procede, pois, também esse pedido.
Julgado procedente os pedidos principais do Réu de que os Intervenientes são seus associados, fica precludida a necessidade de apreciar o pedido subsidiário formulado pelo mesmo.
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Quanto aos pedidos formulados pelos Autores, constata-se que, uma vez anulada a compra e venda e cancelamento o registo de aquisição a favor da Autora, tanto a qualidade de proprietários como a presunção de titularidade de que estes gozavam no que se refere à fracção autónoma reivindicada deixa de ter qualquer suporte jurídico.
Consequentemente, por faltar aos Autores a titularidade necessária para a procedência do pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre o referido imóvel e do pedido de restituição, estes seus pedidos não podem deixar de improceder.
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Também por não ter sido reconhecida aos Autores a qualidade de proprietários da fracção autónoma, não se pode qualificar a ocupação do Réu como ilegítima perante os Autores.
Assim, o pedido de indemnização formulado pelos mesmos com fundamento na essa ocupação deve também ser julgado improcedente.
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IV – Decisão:
Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga improcedente a acção e procedente a reconvenção e, em consequência, decide:
1. Julgar improcedentes os pedidos formulados pela Autora, A e os Habilitados, A, F, G e H, contra o Réu, C;
2. Anular a compra e venda da fracção autónoma “B13”, sita em Macau, na Avenida de Sidónio Pais, n.º 30-A/B, 13º andar “B”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º 20387 a fls. 77v. do Livro B44, feita, em 22 de Abril de 2005, entre C e a Autora, através da escritura pública outorgada, a fls 81, do Livro 13, do Cartório da Notária Privada Luísa Empis de Bragança; e
3. Ordenar o cancelamento do registo de aquisição fundado na referida compras e vendas efectuado pela inscrição número 108480G, na Conservatória do Registo Predial;
Custas pela Autora e pelos habilitados.
Registe e Notifique.
Não se conformando com o decidido, vieram os Autores recorrer da mesma concluindo e pedindo:
I. Através do presente recurso pretendem os Recorrentes impugnar o despacho de fls. 445 e seguintes que indeferiu a reclamação da selecção da matéria de facto levada à Base Instrutória, porquanto entendem os Recorrentes que deverão ser eliminados da Base Instrutória os factos vertidos nos quesitos 21º a 25º, 29º e 30º, por se tratar de matéria conclusiva;
II. Pretendem ainda os Recorrentes impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto vertida nos quesitos 1º, 2º, 29º e 30º da Base Instrutória, porquanto da prova produzida em sede das várias sessões de audiência de discussão e julgamento nunca poderiam os referidos quesitos merecer as respostas que lhe foram conferidas pelo douto Tribunal a quo;
III. A decisão recorrida ao decidir como decidiu fez uma incorrecta aplicação do disposto no artigo 275.º do CC, porquanto a compra e venda celebrada entre Autores, ora Recorrentes, e o pai do Réu não consubstancia um negócio usurário, e, por conseguinte, nunca poderia ser anulada com esse fundamento/vício, e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 280.º do CC, pois que um eventual direito do Réu a anular a referida venda já há muito que caducou.
IV. Os Recorrentes vieram reclamar contra a selecção da matéria de facto integrada na base instrutória com fundamento em manifesta deficiência, requerendo a eliminação dos quesitos 21º a 25º, 29º e 30º da Base Instrutória, porém, o Douto Tribunal a quo veio a julgar improcedente a reclamação dos Recorrentes por despacho de fls. 445 e seguintes;
V. Os referidos quesitos contêm conceitos vagos e imprecisos, como sejam "condições de vulnerabilidade" e "isolamento";
VI. Nos termos do artigo 430.º, n.º 1 do CPC, o juiz, ao fixar a base instrutória, selecciona a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, que deva considerar-se controvertida.
VII. Os factos abrangem, para este efeito, as ocorrências concretas da vida real, bem como o estado, a qualidade ou situação real das pessoas ou das coisas;
VIII. O certo é que os aludidos quesitos 21º a 25º, 29º e 30º da Base Instrutória não estão em consonância com o estrito critério de selecção de matéria de facto, previsto no artigo 430.º do CPC, e ao abrigo do qual só devem ser especificados ou quesitados factos materiais simples e não juízos de valor ou conclusões extraídas de realidades concretas.
IX. Pelo exposto, os quesitos 21º a 25º, 29º e 30º da Base Instrutória, por se reportarem a conceitos vagos, imprecisos e a matéria conclusiva, são processualmente inadmissíveis, pelo que não deveriam ser incluídos na Base Instrutória.
X. A selecção da matéria de facto integrada na Base Instrutória mostrou-se assim deficiente, devendo ser dado provimento à reclamação ao Despacho Saneador apresentada pelos ora Recorrentes, revogando-se o despacho de fls. 445 que veio indeferir essa mesma Reclamação, e em consequência deverão ser eliminados da Base Instrutória os factos vertidos nos quesitos 21º a 25º, 29º e 30º, tudo ao abrigo do disposto no artigo 430º, n.º 3 do CPC.
XI. No vertente processo, foi determinada a documentação das declarações prestadas na audiência de julgamento, existindo por isso suporte de gravação, o que permitirá a este Venerando Tribunal de Segunda Instância melhor avaliar, e decidir, sobre o erro na apreciação da prova, aqui expressamente se requerendo a reapreciação da matéria de facto, nos termos admitidos no artigo 629.º do CPC.
XII. Os Recorrentes, ao invocar no presente recurso o erro na apreciação da prova, que, na sua óptica, inquina a decisão proferida pelo douto Tribunal a quo, não pretendem apresentar apenas uma simples discordância relativamente à interpretação dos factos feita por aquele douto Tribunal, tendo bem presente o dispositivo do artigo 558.º do CPC, e a natureza insindicável da livre convicção relativamente à apreciação da prova efectuada pelo Tribunal recorrido, e estando bem cientes da jurisprudência firmada nos Tribunais Superiores da RAEM;
XIII. A verdade é que, é entendimento dos Recorrentes que tal erro de julgamento é manifesto na situação dos autos, e que o vício apontado à decisão recorrida resulta, por si só, dos próprios elementos constantes dos autos, ou com recurso às regras da experiência comum;
XIV. Se é verdade que, por força do princípio da livre apreciação das provas consagrado no artigo 558.º, n.º 1 do CPC, o Tribunal aprecia livremente as provas, segundo a sua prudente convicção dos factos, não é menos verdade que a matéria de facto assente em primeira instância pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 629.º do CPC, quando, analisada a prova produzida em primeira instância, nomeadamente atendendo aos depoimentos das testemunhas prestados em audiência de julgamento e à prova documental carreada para os autos, vislumbra-se um qualquer erro grosseiro e manifesto por parte do Tribunal recorrido na análise dessa prova, isto é, um erro manifesto na apreciação da matéria de facto;
XV. O princípio da livre apreciação plasmado no artigo 558.º, n.º 1 do CPC não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova, isto é, a livre apreciação da prova não equivale a uma apreciação arbitrária da prova;
XVI. O Tribunal a qua não valorou correctamente os depoimentos das testemunhas inquiridas na audiência de julgamento, pelo que existe um erro notório e manifesto na apreciação da prova produzida, por parte desse Tribunal, que inquina a decisão recorrida de (manifesto e grosseiro) erro de julgamento;
XVII. Na resposta aos quesitos os quesitos 1º e 2º da base instrutória o Douto Tribunal a quo não deu como provado que os Autores consentiram que o pai dos recorridos usasse a fracção autónoma na condição que esse empréstimo subsistisse até ao momento em que os Autores pretendessem reaver a fracção e sem que tenha sido estipulado prazo certo para a sua restituição.
XVIII. Também não deu como provado que esse empréstimo tenha resultado da relação pessoal próxima que mantinham.
XIX. De acordo com a prova produzida, designadamente do depoimento prestado por I, resulta que foi intenção do pai do Recorrido vender a sua fracção à filha dos Autores pelo preço a que a mesma foi vendida. Essa intenção resulta da relação próxima de amizade que havia entre eles, e resulta também claro o que foi acordado quanto à permanência do pai do Recorrido na casa.
XX. Não se tratou de um qualquer incumprimento contratual (qual seja a falta da prestação do vendedor em entregar o imóvel), nem uma qualquer recusa nessa entrega;
XXI. Resulta do depoimento prestado por I, genro dos Autores a explicação em detalhe do acordo celebrado entre os Autores, através da sua procuradora, e o pai do Recorrido. - cfr. passagem gravada em 19.09.2018 aos 05 minutos e 35 segundos até 8 minutos e 40 segundos do cd 1 tradutor 1 excerto 15.25.53; passagem gravada em 19.09.2018 aos 09 minutos e 40 segundos até 12 minutos e 50 segundos do cd 1 tradutor 1 excerto 15.25.53; passagem gravada em 19.09.2018 aos 43 minutos e 44 segundos do cd 1 tradutor 1 excerto 15.25.53;
XXII. E se é indubitável que foi intenção do pai do Recorrido vender a fracção em causa à filha dos Autores, pelo preço que vendeu, porquanto tais factos foram dados por assentes pelo Tribunal a quo, não resulta dos depoimentos das testemunhas, que o pai do Recorrido se tenha recusado a entregar a fracção aos Autores ou que nela não habitasse por qualquer outra razão que não fosse pelo consentimento dos Autores;
XXIII. O pai do Recorrido e a filha dos Autores cultivaram desde muito cedo uma relação de amizade muito próxima, relação essa que a determinado momento passou a ser uma relação de padrinho / afilhada. Foi vasta a prova produzida nesta matéria, designadamente as fotografias juntas em audiência de julgamento e que foram explicadas pela testemunha I;
XXIV. Nenhum facto foi alegado e nenhuma prova foi produzida que descredibilize a relação de amizade entre o pai do Recorrido e a filha dos Autores.
XXV. O Douto Tribunal a quo teria que apurar factos concretos que diminuíssem a importância dos afectos, e teria que apurar factos concretos que negassem o consentimento, aliás acordado, dos Autores para que o pai do Recorrido continuasse a usar a fracção;
XXVI. Seria necessário apurar factos que abalassem esse acordo e esses factos não foram alegados nem demonstrados.
XXVII. Os depoimentos prestados pelas testemunhas, do designadamente do depoimento prestado por I, são suficientes para que se possa dar uma resposta diferente aos quesitos 1º e 2º, devendo dar-se como provado que os Autores, através da sua bastante procuradora, consentiram que após a celebração da escritura pública o pai do Recorrido usasse a fracção em causa sem pagar aos Autores qualquer contrapartida, fazendo-o devido à excelente relação de amizade pessoal e já de longa data, e sob a condição de que o empréstimo da fracção apenas subsistiria até ao momento em que os Autores pretendessem reaver da fracção.
XXVIII. Da prova produzida em sede de julgamento, designadamente do depoimento prestado pelas testemunhas I, J e K, conjugada com os demais elementos dos autos, designadamente da informação prestada pela Direcção dos Serviços de Finanças de fls. 493, teriam necessariamente de ser negativas as respostas conferidas aos quesitos 29º e 30º, pelo que estamos perante um claro erro de julgamento.
XXIX. Se ficou claramente demonstrado que a vontade do pai do Recorrido era a de vender a fracção à filha dos Autores pelo preço pelo qual acabou por vender, já não será aceitável que se entenda que o mesmo tomou essa decisão por estar sujeito a uma condição de vulnerabilidade, e que os Autores, ou a sua filha, tomaram proveito dessa situação;
XXX. Do depoimento prestado por I resulta que o pai do Recorrido gozava de boa saúde e era uma pessoa activa e lúcida. - Passagem gravada em 19.09.2018 aos 13 minutos e 12 segundos até 16 minutos e 32 segundos do cd 1 tradutor 1 excerto 15.25.53; passagem gravada em 19.09.2018 aos 24 minutos e 23 segundos até 29 minutos e 56 segundos do cd 1 tradutor 1 excerto 15.25.53;
XXXI. Também a testemunha J confirmou i) que o pai do Recorrido, aquando da venda da fracção em causa, era uma pessoa activa, trabalhava como engenheiro no Hotel Lisboa, tendo-se aposentado muito depois, tocava numa banda de música, era uma pessoa lúcida e de boa saúde, ii) que foi real a intenção do pai do Recorrido em vender a fracção aos Autores pelo preço a que foi vendido, iii) e que em momento algum o pai do Recorrido se sentiu enganado pelos Autores ou pela filha destes na venda da fracção. - passagem gravada em 19.09.2018 aos 1 hora 05 minutos e 31 segundos 1 hora 08 minutos e 54 segundos do cd 1 tradutor 1 excerto 15.25.53; passagem gravada em 19.09.2018 aos 1 hora 18 minutos e 00 segundos 1 hora 21 minutos e 11 segundos do cd 1 tradutor 1 excerto 15.25.53; passagem gravada em 19.09.2018 aos 1 hora 22 minutos e 33 segundos até 1 hora 24 minutos e 04 segundos do cd 1 tradutor 1 excerto 15.25.53; passagem gravada em 19.09.2018 aos 1 hora 42 minutos e 14 segundos até 1 hora 47 minutos e 11 segundos do cd 1 tradutor 1 excerto 15.25.53; passagem gravada em 19.09.2018 aos 1 hora 50 minutos e 14 segundos até 1 hora 55 minutos e 19 segundos do cd 1 tradutor 1 excerto 15.25.53; passagem gravada em 19.09.2018 aos 1 horas 56 minutos e 00 segundos até 2 horas 00 minutos e 38 segundos do cd 1 tradutor 1 excerto 15.25.53; passagem gravada em 19.09.2018 aos 00 minutos até 2 minutos e 15 segundos do cd 1 tradutor 1 excerto 17.30.47; passagem gravada em 19.09.2018 aos 3 minutos e 05 segundos até 10 minutos e 00 segundos do cd 1 tradutor 1 excerto 17.30.47
XXXII. Também do depoimento da testemunha K, pessoa que acompanhou o pai do Recorrido durante muitos anos, que o conhecia há mais de 15 anos, resulta a confirmação de que o pai do Recorrido era uma pessoa lucida, activa, sem problemas de saúde não obstante a sua idade - Passagem gravada em 19.09.2018 aos 28 minutos e 07 segundos até final do cd 1 tradutor 1 excerto 17.30.47; Passagem gravada em 19.09.2018 cd 1 tradutor 1 excerto aos 0 minutos e 00 segundos até 02 minutos e 02 segundos do cd 1 tradutor 1 18.01.03; Passagem gravada em 19.09.2018 cd 1 tradutor 1 aos 12 minutos e 45 segundos até 12 minutos e 40 segundos do cd 1 tradutor 1 excerto 18.03.41
XXXIII. Dos depoimentos transcritos, não contrariados por nenhum dos documentos juntos aos autos, nunca poderia o douto Tribunal a quo ter dado por provado que o pai do Recorrido se encontrava em condições de vulnerabilidade e isolamento e que os Autores, ora Recorrentes, e a sua filha e procuradora, lo lok Fong, bem conheciam da condição do pai do Réu, ora Recorrido, e tomaram vantagem dessa condição a fim de obter vantagens , patrimoniais;
XXXIV. Do depoimento das testemunhas supra transcritos, resulta de forma inequívoca que no momento da celebração da escritura publica de compra e venda: i) o pai do Recorrido era uma pessoa activa, trabalhava como engenheiro no Hotel Lisboa, tendo-se aposentado muito depois; ii) o pai do Recorrido era uma pessoa lúcida e de boa saúde; iii) foi real a intenção do pai do Recorrido em vender a fracção aos Autores por um preço abaixo do preço de mercado; iv) tinha perfeita consciência do negócio em si e o mesmo correspondeu à sua vontade;
XXXV. Mais ficou confirmado que em momento algum o pai do Recorrido se sentiu enganado pelos Autores ou pela filha destes na venda da fracção;
XXXVI. Os depoimentos das testemunhas supra transcritos encontram-se comprovados pelos documentos juntos aos autos, designadamente pela informação prestada pela Direcção dos Serviços de Finanças de fls. 493 que o pai do Recorrido trabalhou até ao ano de 2010 como engenheiro técnico de electricidade / máquinas;
XXXVII. Analisada a queixa-crime alegada e junta pelo Recorrido, aliás intentada a um mês da morte seu pai, os factos criminais por si inventados dizem tão só respeito a um desvio de dinheiro, e em momento algum se refere que tais factos criminais dizem respeito à aquisição por parte dos Recorrentes da fracção em causa.
XXXVIII. E se é certo que a compra e venda da fracção dos Autores foi celebrada no ano de 2005, a verdade é que teria o pai do Réu muito tempo para agir, quer no plano criminal, quer no plano civil, caso se sentisse enganado, ou caso sentisse que os Autores, ou a sua filha, pudessem ter aproveitado da sua alegada situação de vulnerabilidade e isolamento, o que nunca veio a acontecer.
XXXIX. Nesse mesmo processo-crime foi determinado pelo Digno Magistrado do Ministério Público o seu arquivamento por não resultarem provados quaisquer factos que consubstanciassem a prática de crime de burla por parte das ali denunciadas, e feita a reclamação hierárquica e realizadas diligências de prova suplementares, veio o Ministério Público novamente a determinar o seu arquivamento, por despacho proferido no processo de Instrução n.º PCI-081-18-1º;
XL. É assim manifesto o erro de julgamento da matéria de facto levado a cabo pelo Tribunal a quo, o qual veio a ter uma influência nefasta na aplicação do Direito ao caso concreto;
XLI. A alteração da decisão do Tribunal a quo sobre a matéria de facto implicará necessariamente uma alteração da aplicação do Direito, conduzindo naturalmente à procedência da pretensão dos Recorrentes e à improcedência das pretensões do Recorrido.
XLII. Constando dos autos todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre a matéria de facto - quais sejam documentos e depoimento das testemunhas supra transcritos - está esse Venerando Tribunal na condição de modificar a decisão do Tribunal de Primeira Instancia sobre a matéria de facto, merecendo os quesitos 29º e 30º da base instrutória resposta negativa.
XLIII. O Recorrido não logrou provar os requisitos do alegado negócio usurário;
XLIV. É entendimento unânime da doutrina que o negócio usurário, à luz dessa redacção, apenas se verifica reunindo-se que estejam os seguintes requisitos: i) uma situação de inferioridade do declarante, ii) uma actuação consciente do declaratário e iii) manifesto excesso ou manifesta injustiça do proveito;
XLV. Os requisitos deste instituto são deveras estritos e rigorosos, e só em casos extremos e patentes se têm por verificados;
XLVI. É necessário que haja um reprovável e consciente aproveitamento, por parte do usurário, de uma situação de inferioridade ou de carência do lesado, com o intuito de deste obter um benefício manifestamente excessivo ou injustificado;
XLVII. Tem de haver, pois, uma conduta manifestamente censurável do usurário que, por contrária aos padrões éticos da boa-fé e morais, e por se distanciar da própria natureza das coisas, deva ser "retirada" do universo jurídico;
XLVIII. No presente caso, e salvo o devido respeito, não foram alegados nem sequer provados factos concretos que sustentem os referidos requisitos legais dos negócios usurários;
XLIX. No que ao requisito objectivo da usura diz respeito, e não obstante o preço de venda inferior ao valor de mercado, o certo é que apenas se tem por verificado o requisito objectivo da usura quando a relação valorativa entre as prestações revelar um desequilíbrio que exceda os limites normais dos padrões típicos de valor vigentes no mercado e quando não haja uma causa justificativa atendível para esse desequilíbrio;
L. Atendendo às circunstâncias do caso, mormente à boa relação de amizade pessoal devidamente provada nos autos, e não tendo sido provado que o pai do Recorrido não pretendia vender o imóvel, a redução do preço de venda encontra-se plenamente justificada, não se verificando uma desproporção, um desequilíbrio, manifestamente excessivo ou injustificado entre as prestações envolvidas;
LI. Não obstante a idade do pai do Recorrido, tal, por si só, é manifestamente insuficiente para se concluir que, aquando da celebração da compra e venda, o pai do Recorrido se encontrava numa situação ou estado de inferioridade negocial, seja por necessidade, inexperiência, relação de dependência, inépcia, ligeireza ou fraqueza de carácter, que o incapacitava compreender o negócio jurídico, ou que não era sua intenção vender o imóvel aos Recorrentes;
LII. O pai do Recorrido estava perfeitamente lúcido no momento da escritura, era uma pessoa activa profissionalmente e socialmente, e quis efectivamente vender o imóvel aos Recorrentes pelo preço de venda que foi declarado e pago pelos Recorrentes, não se vislumbrando qualquer constrangimento na vontade do pai do Recorrido no processo de formação da sua vontade de vender o imóvel;
LIII. De igual modo, não houve da parte dos Recorrentes nenhuma exploração ou aproveitamento consciente e reprovável de uma situação de inferioridade do pai do Recorrido;
LIV. Essa exploração/aproveitamento consciente da situação de inferioridade do lesado exige que o usurário saiba que a sua vítima está numa situação de inferioridade, com discernimento ou liberdade diminuída, que ele próprio está numa correspondente situação de superioridade, de vantagem, que lhe permita obter à custa daquele os benefícios excessivos ou injustificados de que fala a lei, e que o queira fazer;
LV. O limite e o critério há-de ser encontrado nos padrões éticos da boa-fé, nos moldes do artigo 227.º do Código Civil;
LVI. Para que estejamos perante um negócio usurário importa a verificação dos seguintes requisitos: i) o conhecimento por parte do usurário que a sua vítima está numa situação de inferioridade, com discernimento ou liberdade diminuída; ii) o usurário está numa correspondente situação de superioridade, de vantagem; iii) obter à custa da vítima os benefícios excessivos ou injustificados;
LVII. O Recorrido não cumpriu com o seu ónus de alegação no que à verificação destes requisitos diz respeito, em clara violação do princípio do dispositivo consagrado no artigo 5º do CPC;
LVIII. Os poucos factos, e ainda para mais conclusivos, que foram alegados para invocar essa suposta situação de inferioridade, de falta de discernimento ou liberdade diminuída, não foram sequer provados;
LIX. Não resulta dos depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de julgamento que os Recorrentes ou a sua filha tivessem conhecimento dessa suposta condição de vulnerabilidade ou isolamento. Essa condição pura e simplesmente não existia;
LX. Nada resulta da prova produzida que os Autores, ou a sua filha, estivessem numa situação de superioridade ou de vantagem em relação ao pai do Recorrido;
LXI. Tendo por certo que o limite e o critério para a verificação destes requisitos há-de ser encontrado nos padrões éticos da boa-fé, nos moldes do artigo 219.º do Código Civil, em conformidade com o acima dito quanto ao julgamento da matéria de facto, podemos concluir que o Tribunal a quo não estava munido de elementos que lhe permitisse concluir que os Recorrentes, "tomaram vantagem das referidas condições de vulnerabilidade e isolamento em que o pai do Réu se encontrava, a fim de obter vantagens patrimoniais nomeadamente adquirir a fracção "B13", celebrando a escritura pública";
LXII. Não existem elementos nos autos que permitissem ao Tribunal a quo concluir que os Recorrentes teriam tido consciência de que estavam a explorar uma situação de inferioridade e dependência do pai do Recorrido, ou intenção de dela se aproveitarem, a fim de obter benefícios excessivos ou injustificados;
LXIII. Ao decidir como decidiu, o douto Tribunal a quo incorreu em erro de direito, violando o disposto no artigo 275.º do CC;
LXIV. Caso se entenda que a compra e venda celebrada entre Recorrentes e o pai do Recorrido é anulável por se encontrar inquinada do vício de usura, por verificados os requisitos subjectivos e objectivos do artigo 275.º do CC, o que por mero dever de patrocínio se admite, sempre se diga que, o prazo de arguição dessa invalidade já havia caducado;
LXV. O negócio jurídico objecto dos presentes autos foi celebrado no dia 22 de Abril de 2005, sendo que o ora Recorrido apenas pediu a respectiva anulação no dia 14 de Março de 2016, em sede de contestação, ou seja, decorridos mais de dez anos depois da venda;
LXVI. Não tendo sido arguida a anulabilidade do negócio no prazo de um ano, o respectivo direito extingue-se pelo seu não exercício;
LXVII. São razões de segurança e certa jurídica que justificam inteiramente esta limitação temporal para arguição do vício que inquina o negócio jurídico e que se enseja ver-se anulado;
LXVIII. A expressão contida no n.º 2 do artigo 287.º do Código Civil, i.e., "o negócio não estiver cumprido", reporta-se claramente a uma situação de incumprimento das obrigações que vinculam as partes;
LXIX. Nos presentes autos, os Recorrentes pagaram o preço ao pai do Recorrido, e consentiram, através da sua bastante procuradora, e dada a excelente relação de amizade pessoal e já de longa data, que após a celebração da escritura pública o pai do Recorrido usasse a fracção em causa sem receber qualquer contrapartida;
LXX. Mais acordaram as partes que o "empréstimo" da fracção ao pai do Recorrido apenas subsistiria até ao momento em que os ora Recorrentes pretendessem reaver a fracção, fosse por que motivo fosse.
LXXI. O direito de aquisição dos Recorrentes foi devidamente registado na conservatória do registo predial.
LXXII. Dúvidas não restam que o contrato de compra e venda cumpriu-se na íntegra, e o título desse mesmo cumprimento é a celebração da escritura pública de compra e venda, através da qual, os Recorrentes declararam que compraram e o pai do Recorrido declarou que lhes vendeu, a fracção em causa, mais tendo declarado que lhe foi pago na íntegra o preço;
LXXIII. Entre os Recorrentes e o pai do Recorrido foi celebrado um contrato de comodato, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1057.º do CC, não tendo sido convencionado prazo certo para a restituição nem determinado o uso da coisa,
LXXIV. Pelo que, com o falecimento do pai do ora Recorrido ocorreu a caducidade do contrato de comodato, nos termos do artigo 1069.º do CC;
LXXV. Não estamos perante qualquer incumprimento contratual por parte do pai do Recorrido. Nem esse facto resulta demonstrado;
LXXVI. O n.º 1 do artigo 280.º do CC estabelece uma limitação temporal de 1 (um) ano para a arguição da anulabilidade do negócio jurídico, com fundamento num vício que o inquine.
LXXVII. O escopo deste normativo legal é, justamente, permitir que o negócio jurídico se sane e que produza plenamente os seus efeitos pelo decurso do tempo, caso ninguém argua o vício que eventualmente o inquina e dentro de um prazo legal para esse efeito.
LXXVIII. A lei não visou nem visa proteger aqueles que moldam a norma aos seus interesses, e que se aproveitam de uma eventual situação de facto que não ocorreu, porquanto o negócio jurídico foi efectivamente concluído, tendo o pai do Recorrido permanecido no imóvel de forma consentida pelos Recorrentes, atento a boa relação e o respeito que por aquele tinham.
LXXIX. A sentença recorrida violou o artigo 280.º, n.º 1, do CC, pelo que a compra e venda da fracção autónoma "B13/1, outorgada por escritura pública datada de 22 de Abril de 2005, não é anulável, por caducidade do pedido de anulação dessa venda.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente Recurso, nos termos supra explanados e, em consonância com o acima alegado, revogada a decisão recorrida e substituída por outra que julgue procedentes todos os pedidos aduzidos pelos ora Recorrentes.
Assim se fazendo a costuma JUSTIÇA!
Ao recurso respondeu o Réu pugnando pela improcedência.
II
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
Não há questões que nos cumpre apreciar ex oficio.
Pediram os recorrentes, com o pretendido êxito da impugnação da matéria de facto tida por assente na primeira instância e a consequente alteração da matéria de facto nos termos requeridos, que fosse revogada a sentença recorrida, em substituição fossem julgados procedentes todo o peticionado na acção.
Então comecemos pela impugnação da matéria de facto.
Os recorrentes reagiram contra a decisão da matéria de facto, atacando a montante o despacho proferido sobre as reclamações da selecção da matéria de facto, e a jusante imputando erro de julgamento à decisão sobre a matéria de facto vertida nos quesitos 1º, 2º, 29º e 30º da base instrutória.
Então vejamos.
i) Reclamação da selecção da matéria de facto
Conforme se vê no saneador, foi levada aos quesitos 21º a 25º, 29º e 30º a seguinte matéria:
……
21.
O Réu tem permanecido na fracção autónoma desde o óbito do seu pai na firma convicção de que essa fracção nunca foi pretendida vender pelo seu pai e que este, de todo o modo, nunca recebeu qualquer preço?
22.
À data da escritura pública, o pai do Réu tinha uma idade muito avançada, e fruto da mesma, tinha passado a ter crescentes dificuldades mentais de entendimento?
23.
Tais dificuldades implicaram que o pai do Réu, mesmo face a ideias muito concretas, simples e directas, deixasse de compreender o respectivo significado e alcance?
24.
Mesmo para decisões simples, o pai do Réu passou a estar dependente de terceiros, não tendo já condições de autodeterminar-se e actuar de uma forma esclarecida e crítica?
25.
A perturbação da sua capacidade volitiva e de entendimento resultou não só da sua idade avançada como do progressivo isolamento em que passou a viver?
……
29.
Os Autores e a sua filha e procuradora bem conheciam e aceitaram tomar vantagem das referidas condições de vulnerabilidade e isolamento em que o pai do Réu se encontrava, a fim de obter gratuitamente dele vantagens patrimoniais nomeadamente a fracção “B-13”?
30.
Mediante a sua indução em erro quanto ao alcance e significado dos seus actos, atenta a sua idade, isolamento e deterioração das capacidades mentais de querer e entender, os Autores e a sua filha e procuradora levaram o pai do Réu a realizar o acto disposição da fracção autónoma?
……
Notificados do saneador, vieram os Autores reclamar contra a selecção da matéria de facto, na parte que diz respeito a esses quesitos.
Pois, para os Autores, a tal matéria contém em si expressões manifestamente vagas, imprecisas e conclusivas ou de direito, destituídas de factos puros para a sua concretização, assim como conceitos genéricos, portanto insusceptíveis de prova e deveriam ser eliminadas.
Sobre as reclamações foi proferido o seguinte despacho:
Vêm os Autores apresentar reclamação relativamente à selecção da matéria de facto. (fls. 392 a 399)
Notificadas, as partes silenciaram quanto à reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
1 - Sugerem os Autores a nova redacção do quesito 1º, aditando a expressão “... através da sua bastante procuradora ...”.
Tendo em conta os fundamentos invocados pelos Autores no art. 7º da sua reclamação, defere-se o seu requerimento.
2 - Entendem os Autores que deverá ser eliminado do quesito n.º 11º a expressão “... continuando a ocupar a fracção ...”.
No quesito n.º 11º, está quesitada relação entre a “negação” do Réu e a “ocupação” da fracção do Réu.
Deste modo, pesa embora a existência da al. F, deve manter-se a redacção actual do referido quesito.
3 - Entendem os Autores que os quesitos 21º a 25º, 29º e 30º versam sobre matéria manifestamente vaga, imprecisa e conclusiva, e deverão por isso ser eliminados da base instrutória.
No quesito n.º 21º, pergunta-se a intenção subjectiva do Réu. Não se afigura que seja um facto não susceptível de prova, pelo que deve ser mantido na base instrutória.
Os quesitos n.º 22º a 25º relacionam-se com o estado psicológico do pai do Réu antes do seu falecimento, e tais facto, conforme o Réu demonstram a vulnerabilidade do seu pai e contribuem para invalidar o negócio de compra e venda da fracção. Não se afigura que sejam factos não susceptíveis de prova, pelo que devem ser mantidos na base instrutória.
Também os quesitos n.º 29º e 30º têm a ver com a alegada “má-fé” dos Autores e a sua filha, factos que contribuem para, eventualmente, se concluir pela invalidade do negócio de compra e venda da fracção em causa. Tais factos devem ser mantidos na base instrutória.
*
Por tudo ficou expendido, julga-se parcialmente procedente a reclamação dos Autores.
O quesito n.º 1º passa a ter a redacção seguinte:
“Os Autores, através da sua bastante procuradora, consentiram que após a celebração da escritura referida na al. B. dos Factos Assentes o Sr. C, pai do Réu, usasse a fracção autónoma sem pagar aos Autores qualquer contrapartida?”
Insatisfeitos com a decisão nestes termos, vieram os Autores, agora em sede de recurso, impugnar este despacho, nos termos permitidos no artº 430º/3 do CPC.
No presente recurso, os Autores, ora recorrentes, reiteraram mais ou menos o que foi dito na reclamação contra a selecção da matéria de facto, tendo defendido que deveriam ter sido eliminadas da base instrutória as expressões “idade muito avançada”, “crescentes dificuldades mentais de entendimento”, “condições de vulnerabilidade”, “isolamento”, contidas na matéria vertida nos quesitos 21º a 25º, 29º e 30º, dado que se reportam aos conceitos vagos, imprecisos e à matéria conclusiva.
Como se sabe, a prova consiste na mensagem contida nos meios de prova, capaz de demonstrar de per si factos ou da qual se podem fazer inferir factos com o recurso à lógica das coisas ou às regras da experiência de vida. Tal mensagem pode ser extraída mediante o exame e valoração dos meios de prova já constituídos e admitidos aos autos ou através da produção de prova a constituir pelo Tribunal, no âmbito da causa e para a causa.
A prova só pode incidir sobre factos, e em caso algum sobre conclusões, juízos valorativos e matéria de direito, que, como se sabem, só cabem na competência dos Tribunais.
No caso sub judice, estamos perante as expressões “idade muito avançada”, “crescentes dificuldades mentais de entendimento”, “condições de vulnerabilidade”, “isolamento”.
Ora, tendo em conta todo o contexto em que se encontram inseridas, as tais expressões são efectivamente destituídas do suporte de factos materiais.
Não cremos que, por isso, essas expressões sejam susceptíveis de prova.
Basta pensar no seguinte: se uma testemunha, inquirida na audiência de julgamento sobre se uma determinada pessoa tem idade muito avançada? se ela está isolada? ou se está em condições de vulnerabilidade? responder afirmativamente que sim!
Quid juris?
Se o Tribunal não conceder credibilidade ao depoimento, inexiste o problema.
Pelo contrário, caso o Tribunal venha a considerar a testemunha como homem honesto, a resposta afirmativa dos tais juízos colocará necessariamente o Tribunal numa situação embaraçosa.
Embaraçosa porque o tal depoimento não pode deixar de ser inócuo, senão inútil, uma vez que à testemunha não cabe formular juízo valorativo e conclusivo.
Sendo inútil que é, para que levamos à base instrutória juízos valorativos e conclusivos insusceptíveis de serem respondidos por uma testemunha!
Portanto, no caso sub judice, as tais expressões não deveriam ter sido levadas à base instrutória.
No entanto, na sequência do julgamento pelo Colectivo da matéria de facto, as expressões ora questionadas pelos recorrentes ficaram substancialmente amputadas.
Pois os quesitos 21º a 25º, 29 e 30º foram respondidos pelo Colectivo nos termos seguintes:
……
QUESITO 21º:
PROVADO que o Réu tem permanecido na fracção autónoma após o óbito do seu pai.
QUESITO 22º:
PROVADO que à data da escritura pública, o pai do Réu tinha 81 anos de idade.
QUESITO 23°:
NÃO PROVADO.
QUESITO 24°:
NÃO PROVADO.
QUESITO 25°:
PROVADO que o pai do Réu passou a viver em progressivo isolamento.
……
QUESITO 29°:
PROVADO que os Autores e a sua filha e procuradora, F, bem conheciam da condição do pai do Réu e tomaram vantagem das referidas condições de vulnerabilidade e isolamento em que o pai do Réu se encontrava, a fim de obter vantagens patrimoniais nomeadamente adquirir a fracção "B13", celebrando a escritura pública referida em B) dos factos assentes.
QUESITO 30°:
PROVADO que devido à sua idade e ao isolamento em que estava a viver, o pai do Réu celebrou a escritura pública referida em B) dos factos assentes.
……
Assim, nada temos de mexer no que diz respeito à matéria vertida nos quesitos 21º a 24º, uma vez que as expressões questionadas originariamente contidas na matéria ai vertida já ficaram “não provadas”.
Quanto à matéria do quesito 25º, é de eliminar a expressão “em progressivo isolamento”, o que torna toda a resposta inócua por destituída de qualquer sentido útil.
No que diz respeito à matéria provada originariamente proveniente dos quesitos 29º e 30º, para já podemos poupar as tintas para tratar aqui, uma vez que a questão sobre o carácter valorativo e conclusivo de algumas expressões contidas nessa matéria provada será objecto da abordagem exaustiva que iremos fazer infra na questão do invocado erro de julgamento de facto.
ii) Do erro de julgamento da matéria de facto
Vieram os recorrentes insurgir-se contra as respostas dadas aos quesitos 1º, 2º, 29º e 30º.
Constatando-se nas conclusões tecidas na minuta do recurso interposto pelos Autores, que estes pretenderam, com a impugnação das respostas dadas aos quesitos 1º e 2º da base instrutória, ver totalmente provada a matéria neles vertida.
A matéria neles quesitada tem o seguinte teor:
1º
Os Autores, através da sua bastante procuradora, consentiram que após a celebração da escritura referida na al. B. dos Factos Assentes o Sr. C, pai do Réu, usasse a fracção autónoma sem pagar aos Autores qualquer contrapartida?
2.º
O que fizeram por motivos da excelente relação de amizade pessoal e já de longa data, e sob a condição de que o empréstimo da fracção apenas subsistirá até ao momento em que os Autores pretendessem reaver da fracção, seja por que motivo, não tendo sido convencionado prazo certo para a restituição nem determinado o uso da coisa?
Os quesitos foram respondidos pelo Colectivo nos termos seguintes:
Quesito 1º:
PROVADO que após a celebração da escritura referida em B) dos Factos Assentes, C, pai do Réu, continuou a viver na fracção autónoma como fazia até então sem pagar aos Autores qualquer contrapartida.
Quesito 2º:
PROVADO que a Autora e a sua procuradora, F, tinham uma boa relação de amizade pessoal com C.
Ora, se bem entendemos a estratégia da argumentação consubstanciada no petitório do recurso nesta parte, o que pretenderam os recorrentes com a impugnação das respostas dadas aos quesitos 1º e 2º seria, no caso de êxito da impugnação, procurar, com a comprovação in totum dessa matéria vertida nos quesitos 1º e 2º, convencer este Tribunal de recurso da existência dos factos incompatíveis e afastadores da interpretação e qualificação, feita pelo Tribunal a quo, do facto de a fracção autónoma não ter sido entregue aos Autores, como o ainda não cumprimento do contrato de compra e venda por parte do vendedor, pai dos recorridos, com base na qual o Tribunal a quo julgou ainda não caducado o direito de acção de anulação.
Tem lógica e faz sentido.
Então vamos ver se foram mal julgados os tais quesitos.
Ora, se é verdade que, por força do princípio da livre apreciação das provas consagrado no artº 558º do CPC, como regra geral, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, não é menos certo que a matéria de facto assente de primeira instância pode ser alterada nos termos e ao abrigo do disposto no artº 629º do CPC.
Diz o artº 629º/1-a) do CPC que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 599º, a decisão com base neles proferida.
Reza, por sua vez, o artº 599º, para o qual remete o artº 629º/1-a), todos do CPC, que:
1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.
3. Na hipótese prevista no número anterior, e sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe à parte contrária indicar, na contra-alegação que apresente, as passagens da gravação que infirmem as conclusões do recorrente.
4. O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 590.º
Os recorrentes identificaram a matéria que consideravam incorrectamente julgada.
Os meios probatórios que, na óptica dos recorrentes, impunham decisão diversa são os documentos juntos aos autos, nomeadamente fotografias a fls. 512 a 516 dos p. autos e os depoimentos de algumas das testemunhas inquiridas na audiência de julgamento.
No caso dos autos, houve gravação dos depoimentos.
Pelos recorrentes foram indicadas e transcritas exaustivamente as passagens da gravação dos depoimentos que eles entenderam mal valorados pelo Tribunal a quo.
Todavia, por razões que passemos a expor infra, este Tribunal de recurso não é permitido pela lei processual a proceder à reapreciação das tais provas nos termos requeridos.
Como se sabe, na matéria da valoração das provas, documental e testemunhal, vigora o princípio da livre apreciação da prova, à luz do qual o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
Em relação à matéria em causa, o Colectivo da 1ª instância fundamentou a sua convicção nos termos seguintes:
Em especial, no que diz respeito à ocupação do imóvel pelo pai do Réu até à morte e a ocupação do imóvel pelo Réu depois desta data, a posição tomada pelas partes nos autos e a prova testemunhal demonstram claramente os respectivos factos.
……
No entanto, tendo em conta a relação que este mantinha com a Interveniente e o facto de a testemunha ter esquivado ao responder a algumas questões relativas ao relacionamento da Interveniente F, o tribunal não deu muita credibilidade à mesma. Por essa razão não considerou provado os quesitos 4º a 7º da base instrutória.
Não obstante isso, não deixou de considerar que a Autora e a Interveniente F mantinham uma relação boa com o pai do Réu porque as fotografias assim indicam e a testemunha Raquel também fez referência a isso.
Apesar de a lei exigir sempre a objectivação e a motivação da convicção íntima do Tribunal na fundamentação da decisão de facto, ao levar a cabo a sua actividade cognitiva para a descoberta da verdade material, consistente no conhecimento ou na apreensão de um acontecimento supostamente ocorrido no passado, o julgador não pode deixar de ser subjectivamente influenciado por elementos não explicáveis por palavras, nomeadamente quando concedem a credibilidade a uma testemunha e não a outra, pura e simplesmente por impressão recolhida através do contacto vivo e imediato com a atitude e a personalidade demonstrada pela testemunha, ou com a forma como reagiu quando inquirida na audiência de julgamento.
Assim, desde que tenham sido observadas as regras quanto à valoração das provas e à força probatória das provas e que a decisão de facto se apresente coerente em si ou que se não mostre manifestamente contrária às regras da experiência de vida e à logica das coisas, a convicção do Tribunal a quo, colocado numa posição privilegiada por força do princípio da imediação, não é em princípio sindicável.
Segundo o ensinamento de Amâncio Ferreria, a admissibilidade dos meios de impugnação, incluindo o recurso ordinário, funda-se na falibilidade humana e na possibilidade de erro por parte dos juízes.
O recurso ordinário visa atacar a decisão judicial por ser errada ou injusta.
A decisão é errada ou por padecer de error in procedendo, quando se infringe qualquer norma processual disciplinadora dos diversos actos processuais que integram o procedimento, ou de error in iudicando, quando se viola uma norma de direito substantivo ou um critério de julgamento, nomeadamente quando se escolhe indevidamente a norma aplicável ou se procede à interpretação e à aplicação incorrectas da norma reguladora do caso ajuizado.
A decisão é injusta quando resulta duma inapropriada valoração das provas, da fixação imprecisa dos factos relevantes, da referência inexacta dos factos ao direito e sempre que o julgador, no âmbito do mérito do julgamento, utiliza abusivamente os poderes discricionários, mais ou menos amplos. – in Manual dos Recursos em Processo Civil, 6ª ed. pág. 69 e s.s.
Ou seja, o recurso ordinário existe para corrigir erro e repor a justiça posta em causa pela decisão errada.
Na esteira dessa doutrina autorizada sobre a função do recurso ordinário no processo civil, para impugnar com êxito a matéria fáctica dada por assente na primeira instância, não basta ao recorrente invocar a sua discordância fundada na sua mera convicção pessoal formada no teor de um determinado meio de prova, ou identificar a divergência entre a sua convicção e a do Tribunal de que se recorre, é ainda preciso que o recorrente identifique o erro que, na sua óptica, foi cometido pelo Tribunal de cuja decisão se recorre.
Os julgadores de recurso, não sentados na sala de audiência para obter a percepção imediata das provas ai produzidas, naturalmente não podem estar em melhores condições do que os juízes de primeira instância que lidaram directamente com as provas produzidas na sua frente.
Assim, o chamamento dos julgadores de recurso para a reapreciação e a revaloração das provas, já produzidas e/ou examinadas na 1ª instância, com vista à eventual alteração da matéria de facto fixada na 1ª instância só se justifica e se legitima quando a decisão de primeira instância padecer de erros manifestamente detectáveis.
Portanto, para que possa abalar com êxito a convicção formada pelo Tribunal a quo com vista à revogação da decisão de facto e à sua ulterior modificação pelo Tribunal ad quem, é preciso que o recorrente identifique erro manifesto na valoração de provas e na fixação da matéria de facto, e não a simples divergência entre ele e o Tribunal no que diz respeito à valoração de provas ou à fixação da matéria fáctica.
Integram em tais erros manifestos, inter alia, a violação de regras quanto à valoração de provas e à força probatória de provas, v. g. o não respeito à força vinculativa duma prova legal, e a contrariedade da convicção íntima do Tribunal a regras de experiência de vida e à lógica das coisas.
In casu, nada disso foi alegado.
O que fizeram os recorrentes não é mais do que valorar, eles próprios as provas em causa, e formar a sua convicção, diversa da formada pelo Colectivo a quo, sem que tenha sido apontado o erro manifesto na apreciação da prova.
Nestas circunstâncias, nada temos para legitimar este Tribunal de recurso para sindicar a decisão de facto de primeira instância.
Improcede a impugnação da matéria de facto no que diz respeito às respostas dadas aos quesitos 1º e 2º.
Então passemos à apreciação da parte da impugnação da matéria vertidas nos quesitos 29º e 30º.
A matéria neles quesitada tem o seguinte teor:
29.
Os Autores e a sua filha e procuradora bem conheciam e aceitaram tomar vantagem das referidas condições de vulnerabilidade e isolamento em que o pai do Réu se encontrava, a fim de obter gratuitamente dele vantagens patrimoniais nomeadamente a fracção “B-13”?
30.
Mediante a sua indução em erro quanto ao alcance e significado dos seus actos, atenta a sua idade, isolamento e deterioração das capacidades mentais de querer e entender, os Autores e a sua filha e procuradora levaram o pai do Réu a realizar o acto disposição da fracção autónoma?
Os quesitos 29º e 30º foram respondidos pelo Colectivo nos termos seguintes:
QUESITO 29°:
PROVADO que os Autores e a sua filha e procuradora, F, bem conheciam da condição do pai do Réu e tomaram vantagem das referidas condições de vulnerabilidade e isolamento em que o pai do Réu se encontrava, a fim de obter vantagens patrimoniais nomeadamente adquirir a fracção "B13", celebrando a escritura pública referida em B) dos factos assentes.
QUESITO 30°:
PROVADO que devido à sua idade e ao isolamento em que estava a viver, o pai do Réu celebrou a escritura pública referida em B) dos factos assentes.
Então vejamos.
Como se sabe, ao redigirem os articulados, não poucas vezes, as partes utilizam expressões contendo elementos normativos ou juízos meramente valorativos e conclusivos.
Assim, tanto as partes como o Tribunal, devem distinguir bem a matéria de facto da de direito.
Na formulação de Alberto dos Reis, é questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior…… Entendem-se por factos materiais as ocorrências da vida real, isto é, ou os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos dos homens – in Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 206-207, e 209.
Todavia, há que reconhecer uma realidade: hoje em dia, muitas expressões originariamente utilizadas na doutrina jurídica ou na lei como elementos normativos já invadiram na terminologia largamente usada na nossa comunicação quotidiana, tais como escritura pública, estado civil de solteiro ou casado, cheques, livrança, arrendamento, posse, detenção, compra e venda, adopção, casamento.
Assim, não é raro que aceitamos habilmente, senão toleramos a existência dessas expressões como parte integrante do thema probandum, de modo a permitir que o teor dessas expressões possa ser directamente demonstrável ou inferido da mensagem extraída dos meios de prova produzidos ou valorados.
Todavia, nem sempre isso é aceitável e tolerável.
Na verdade, pelo contexto em que são inseridas, essas expressões não podem ser tidas como meramente fácticas, isso acontece, por exemplo, quando se discuta se estamos perante uma escritura pública, um cheque, uma livrança, um arrendamento, a posse ou a detenção de uma coisa, um contrato de compra e venda, um acto jurídico de adopção, um laço matrimonial, cujas validade e existência jurídica constituem em si já juízos valorativos e conclusivos, insusceptíveis de ser objecto da simples prova.
Assim sendo, consoante a questão jurídica a discutir e a matéria controvertida tal como configuradas pelas partes nos seus articulados, o Juiz que se encarrega de elaborar o saneador deve ter muito cuidado na selecção da matéria para o questionário, especialmente na qualificação de expressões utilizadas pelas partes como matéria susceptível ou não de constituir objecto da prova.
É uma tarefa difícil, pois nem sempre é fácil a qualificação de uma expressão como matéria de facto ou como matéria de direito.
Esta tarefa do Juiz torna-se particularmente difícil quando as partes se socorrerem da prova testemunhal, na medida em que a representação de um determinado acontecimento que as testemunhas têm no seu mundo pessoal de pensamento pode não corresponder à avaliação jurídica desse acontecimento.
E mais difícil se torna a tal tarefa quando as partes misturaram nos seus articulados a matéria de facto com a matéria de direito, ou utilizaram abundantes expressões valorativas ou conclusivas, destituídas do suporte de factos materiais, e conceitos genéricos e vagos, não acompanhados de factos puros que os preenchem.
É justamente esta última situação com que estamos confrontados.
In casu, o núcleo essencial da disputa, no plano jurídico, entre os Autores e o Réu é justamente saber se os Autores, assim como a habilitada F, aproveitaram da inferioridade ou da fraca capacidade de compreender e de decidir na disposição dos seus bens, alegadamente originada pelo estado senil e pelas condições da vulnerabilidade do Sr. C, pai falecido do Réu, nos momentos da preparação e da própria celebração da escritura pública que titulou a compra e venda da fracção autónoma.
Ora, perante as respostas dadas aos quesitos 29º e 30º, esta questão, obviamente de direito, fica logo respondida!
O que significa, de duas uma, ou as provas examinadas e produzidas resolveram directamente a questão jurídica, ou o Tribunal a quo resolveu a questão de direito no julgamento de facto.
Salvo o devido respeito, com as respostas nos termos redigidos dadas aos quesitos 29º e 30º, o Colectivo está a lidar com questões de direito.
Diz o artº 549º/4, primeira parte, do CPC que: têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito.
Ai está estatuída a proibição legal de o Colectivo se pronunciar sobre questões de direito, sancionando-se tal situação com a inexistência da decisão que haja extravasado as competências legalmente atribuídas ao tribunal colectivo – Lopes do Rego, in Comentário ao CPC, I, 2ª edição, pág. 536.
Para a fácil ilustração, é bom de relembrarmos o teor dessas respostas e assinalarmos ai as partes que devem ser tidas por não escritas, de forma seguinte:
Os Autores e a sua filha e procuradora, F, bem conheciam da condição do pai do Réu e tomaram vantagem das referidas condições de vulnerabilidade e isolamento em que o pai do Réu se encontrava, a fim de obter vantagens patrimoniais nomeadamente adquirir a fracção "B13", celebrando a escritura pública referida em B) dos factos assentes.
Devido à sua idade e ao isolamento em que estava a viver, o pai do Réu celebrou a escritura pública referida em B) dos factos assentes.
Ou seja, é de ser tido por não escrito o conteúdo essencial, consistente nas partes supra assinaladas, vertido nas respostas dadas aos quesitos 29º e 30º.
O que pela lógica, torna necessariamente inócua a restante parte dessas respostas aos quesitos 29º e 30º.
Ex abuntantia, cabe salientar que, mesmo que aceitássemos a natureza fáctica da matéria vertida nas respostas dadas aos quesitos 29º e 30º, as tais respostas não poderiam ser mantidas.
Ora, ficou provado que o negócio de compra e venda da fracção autónoma foi titulado pela escritura pública outorgada em 22ABR2005.
Tendo-se apoiado essencialmente na matéria vertida nas respostas aos quesitos 29º e 30º, o Tribunal a quo concluiu pelo aproveitamento consciente e reprovável da situação de inferioridade do pai do Réu por parte dos Autores.
Para o Tribunal a quo, essa inferioridade é justamente as ditas condições de vulnerabilidade e isolamento em que se encontrava o pai do Réu, nos tempos imediatamente anteriores e no próprio momento da celebração da escritura pública em 2005.
Só que existe um elemento da prova, contido num ofício da DSF, versando sobre os rendimentos colectáveis do imposto profissional do pai do Réu, referentes aos anos de 2005 e 2006.
O ofício, ora junto aos autos a fls. 493 dos p. autos, foi requisitado pelo Tribunal a quo a requerimento dos Autores.
O teor desse ofício não foi impugnado pelo Réu.
O ofício da DSF, enquanto documento autêntico, demostra claramente que em 2005, ano em que foi outorgada a escritura pública, o pai do Réu, reputado na sentença recorrida como se encontrando em condições de vulnerabilidade e progressivo isolamento, auferiu, no exercício da actividade profissional por conta própria como engenheiro electromecânico e enquanto empregado da STDM, S.A., respectivamente, os rendimentos no valor de MOP$544.570,00 e MOP$586.460,00.
Então pergunta-se, se é possível ou lógico que uma pessoa que, não obstante se encontrar nas condições de vulnerabilidade e de isolamento, em situação idêntica à do pai do Réu, poderia ter trabalhado como engenheiro electromecânico e ter auferido rendimentos tão elevados no sector privado, quer no exercício da actividade profissional por conta própria quer enquanto empregado de uma grandíssima empresa privada?
Para nós, a resposta deverá ser negativa!
Não obstante a predominância do princípio dispositivo na matéria de ónus de alegar e de provar, os factos instrumentais com relevância à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa, mesmo não articulados nem feitos constar da matéria de facto assente, se resultantes da instrução e discussão da causa, podem e devem ser tidos em conta ex oficio pelo Tribunal na fundamentação da decisão de direito.
No caso em apreço, os tais factos instrumentais, nomeadamente os elevados rendimentos auferidos pelo pai do Réu no ano de 2005, de per si, já nos levam a crer que, o pai do Réu não se encontrava em condições tal como descritas nas respostas dadas aos quesitos 29º e 30º, que a serem verdadeiras, poderiam afectar a capacidade e liberdade de decidir do pai do Réu de forma tão grave que a lei comina com a sanção da anulabilidade de negócio jurídico.
Assim, é de proceder parcialmente a impugnação do despacho sobre a reclamação da selecção da matéria de facto e a impugnação da matéria de facto e alterar a matéria de facto nos termos acima consignados.
Ou seja, são eliminadas as respostas dadas ao quesitos 25º, 29º e 30º.
Tendo a impugnação da matéria de facto sido suscitada pelos recorrentes como meio instrumental com vista à revogação da decisão de direito consubstanciada na sentença recorrida, e em substituição, à obtenção de um Acórdão de 2ª Instância julgando procedente todo o peticionado na acção, é altura para passarmos a apreciar no plano de direito as questões de direito colocadas quer na acção quer em sede do presente recurso.
III
Na mira do êxito da impugnação da matéria de facto nos termos pretendidos, os recorrentes pretenderam que lhes fosse reconhecido e declarado o direito de propriedade sobre a fracção autónoma, assim como o direito à sua restituição, livre e devoluta de pessoas e bens, e em bom estado de conservação, e que lhes fossem ressarcidos os danos patrimoniais resultantes da ocupação da fracção autónoma por parte do Réu.
Para o efeito, colocaram, a título principal, a questão da inverificação, na sequência da alteração da matéria de facto nos termos requeridos, dos requisitos da usura, que o Tribunal a quo serviu de fundamento para a anulação do negócio de compra e venda da fracção autónoma.
E subsidiariamente a caducidade do direito de anulação do negócio de compra e venda da fracção autónoma.
Assim, no plano de direito, são as seguintes questões jurídicas que constituem o objecto do presente recurso.
1. Dos requisitos da usura; e subsidiariamente
2. Da caducidade do direito à acção de anulação do negócio.
E no caso da procedência do recurso por razões que se prendem com qualquer dessas questões, teremos de conhecer a questão:
3. Do pedido de indemnização para o ressarcimento dos danos resultantes da ocupação da fracção autónoma.
Assim vejamos.
1. Dos requisitos da usura
Na sua contestação, o Réu deduziu “excepção peremptória inominada” fundada na falta de vontade por parte do seu pai de vender a fracção autónoma e no não recebimento do preço pelo seu pai como contrapartida da alegada venda da fracção autónoma.
Para além da contestação por excepção, o Réu formulou o pedido reconvencional da anulação do negócio da compra e venda da fracção autónoma em causa, com fundamento na usura nos termos previstos no artº 275º do CC.
A excepção foi julgada improcedente, ao passo que a tese de usura foi acolhida pelo Tribunal a quo e o pedido reconvencional julgado procedente.
Dispõe o artº 275º do CC que é anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, aproveitando conscientemente a situação de necessidade, inépcia, inexperiência, ligeireza, relação de dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios que, atendendo às circunstâncias do caso, sejam manifestamente excessivos ou injustificados.
De acordo com a fundamentação de direito na sentença recorrida, a decisão de anulação do negócio com fundamento na usura alicerçou-se na verificação dos requisitos subjectivos e objectivos desta figura jurídica.
Segundo os doutos ensinamentos citados na douta sentença recorrida, para a anulação de um negócio com fundamento na usura, é preciso que se verifiquem, no plano subjectivo, determinados requisitos essenciais, nomeadamente, no lado da vítima (indivíduo que o instituto visa proteger), as comprovadas condições pessoais da fraqueza, vulnerabilidade ou inferioridade da vítima e a sua liberdade constrangida ou a sua vontade patologicamente formada por causa daquelas condições pessoais durante o processo de formação da vontade, e no lado do agente explorador (indivíduo que a lei visa censurar por ter actuado como actuou e sancionar com a cominação da anulabilidade do negócio viciado pela sua actuação censurável), a consciência do aproveitamento reprovável dessas condições pessoas da vítima por parte do explorador.
Com a eliminação da matéria de facto, operada na sequência do êxito da impugnação das respostas dadas aos quesitos 25º, 29º e 30º, deixam logo de subsistir os necessários alicerces fácticos para sustentar os juízos valorativos formados pelo Tribunal a quo, de que o pai do Réu se encontrava nas condições de vulnerabilidade ou inferioridade e tinha a liberdade constrangida para a sã formação da sua vontade nos momentos anterior e próprio da celebração da escritura pública que titulou a venda da fracção autónoma a favor dos Réu.
Inexistindo as tais condições pessoais de vulnerabilidade, inferioridade e fraqueza do pai do Réu, o juízo conclusivo do aproveitamento consciente e reprovável das tais condições por parte dos Autores e da habilitada F também não se pode manter.
Assim, não obstante a subsistência dos juízos sobre a desproporção e desequilíbrio dos benefícios obtidos pelos Autores em relação ao preço que tiveram de pagar, isso de per si está longe de poder conduzir à anulação do negócio.
Alias, esta desproporção e desequilíbrio é, in casu, substancialmente neutralizados pela comprovada excelente amizade entre a filha dos Autores e o pai do Réu – vide a resposta ao quesito 2º.
Beneficiando da presunção registral a seu favor, nos termos prescritos no disposto no artº 7º do CRP, que in casu não foi ilidida, os Autores, registados como compradores no contrato de compra e venda celebrado em 22ABR2005, devem, por isso, ser reconhecidos como titulares do direito de propriedade do bem objecto do facto jurídico registado.
Pelo que, há que revogar a sentença recorrida, e em substituição passar a reconhecer os Autores como titulares do direito da propriedade da fracção autónoma em causa, a condenar o Réu a desocupar da mesma e a restituir aos Autores a fracção autónoma, livre e devoluta de pessoas e bens, e em bom estado de conservação, e a ressarcir os danos patrimoniais causados aos Autores pelo ocupação por parte do Réu da fracção autónoma.
2. Da caducidade do direito à acção de anulação do negócio
Com a procedência nos termos supra do pedido principal da revogação da sentença recorrida com fundamento na não verificação da usura para a anulação do negócio, fica prejudicado o conhecimento dessa questão, colocada a título subsidiário.
3. Do pedido de indemnização para o ressarcimento dos danos resultantes da ocupação da fracção autónoma
Com fundamento na ocupação indevida e ilegal da fracção autónoma, os autores pediram na petição inicial a condenação do Réu a pagar-lhes, a título de indemnização para o ressarcimento dos danos causados pela privação do uso e gozo da fracção autónoma, desde 01SET2014 até à efectiva restituição da fracção livre e devoluta de pessoas e bens, e que até à data da instauração da acção perfizeram o montante total de MOP$250.000,00.
Da factualidade assente com relevância à questão em apreço, consta que:
- Em Maio de 2014, o Sr. C faleceu (alínea E) dos factos assentes).
- Os Autores, por intermédio da sua bastante procuradora e dos seus mandatários, interpelaram o ora Réu através de carta registada com aviso de recepção datada de 24 de Agosto de 2015, solicitando-lhe que desocupasse e restituísse a referida fracção livre e devoluta de pessoas e bens no prazo de 15 (quinze) dias a contar da recepção dessa carta, conforme cópia da carta e aviso de recepção que se juntam como documento n.º 4 com a petição inicial (alínea G) dos factos assentes).
…...
- Por força do falecimento de C, os Autores, através da sua procuradora, entraram em contacto com o Réu e solicitaram que este desocupasse e lhas entregasse livre de pessoa e bens (resposta ao quesito 3º da base instrutória).
- No mês de Agosto de 2015, os Autores, por intermédio da sua procuradora, pediram novamente ao Réu que desocupasse a fracção e que a entregasses aos Autores livre e devoluta de pessoas e bens (resposta ao quesito 8º da base instrutória).
- O Réu recusou-se a fazê-lo (resposta ao quesito 9º da base instrutória).
- O Réu ocupa a fracção contra a vontade dos Autores e sem qualquer contrapartida, o que impede a que Autores a usassem e ocupassem (resposta ao quesito 10º da base instrutória).
- Não obstante o pedido dos Autores, o Réu continua a negar-se a desocupar a fracção autónoma, continuando a ocupá-la (resposta ao quesito 11º da base instrutória).
- A ocupação da fracção por parte do Réu impossibilita os Autores de a colocar no mercado de arrendamento (resposta ao quesito 12º da base instrutória).
- E receber as respectivas rendas (resposta ao quesito 13º da base instrutória).
- O valor de mercado das rendas mensais, entre Junho de 2014 e Setembro de 2015, para aquela fracção era de MOP$16.700,00 (resposta ao quesito 14º da base instrutória).
……
- O Réu tem permanecido na fracção autónoma após o óbito do seu pai (resposta ao quesito 21º da base instrutória).
Dessa materialidade fáctica resulta que o Réu manteve a ocupação, sem qualquer título e justificação, após a interpelação para abandonar e restituir a fracção autónoma, pela procuradora dos Autores, efectuada pelo menos em data anterior ao mês de Agosto de 2015, inclusive.
Todavia, não sabemos em quê dia do mês de Agosto foi efectuada a tal interpelação.
De qualquer maneira, aos Autores assiste sempre o direito a uma indemnização correspondente ao valor das rendas mensais vencidas pelo menos a partir do mês de Setembro de 2015.
Só a partir do mês de Setembro de 2015, porque não sabemos exactamente em que dia de Agosto foi efectuada a tal interpelação e que a interpelação poderia ter lugar no último dia desse mês.
Não obstante a comprovação do valor da renda mensal no mercado no período compreendido entre JUN2014 e SET2015, daquela fracção que era de MOP$16.700,00, não foi apurado qual é o valor da renda mensal do mercado nos tempos posteriores ao mês de Setembro de 2015.
Assim sendo, é de julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização por ocupação ilícita da fracção autónoma pelo Réu, ora recorrido, a pagar aos Autores a quantia correspondente às rendas mensais vencidas desde o mês de Setembro de 2015 até à data do encerramento da discussão de 1ª instância, e as vincendas desde ai até à efectiva desocupação da fracção autónoma e à efectiva restituição da mesma livre de pessoas e devolutas e em bom estado de conservação aos Autores, cujo valor se liquidará em sede de execução da sentença.
Concluindo e resumindo:
12. A prova consiste na mensagem contida nos meios de prova, capaz de demonstrar de per si factos materiais ou da qual se podem fazer inferir factos materiais com o recurso à lógica das coisas ou às regras da experiência de vida.
13. Tal mensagem pode ser extraída mediante o exame e a valoração dos meios de prova já constituídos e admitidos aos autos ou através da produção de prova a constituir pelo Tribunal, no âmbito da causa e para a causa.
14. A prova só pode incidir sobre factos, e em caso algum sobre conclusões e juízos valorativos que compete aos Tribunais formular na decisão de direito.
15. As expressões “idade muito avançada”, “crescentes dificuldades mentais de entendimento”, “condições de vulnerabilidade”, “progressivo isolamento”, se destituídas do suporte de factos materiais no contexto em que se encontram inseridas, em caso algum podem ser thema probandum.
16. Se é verdade que, por força do princípio da livre apreciação das provas consagrado no artº 558º do CPC, como regra geral, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, não é menos certo que a matéria de facto assente de primeira instância pode ser alterada nos termos e ao abrigo do disposto no artº 629º do CPC.
17. Apesar de a lei exigir sempre a objectivação e motivação da convicção íntima do Tribunal na fundamentação da decisão de facto, ao levar a cabo a sua actividade cognitiva para a descoberta da verdade material, consistente no conhecimento ou na apreensão de um acontecimento supostamente ocorrido no passado, o julgador não pode deixar de ser subjectivamente influenciado por elementos não explicáveis por palavras, nomeadamente quando concedem a credibilidade a uma testemunha e não a outra, pura e simplesmente por impressão recolhida através do contacto vivo e imediato com a atitude e a personalidade demonstrada pela testemunha, ou com a forma como reagiu quando inquirida na audiência de julgamento. Assim, desde que tenham sido observadas as regras quanto à valoração das provas e à força probatória das provas e que a decisão de facto se apresenta coerente em si ou se não mostre manifestamente contrária às regras da experiência de vida e à logica das coisas, a convicção do Tribunal a quo, colocado numa posição privilegiada por força do princípio da imediação, em princípio, não é sindicável.
18. O recurso ordinário existe para corrigir erro e repor a justiça posta em causa pela decisão errada. Para impugnar com êxito a matéria fáctica dada por assente na primeira instância, não basta ao recorrente invocar a sua discordância fundada na sua mera convicção pessoal formada no teor de um determinado meio de prova, ou identificar a divergência entre a sua convicção e a do Tribunal de que se recorre, é ainda preciso que o recorrente identifique o erro que, na sua óptica, foi cometido pelo Tribunal de cuja decisão se recorre.
19. Os julgadores de recurso, não sentados na sala de audiência para obter a percepção imediata das provas ai produzidas, naturalmente não podem estar em melhores condições do que os juízes de primeira instância que lidaram directamente com as provas produzidas na sua frente. Assim, o chamamento dos julgadores de recurso para a reapreciação e a revaloração das provas, já produzidas e/ou examinadas na 1ª instância, com vista à eventual alteração da matéria de facto fixada na 1ª instância, só se justifica e se legitima quando a decisão de primeira instância padecer de erros manifestamente detectáveis.
20. Para que possa abalar com êxito a convicção formada pelo Tribunal a quo com vista à revogação da decisão de facto e à sua ulterior modificação pelo Tribunal ad quem, é preciso que o recorrente identifique erro manifesto na valoração de provas e na fixação da matéria de facto, e não a simples divergência entre ele e o Tribunal no que diz respeito à valoração de provas ou à fixação da matéria fáctica. Integram em tais erros manifestos, inter alia, a violação de regras quanto à valoração de provas e à força probatória de provas, v. g. o não respeito à força vinculativa duma prova legal, e a contrariedade da convicção íntima do Tribunal a regras de experiência de vida e à lógica das coisas.
21. Não obstante a predominância do princípio dispositivo na matéria de ónus de alegar e de provar, os factos instrumentais com relevância à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa, mesmo não articulados nem feitos constar da matéria de facto assente, se resultantes da instrução e discussão da causa, podem e devem ser tidos em conta ex oficio pelo Tribunal na fundamentação da decisão de direito.
22. Tendo, na sequência do êxito da impugnação por via de recurso da matéria de facto fixada na 1ª instância, sido eliminadas dessa matéria as expressões “isolamento” em que se encontrava o pai do Réu, os autores “tomaram vantagem das referidas condições de vulnerabilidade e isolamento do pai do Réu a fim de obter vantagens patrimoniais”, por terem sido consideradas meramente valorativas, conclusivas e destituídas de qualquer suporte fáctico, não se pode manter a decisão de direito que anulou o negócio jurídico por usura, com fundamento alicerçado no juízo meramente conclusivo de que houve aproveitamento consciente e reprovável por parte dos Autores da situação de inferioridade e fraqueza que, na óptica do Tribunal a quo, advieram ao pai do Réu das suas condições de vulnerabilidade e isolamento em que se encontrava nos tempos imediatamente anteriores e no próprio momento da celebração do negócio jurídico.
Resta decidir.
IV
Em face do exposto, concede-se a procedência ao recurso, alterando-se a matéria de facto nos termos consignados na fundamentação e revogando-se a sentença recorrida, nestes termos:
1. Julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência:
* Reconhece-se o direito de propriedade dos Autores sobre a fracção autónoma identificado no artigo 1º da petição inicial;
* Condena-se o Réu desocupar da tal fracção autónoma, restituindo-a aos Autores, livre de pessoas e devoluta e em bom estado de conservação;
* Condena-se o Réu a pagar aos Autores, a título de indemnização, a quantia correspondente às rendas mensais vencidas desde o mês de Setembro de 2015 até à data do encerramento da discussão de 1ª instância, e às rendas mensais vincendas desde ai até que se verifiquem a desocupação da fracção autónoma e a efectiva restituição da mesma livre de pessoas e devolutas aos Autores, cujo valor a liquidação em sede de execução da sentença; e
* Absolver o Réu do resto do peticionado.
2. Julga-se improcedente a reconvenção.
As custas da acção ficam a cargo dos Autores e do Réu, na proporção de 1/19, as da reconvenção ficam a cargo do Réu e dos Intervenientes que o aderiram, e as do recurso ficam exclusivamente a cargo do Réu recorrido.
Registe e notifique.
RAEM, 02JUL2020
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
Ac. 1188/2019-69