Processo n.º 108/2020 Data do acórdão: 2020-7-23 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– metanfetamina
– quantidade de referência de uso diário
– art.o 14.o, n.o 2, da Lei n.o 17/2009
– art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009
– crime de consumo punido com moldura penal do crime de tráfico
– Lei n.o 10/2016
S U M Á R I O
Estando provado, no caso, que a arguida deteve 1,33 gramas de quantidade líquida de metanfetamina para seu consumo pessoal, e excedendo essa quantidade o quíntuplo da quantidade de referência de uso diário dessa substância, fixada no mapa de quantidades em anexo à Lei n.o 17/2009, ela deve ser punida pela prática de um crime de consumo ilícito de estupefacientes, por força do n.o 2 do art.o 14.o dessa Lei (na sua nova redacção dada pela Lei n.o 10/2016, que entrou já vigor na data da acima referida conduta de detenção), conjugadamente com a moldura correspondente à do art.o 8.o, n.o 1, da mesma Lei 17/2009 (na dita redacção nova), por não se vislumbrar, no caso, qualquer situação de estar a ilicitude dos factos praticados por ela consideravelmente diminuída.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 108/2020
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
Arguida recorrida: A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 116 a 121 do Processo Comum Colectivo n.° CR2-19-0300-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou condenada a arguida A, aí já melhor identificada, como autora material, na forma consumada, de um crime de consumo ilícito de estupefacientes, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.os 14.o, n.os 2 e 3, e 11.o, n.o 1, alínea 1), da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016, de 28 de Dezembro), em dois anos de prisão, suspensa na execução por dois anos.
Inconformado, veio o Ministério Público recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando (no seu essencial) e rogando o seguinte na sua motivação de recurso apresentada a fls. 127 a 132 dos presentes autos correspondentes: no caso dos autos, deve ser afastada a aplicação do art.o 11.o da Lei n.o 17/2009, na redacção dada pela Lei n.o 10/2016, pelo que a arguida deve ser condenada, como autora material, na forma consumada, de um crime de tráfico ilícito de estupefaciente e de um crime de consumo ilícito de estupefaciente, em pena de prisão não inferior a cinco anos quanto ao primeiro crime, e em pena de prisão não inferior a três meses quanto ao segundo, e, a final, em pena única não inferior a cinco anos e três meses.
Ao recurso respondeu a fls. 139v a 140 a arguida recorrida, defendendo a manutenção do julgado.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 159 a 160v, pugnando pelo provimento do recurso, com conseguinte condenação da arguida finalmente em pena única não inferior a cinco anos e três meses de prisão.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão recorrido consta de fls. 116 a 121, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. Conforme a matéria de facto aí dada por provada: em 3 de Outubro de 2018, o pessoal da Polícia Judiciária encontrou no quarto da arguida, inclusivamente, cristais brancos, os quais continham, após comprovação feita pelo exame laboratorial, 1,33 gramas da quantidade líquida de metanfetamina no seu interior; a arguida adquiriu e detinha isso para consumo; a arguida é delinquente primária, com curso secundário elementar completo como habilitações académicas, e dez mil patacas de rendimento mensal, e com uma filha a seu cargo.
3. Na acusação então deduzida e constante de fls. 90 a 91, o Ministério Público imputou à arguida a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes e de um crime de consumo ilícito de estupefacientes.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
A argumentação principal concretamente tecida pelo Ministério Público na sua motivação do recurso tem a ver com a questão de subsunção dos factos provados ao Direito, a ser abordada de modo seguinte:
O Tribunal recorrido já deu por provado que a arguida deteve, inclusivamente, 1,33 gramas da quantidade líquida de metanfetamina para seu consumo pessoal.
Essa concreta quantidade excede já, como admitiu o próprio Tribunal recorrido, o quíntuplo da quantidade de referência de uso diário dessa substância, fixada legalmente (no mapa de quantidades, em anexo à Lei n.o 17/2009).
Pois bem, à data dos factos da detenção da referida quantidade líquida de metanfetamina pela arguida, já entrou em vigor a nova redacção dada à Lei n.o 17/2009 pela Lei n.o 10/2016, prevendo o n.o 3 do art.o 14.o da Lei n.o 17/2009, nessa nova redacção, que “[…] são contabilizadas as […] substâncias […] que se destinem a consumo pessoal na sua totalidade, ou aquelas que, em parte, sejam para consumo pessoal e, em parte, se destinem a outros fins ilegais”.
Assim sendo, como a quantidade líquida total de metanfetamina detida em autoria material pela arguida para seu consumo já ultrapassa o quíntuplo da quantidade de referência de uso diário da mesma substância, o acto delitual penal seu de consumo ilíctio de estupefaciente deve ser punido com a moldura penal prevista no do art.o 8.o, n.o 1, por força sobretudo do n.o 2 do art.o 14.o da mesma Lei n.o 17/2009 (na sua dita redacção nova), e não nos termos do art.o 11.o, n.o 1, alínea 1) dessa Lei (na mesma redacção nova) (precisamente porque é o n.o 2 desse art.o 11.o que manda que “Na ponderação da ilicitude consideravelmente diminuída, nos termos do número anterior, deve considerar-se especialmente o facto de a quantidade […] na disponibilidade do agente não exceder cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade […] anexo à presente lei […]”), por não se vislumbrar, no caso dos autos, qualquer situação de estar a ilicitude dos factos praticados pela arguida consideravelmente diminuída.
O entendimento acima exposto está em sintonia com a seguinte explanação jurídica tecida no douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância de 4 de Outubro de 2019 do Processo n.o 87/2019 (reafirmada inclusivamente no douto Acórdão desse Venerando Tribunal de 26 de Fevereiro de 2020 do Processo n.o 11/2020):
– <<[…] nos seus n.os 2 e 3 do artigo 14.º, inovadoramente, a Lei n.º 17/2009, na redacção introduzida pela Lei n.º 10/2016, mandou aplicar, consoante os casos, as disposições dos artigos 7.º, 8.º ou 11.º, caso as plantas, substâncias ou preparados que o agente cultiva, produz, fabrica, extrai, prepara, adquire ou detém (para consumo próprio) constem do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à lei, e a sua quantidade exceder cinco vezes a quantidade deste mapa.
O que quer dizer que, actualmente, o consumo de estupefacientes ou a mera detenção para consumo pessoal do agente, são punidos com as penas dos artigos 7.º, 8.º ou 11.º, caso as plantas, substâncias ou preparados que o agente cultiva, produz, fabrica, extrai, prepara, adquire ou detém (para consumo próprio) constem do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à lei, e a sua quantidade exceder, cinco vezes a quantidade deste mapa.
Daqui podemos concluir que faz parte do tipo do artigo 14.º, n.os 1 e 2, a finalidade de consumo das substâncias (o n.º 2 refere “o agente referido no número anterior”) em medida superior a cinco à prevista no mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à lei.
Por isso, a quantidade consumida ou detida para consumo, acrescida ou não, em parte, com as quantidades que “ se destinem a outros fins ilegais” (n.º 3 do artigo 14.º), desde que acima das mencionadas cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário, só pode relevar em sede de medida da pena, mas não, por si só, para efeitos de se considerar o agente como actuando com ilicitude consideravelmente diminuída, dado que o limite relevante da lei é a quantidade referente a cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário.
Ou seja, se se provar apenas que o agente detém para consumo pessoal uma quantidade de seis ou sete vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário, pouco superior às cinco vezes, não é possível, sem prova de outras circunstâncias atenuantes, considerar que actuou com ilicitude consideravelmente diminuída, para efeitos de punição nos termos dos artigos 14.º e 11.º da Lei, sendo punido, portanto, nos termos dos artigos 14.º e 8.º. De outra forma estar-se-ia a desvirtuar a intenção legislativa, que fixou como limite cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário e não seis ou sete vezes.
[…]
[…]
[…] a circunstância de a quantidade detida ser mais de 5 vezes a quantidade de referência do mapa anexo à lei, não obsta à aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 11.º.
Isso é certo, só que não se provou qualquer facto donde resulte que a ilicitude dos factos se mostra consideravelmente diminuída, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados.
A circunstância de a quantidade detida ser pouco superior a 5 vezes a quantidade de referência do mapa anexo à lei, não é suficiente, exactamente porque o limite é o mencionado e não outro.>>
Com o que procede, mas apenas parcialmente, o pedido principal formulado na motivação do recurso (posto que a arguida, detendo a droga apenas para consumo próprio, praticou um só crime, qual seja, o de consumo ilícito de estupefaciente, apesar de este crime dever ser punido pela moldura correspondente ao crime de tráfico ilícito de estupefaciente).
Em sede da medida da pena, ponderadas todas as circunstâncias já apuradas em primeira instância, e consideradas as prementes necessidades da prevenção geral, crê-se, aos padrões dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do Código Penal, que uma pena de cinco anos e dois meses de prisão será adequada ao caso da arguida.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar parcialmente provido o pedido principal formulado no recurso do Ministério Público, passando, por conseguinte, a condenar a arguida A como autora material, na forma consumada, de um crime de consumo ilícito de estupefacientes, previsto pelo art.o 14.o, 2, da Lei n.o 17/2009 (na sua redacção nova dada pela Lei 10/2016), e conjugadamente punível pela moldura referida no art.o 8.o, n.o 1, da mesma Lei (também na mesma redacção nova), na pena de cinco anos e dois meses de prisão.
Pagará a arguida metade das custas do recurso (por ter defendido ela a improcedência do recurso), e uma UC de taxa de justiça.
Fixam em mil patacas os honorários da sua Ex.ma Defensora Oficiosa, a meias pela arguida e pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 23 de Julho de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
Processo n.º 108/2020 Pág. 11/11