Processo n.º 828/2019 Data do acórdão: 2020-7-23
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– violação de leges artis
S U M Á R I O
Há erro notório na apreciação da prova como vício referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 828/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão proferido a fls. 765 a 775 do Processo Comum Colectivo n.º CR3-17-0154-PCC do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), na parte penal que absolveu o 1.o arguido A, o 2.o arguido B e o 3.o arguido C dos pronunciados três crimes de burla em valor consideravelmente elevado do art.o 211.o, n.o 4, alínea a), do Código Penal (CP) (quanto aos três arguidos, alegadamente em co-autoria material, na forma consumada) e três crimes de burla em valor elevado do art.o 211.o, n.o 3, do CP (a respeito apenas aos 2.o e 3.o arguidos, alegadamente em co-autoria material, na forma consumada), veio a Digna Delegada do Procurador recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), imputando a essa decisão penal, na motivação apresentada a fls. 789 a 795v dos presentes autos correspondentes, erro notório na apreciação da prova com violação do art.o 114.o do Código de Processo Penal (CPP), contradição insanável da fundamentação e erro na aferição do dolo dos três arguidos, para rogar o reenvio do processo para novo julgamento no TJB.
Ao recurso, responderam os três arguidos unamente a fls. 811 a 816 dos autos, no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer a fls. 858 a 859v, pugnando pelo provimento do recurso, por entendida efectiva constatação do vício de erro notório na apreciação da prova, aquando da tomada da decisão absolutória penal em causa.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão final da Primeira Instância (ora recorrido pelo Ministério Público na parte penal absolutória dos três crimes de burla em valor consideravelmente elevado e dos três crimes de burla em valor elevado em causa) ficou proferido a fls. 765 a 775v, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. Confrontando-se a factualidade com relevância penal então imputada aos três arguidos (e como tal descrita no despacho de pronúncia de fls. 488v a 491, com um facto aditado pelo Ministério Público na audiência de julgamento – cfr. a correspondente acta, na parte concretamente constante da fl. 760) com a factualidade descrita como provada e não provada na fundamentação fáctica desse acórdão, sabe-se que o Tribunal recorrido acabou por julgar:
– por inteiramente provados apenas os factos pronunciados 1, 3, 7, 11;
– por parcialmente provados os factos pronunciados 4, 5, 8 a 9, o facto imputado aditado 9-a, e os factos pronunciados 12 a 16;
– e por não provados os factos pronunciados 2, 6 e 10.
3. Após decorridos quase dois meses contados da leitura do acórdão recorrido, faleceu o 3.o arguido, depois da interposição do recurso do Ministério Público e antes da subida deste recurso para este TSI, tendo a M.ma Juíza titular do presente processo em primeira instância mandado, por seu despaho de fl. 835, arquivar o processo penal em causa na parte respeitante ao 3.o arguido.
4. O mesmo acórdão final da Primeira Instância, apesar da aí decidida absolvição penal, por entendida insuficiência das provas, dos três arguidos de todos os crimes de burla por que vinham pronunciados, condenou o 1.o arguido, na qualidade de 1.o demandado civil, a pagar indemnizações de danos patrimoniais aos três ofendidos demandantes dos autos, já constituídos assistentes, chamados D, E e F, no valor de meio milhão de dólares de Hong Kong para cada um desses demandantes, com juros legais a contar desde a data desse acórdão até integral e efectivo pagamento.
5. Na fundamentação probatória da decisão absolutória penal em causa, o Tribunal recorrido chegou a afirmar (nas últimas três linhas do último parágrafo da página 15 do texto do seu acórdão, a fl. 772 dos autos) que as provas dos autos não bastavam para demonstrar que os três arguidos não tinham ido tratar, para os três ofendidos, qualquer assunto de imigração por investimento.
6. A fl. 71 dos autos, consta uma resposta subscrita em 15 de Março de 2012 pelo Senhor Presidente do Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau, e dirigida ao Senhor Director da Polícia Judiciária, segundo a qual: após compulsada a base de dados de pedidos de autorização de residência temporária, até à última data de 14 de Março de 2012, não existem informações sobre os pedidos referentes aos indivíduos e à sociedade comercial chamados E, D, F e Laboratório Farmacêutico G Macau Lda (G製藥科技有限公司).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, apreciando.
O Ministério Público ora recorrente apontou sobretudo à decisão absolutória penal da Primeira Instância o vício de erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
Pois bem, sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos:
O Tribunal recorrido afirmou, inclusivamente, na fundamentação probatória da sua decisão absolutória penal, que as provas dos autos não bastavam para demonstrar que os três arguidos não tinham ido tratar, para os três ofendidos, qualquer assunto de imigração por investimento.
Contudo, segundo a resposta escrita, ora constante de fl. 71 dos autos, então subscrita pelo Senhor Presidente do Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau, e dirigida ao Senhor Director da Polícia Judiciária: após compulsada a base de dados de pedidos de autorização de residência temporária, até à última data de 14 de Março de 2012, não existem informações sobre os pedidos referentes aos indivíduos e à sociedade comercial chamados E, D, F e Laboratório Farmacêutico G Macau Lda (G製藥科技有限公司).
Essa data de 14 de Março de 2012 já foi depois das datas dos factos pronunciados, sendo certo que conforme a factualidade imputada, o 1.o arguido era um dos sócios desse Laboratório, por ele explorado.
Assim sendo, aquele referido juízo de valor formado pelo Tribunal recorrido aquando do julgamento dos factos feriu patentemente as leges artis. E como esse mesmo juízo de valor arrastou a razoabilidade da decisão feita pelo mesmo Tribunal sobre boa parte dos factos imputados com relevância penal em sede do tipo-de-ilicito de burla, é de reenviar, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 2, do CPP, com fundamento na constatação efectiva do assacado vício de erro notório na apreciação da prova aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do mesmo Código, todo o objecto penal do processo (com excepção da parte referente ao 3.o arguido, falecido) para novo julgamento no TJB, por um Tribunal Colectivo.
Procede, pois, o recurso, não sendo já mister conhecer do remanescente invocado pelo Ministério Público na motivação do recurso como objecto também do recurso (sendo de notar que a presente decisão do reenvio do processo para novo julgamento não afecta a decisão já tomada no acórdão recorrido sobre o pedido cível dos três ofendidos, por esta parte da decisão não ser objecto do presente recurso).
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso do Ministério Público, reenviando todo o objecto penal do processo (com excepção da parte respeitante ao 3.o arguido) para novo julgamento no Tribunal Judicial de Base, por um Tribunal Colectivo.
Custas do recurso pelos 1.o e 2.o arguidos (por eles terem defendido a improcedência do recurso), com duas UC de taxa de justiça individual, devendo cada um deles pagar ainda oitocentas patacas à sua Ex.ma Defensora Oficiosa. E fixam em oitocentas patacas os honorários da Ex.ma Defensora Oficiosa do 3.o arguido, a suportar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 23 de Julho de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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