Processo n.º 592/2019 Data do acórdão: 2020-7-16 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– art.o 191.o, n.o 2, alínea a), do Código Penal
– contra a vontade presumida do portador do direito à imagem
S U M Á R I O
Para a conduta de filmagem ser típica nos termos previstos no art.o 191.o, n.o 2, alínea a), do Código Penal, bastará que contrarie a vontade presumida do portador concreto do direito à imagem.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 592/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
Recorrida (arguida): A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida a fls. 68 a 72v do Processo Comum Singular n.º CR2-19-0015-PCS do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), absolutório da arguida A da acusada prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de gravações e fotografias ilícitas, p. e p. pelo art.o 191.o, n.o 2, alínea a), do Código Penal, veio o Ministério Público recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), imputando a essa decisão penal, na motivação apresentada a fls. 81 a 84v dos presentes autos correspondentes, erro notório na apreciação da prova com violação do art.o 114.o do Código de Processo Penal (CPP), para rogar o reenvio do processo para novo julgamento.
Ao recurso, respondeu a arguida a fls. 87 a 93 dos autos, no sentido de improcedência do mesmo.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer a fls. 101 a 102v, pugnando pela procedência do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. Conforme a participação policial de fls. 1 a 2 dos autos, a guarda policial ofendida declarou desejar procedimento criminal contra a arguida.
2. A acusação penal então deduzida pelo Ministério Público contra a arguida consta de fl. 28 a 28v dos autos, cujo teor se dá por aqui inteiramente reproduzido.
3. Em sintonia com essa acusação, e na sua essência:
– (cfr. o facto acusado 1:) em 5 de Maio de 2018, cerca das 08:30 da manhã, a guarda policial ofendida, então fardada, e em patrulhamento, viu que a arguida se encontrava a fumar perto da entrada principal de um casino em Macau, pelo que foi tratar do processamento acusatório contra a arguida;
– (cfr. o facto acusado 2:) a arguida, insatisfeita com esse processamento, pegou no telemóvel para filmar a ofendida;
– (cfr. o facto acusado 3:) a arguida, sem ser apoiada em motivo justificado, e com violação da vontade da ofendida, usou o telemóvel para filmar a ofendida que se encontrava a executar funções de guarda policial;
– (cfr. o facto acusado 4:) a arguida, de modo livre, voluntário e consciente, praticou com intenção a conduta acima referida;
– (cfr. o facto acusado 5:) a arguida sabia que a conduta acima referida violava a lei, e era sujeita à punição por lei.
4. A sentença ora recorrida consta de fls. 68 a 72v dos autos, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido. Nessa sentença, foram dados por provados só os factos acusados 1 e 2.
5. De acordo com a fundamentação probatória dessa sentença:
– a arguida admitiu, na audiência de julgamento, a prática dos factos por que vinha acusada, mas declarou que não sabia que a sua conduta violava a lei de Macau (cfr. o teor das linhas 8 a 9 da página 3 do texto da sentença, a fl. 69 dos autos);
– o Tribunal recorrido julgou que: não é possível provar que a arguida tenha continuado ainda a filmar depois da oposição expressamente manifestada pela guarda policial ofendida; os factos conhecidos na audiência não bastam para provar que o acto da arguida tenha violado a vontade de outrem; portanto, não se pode dar por provado o facto acusado segundo o qual a arguida, sem ser apoiada em motivo justificado, e com violação da vontade da ofendida, usou o telemóvel para filmar a ofendida que se encontrava a executar funções de guarda policial, nem dar por provados os outros factos acusados tendentes à aferição da intenção da prática do delito penal em causa pela arguida (cfr. as considerações tecidas pelo Tribunal recorrido no último parágrafo da mesma página 3 do texto da sentença).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, apreciando.
O Ministério Público ora recorrente apontou sobretudo à decisão absolutória penal da Primeira Instância o vício de erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
Pois bem, sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos:
O Tribunal recorrido considerou inclusivamente não provado o facto acusado 3. Mas a arguida, na audiência de julgamento, já admitiu inclusivamente este facto acusado. Aliás, o que a arguida não admitiu foi apenas a matéria descrita no último facto acusado (facto acusado 5).
Por outro lado, dos factos já provados 1 e 2, deduz-se congruentemente, nos termos permitidos pelo art.o 342.o do Código Civil, que na altura a arguida e a guarda policial ofendida se encontravam em relação de tensão por causa do processamento policial acusatório do acto de fumar da arguida, e foi naturalmente por isso que a arguida pegou no telemóvel para filmar a ofendida, o que, em conjugação com o desejo, manifestado pela ofendida, de procedimento criminal no âmbito dos presentes autos penais contra a arguida, bastaria, conforme as regras da experiência da vida humana, para dar por provado que o acto inicial da arguida de filmar a ofendida tivesse sido praticado com violação da vontade desta.
O acima exposto evidencia que o Tribunal recorrido não acatou as leges artis e as regras da experiência da vida ao dar por não provado tal facto acusado 3, segundo o qual a arguida, sem ser apoiada em motivo justificado, e com violação da vontade da ofendida, usou o telemóvel para filmar a ofendida que se encontrava a executar funções de guarda policial.
É de notar que não se poderia invocar a circunstância de a ofendida só ter tomado conhecimento da já prática do acto de filmar da arguida após a alerta feita por colega de trabalho, como um dos factores para se concluir pela falta de provas suficientes para demonstrar que tal acto da arguida tivesse sido praticado contra a vontade da ofendida.
É que se a ofendida não soube logo, por percepção própria, desse acto da arguida, como lhe foi possível manifestar também logo a sua oposição à pretensão da arguida de a filmar, antes da iniciação do acto de filmar da arguida?
Portanto, importa, como no caso concreto dos autos, ajuizar qual seria a postura da ofendida, se, por hipótese, ela tivesse sabido logo da pretensão da arguida de a filmar, antes da iniciação do acto de filmar.
Com efeito, “Para a conduta ser típica bastará que contrarie a vontade presumida do portador concreto do direito à imagem” (cfr. em detalhes, os comentários doutrinários de MANUEL DA COSTA ANDRADE, in COMENTÁRIO CONIMBRICENSE DO CÓDIGO PENAL, PARTE ESPECIAL, TOMO I, dirigido por JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Coimbra Editora, 1999, página 833, terceiro parágrafo).
Há, pois, que reenviar, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 2, do CPP, com fundamento na constatação efectiva do assacado vício de erro notório na apreciação da prova aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do mesmo Código, o processo para novo julgamento no TJB, por um Tribunal Colectivo, a quem caberá julgar os factos acusados 3 a 5, e depois decidir juridicamente da causa penal em questão, em função dos factos acusados 1 e 2 já dados por provados na sentença ora recorrida e do resultado do novo julgamento dos ditos factos acusados 3 a 5.
Procede o recurso, embora com fundamentação concreta algo diversa da sustentada na motivação do recurso, e sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada (sendo de notar que a decisão do reenvio do processo para novo julgamento não afecta a decisão de arbitramento oficioso da indemnização já tomada na sentença recorrida, por esta parte decisória civil não ser objecto do presente recurso).
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso do Ministério Público, reenviando o processo para novo julgamento no Tribunal Judicial de Base, por um Tribunal Colectivo, a quem caberá julgar os factos acusados 3 a 5, e depois decidir juridicamente da causa penal em questão, em função dos factos acusados 1 e 2 já dados por provados na sentença ora recorrida e do resultado do novo julgamento dos ditos factos acusados 3 a 5.
Custas do recurso pela arguida (por ter defendido ela a improcedência do mesmo), com duas UC de taxa de justiça e mil patacas de honorário ao seu Ex.mo Defensor Oficioso.
Comunique a presente decisão à guarda policial ofendida.
Macau, 16 de Julho de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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