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Processo nº 307/2020
Data do Acórdão: 09JUL2020


Assuntos:

Pluralidade de execuções sobre os mesmos bens penhorados
Princípio do caso julgado
Dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores


SUMÁRIO

O dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores, imposto pelo artº 5º/2, in fine, da LBOJM, não pode ceder perante as razões que se prendem nomeadamente com a vontade das partes e a economia e conveniência processual, sob pena de pôr em perigo a função de reposição da justiça dos recursos ordinários e constituir grave ameaça à própria certeza e segurança jurídica inerente às decisões transitadas em julgado.


O relator



Lai Kin Hong


Processo nº 307/2020


Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I

No âmbito dos autos de acção executiva nº CV1-16-0053-CEO que correm os seus termos no 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, movida pela Sociedade de Promoção de Jogos A Limitada, contra B, ambos devidamente identificados nos autos, depois de terem sido efectuada a penhora dos bens do devedor, citados os credores com garantia real sobre os bens penhorados e apresentadas as reclamações de crédito, foi proferido seguinte despacho determinando a suspensão da execução:
  O credor reclamante, BANCO C, S.A. vem requerer que a execução sobre as fracções autónomas “L20”, “M20”, “N20” e “O20”, seja suspensa nos presentes autos, uma vez que a venda sobre as aludidas fracções autónomas se encontra a proceder nos autos CV2-16-0226-CEO.
  Notificado o exequente e demais credores com garantia real sobre as aludidas fracções autónomas, só o credor BANCO D, LIMITADA, vem oferecer a palavra a fls. 959, dizendo que se não opõe a que a venda judicial das aludidas fracções seja feita nos autos CV2-16-0226-CEO. O silêncio dos demais equivale também a não oposição.
  Assim, não havendo oposição tanto do exequente como dos demais credores, determino que nos presentes autos seja suspensa a execução sobre as fracções autónomas “L20”, “M20”, “N20” e “O20”, melhor id nos autos, continuando a venda sobre as mesmas a proceder nos autos CV2-16-0226-CEO.
  Notifique.
  Comunique aos autos CV2-16-0226-CEO, para, após o pagamento aos credores seja transferido o eventual remanescente do produto da venda aos presentes autos, uma vez que as aludidas fracções autónomas também se encontram penhoradas nos presentes autos.
  Notifique.

Notificado e inconformado, veio o credor reclamante BANCO D, Limitada, recorrer desse despacho para esta segunda instância concluindo e pedindo:

A. Violou o despacho recorrido o artigo 764º, nº 1 do CPC e o princípio do caso julgado.
B. Nos termos do artigo 764º, nº 1 do CPC, se a penhora estiver sujeita a registo é por este que a sua antiguidade se determina.
C. De acordo com o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que a antiguidade estabelecida no artigo 764º, nº 1 determina que seja este o processo a prosseguir e não o processo CV2-16-0226-CEO.
D. A decisão proferida, a fls. 960, viola assim o artigo 764º, nº 1 do CPC e faz tábua rasa do já decidido pelo Tribunal de Segunda Instância, relativamente a recurso já interposto no âmbito dos presentes autos, pelo que não pode ser acolhida, violando o princípio da autoridade do caso julgado.
E. Isto é, pretende-se o mesmo efeito prático-jurídico, no quadro da relação material controvertida, a que decisão do Tribunal de Segunda Instância obstou, ao determinar qual a vontade concreta da lei: a graduação e pagamento, em processo cuja penhora não é a mais antiga.
F. A violação do instituto do caso julgado põe em causa o prestígio dos tribunais, que ficaria altamente comprometido se a mesma situação concreta, uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente, e os princípios da certeza ou segurança jurídica.
G. Nada obsta a que a venda seja feita no processo CV2-16-0226-CEO mas o produto da venda deve ser transferido para estes autos e distribuido de acordo com o que for determinado na sentença de graduação aqui proferida.
Termos em que deve ser proferido acórdão que revogue a decisão recorrida, de supensão de execução quanto às fracções em causa, a qual deve ser substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos, proferindo-se sentença de graduação de créditos, sem prejuízo da venda poder ser efectuada no processo CV2-16-0226-CEO e o produto da mesma transferido para os presentes presentes autos e distribuido de acordo com a sentença de graduação que vier aqui a ser proferida.

Na mesma data em que foi proferido o acima referido despacho recorrido que determinou a suspensão da execução nos autos principais de execução, o Exmº Juiz titular da presente acção executiva principal, nos autos de reclamação de créditos que correm por apenso, julgou extinta a instância da reclamação de créditos por inutilidade superveniente, pelo despacho de teor seguinte:
  Tendo em consideração que a reclamação de créditos em relação às fracções autónomas “L20”, “M20”, “N20” e “O20”, objecto dos presentes autos de reclamação de créditos, foi também objecto de decisão nos autos CV2-16-0226-CEO-C (cfr. fls. 947 a 954 dos autos de execução), deixou de ter utilidade a prossecução da reclamação sobre as mesmas fracções nos presentes autos.
  Nestes termos, julgo extinta a instância por inutilidade superveniente.
  Custas pelos reclamantes em proporção.
  Notifique.

Não se conformando com essa decisão que julgou extinta a instância, o credor reclamante BANCO D, Limitada, recorreu da decisão para esta segunda instância, concluindo e pedindo:
A. Violou o despacho recorrido o artigo 764º, nº l do CPC e o princípio do caso julgado.
B. Nos termos do artigo 764º, nº l do CPC, se a penhora estiver sujeita a registo é por este que a sua antiguidade se determina.
C. De acordo com o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que a antiguidade estabelecida no artigo 764º, nº l determina que seja este o processo a prosseguir e não o processo CV2-16-0226-CEO.
D. A decisão proferida, a fls. 361, viola assim o artigo 764º, nº 1 do CPC e faz tábua rasa do já decidido pelo Tribunal de Segunda Instância, relativamente a recurso já interposto no âmbito dos presentes autos, pelo que não pode ser acolhida, violando o princípio da autoridade do caso julgado.
E. Isto é, pretende-se o mesmo efeito prático-jurídico, no quadro da relação material controvertida, a que a decisão do Tribunal de Segunda Instância obstou, ao determinar qual a vontade concreta da lei: a graduação e pagamento, em processo cuja penhora não é a mais antiga.
F. A violação do instituto do caso julgado põe em causa o prestígio dos tribunais, que ficaria altamente comprometido se a mesma situação concreta, uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente.
G. A decisão de fls. 361, nunca poderia ser acolhida, já que põe em causa os princípios da certeza e da segurança jurídica e os efeitos jurídicos do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância já proferido.
Termos em que deve ser proferido acórdão que revogue a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos, proferindo-se sentença de graduação de créditos.

Admitidos os recursos e devidamente tramitadas as alegações, foram proferidos pelo Exmº Juiz autor das decisões recorridas os seguintes despachos de sustentação.

Em relação ao primeiro recurso da decisão proferida nos autos principais de execução:
  Nos presentes autos a recorrente, credor reclamante BANCO D, interpôs recurso da decisão que julgou inútil a prossecução da reclamação sobre as fracções autónomas “L20”, “M20”, “N20” e “O20” (cfr. fls. 361).
  É certo que por acórdão do Venerando TSI de 9 de Maio de 2019, foi decretado que deve admitir liminarmente a reclamação e determinar o prosseguimento do respectivo apenso.
  O Tribunal, acatando a decisão do Venerando TSI, foram admitidos as reclamações de créditos (cfr. decisão de fls. 327).
  Porém, em 30 de Setembro de 2019, por requerimento do outro credor reclamante BANCO C junto a fls. 945 a 954 dos autos principais da execução vem requerer a suspensão da execução sobre os aludidos bens e a venda judicial das mesmas fracções autónomas nos autos CV2-16-0226-CEO.
  Notificado o recorrente para pronunciar, o mesmo até manifestou expressamente a anuência de que a venda judicial das aludidas fracções autónomas seja feita nos autos CV2-16-0226-CEO (cfr. fls. 959 dos autos principais de execução). Mas, pretende que o produto da venda seja transferido à ordem dos presentes autos para pagamento.
  Parece-nos que o recorrente discorda da decisão recorrida, porque na decisão recorrida consta que o pagamento aos credores seja feita nos autos de CV2-16-0226-CEO.
  Ora, se nos autos CV2-16-0226-CEO já tem decisão transitada em julgado quanto à graduação, obviamente a melhor e a mais expedita forma de concretizar o pagamento aos credores seja o mesmos feito naqueles autos e só se transfere o remanescente aos presentes autos para o prosseguimento da execução.
  Entendemos que esta forma é a melhor que se coaduna com o princípio da economia processual evitando a repetição de actos desnecessários. E por, outro lado, havendo já decisão de graduação de créditos nos autos CV2-16-0226-CEO-C em que intervieram as mesmas partes, também se faz caso julgado, o que não aconselhe a repetição da mesma graduação nos presentes autos.
  Assim, por se entender que a decisão objecto do recurso corresponde à mais integral legalidade, mantenho-a, sustentamos na íntegra a decisão recorrida.
*
  Passe certidão de fls. 945 a 959 dos autos principais de execução a fim de juntar aos presentes autos.
*
  Após, desapensa-se o presente Apenso remetendo o mesmo ao Venerando TSI nos termos do artigo 618.º do CPC.

E quanto ao segundo recurso interposto no apenso de reclamação de créditos, sustou o Exmº Juiz a quo nestes termos:
  Nos presentes autos a recorrente, credor reclamante BANCO D, interpôs recurso da decisão que deferiu a suspensão da execução sobre as fracções autónomas “L20”, “M20”, “N20” e “O20”, na sequência do requerimento apresentado pelo outro credor reclamante, BANCO C, S.A.. nos autos principais de execução (cfr. fls. 13 dos presentes autos).
  Conforme consta nos autos da execução e exarada na decisão objecto do recurso, do requerimento do credor reclamante BANCO C, foram notificadas as partes e os demais credores reclamantes, e ninguém manifestou a oposição.
  Conforme também consta da decisão dos autos CV2-16-0226-CEO-C (fls. 19 a 21), apenso da reclamação de créditos, a reclamação de créditos sobre as referidas fracções autónomas “L20”, “M20”, “N20” e “O20” foi objecto de decisão e actualmente está a proceder a venda das mesmas naqueles autos de CV2.
  O decretamento da suspensão da execução das referidas fracções autónomas “L20”, “M20”, “N20” e “O20” nos autos principais foi precisamente para aguardar que a venda judicial sobre as mesmas fracções autónomas continuem a ser procedida nos autos de CV2-16-0226-CEO-C, em prol do princípio da economia processual.
  Ademais, consta também na decisão recorrida, que deu conhecimento aos autos CV2-16-0226-CEO que após a venda e o pagamento aos credores seja transferido o eventual remanescente do produto da venda aso presentes autos.
  Como se vê, a suspensão da execução sobre as mesmas fracções autónomas para além de satisfazer ao princípio da economia processual, também evita uma dupla venda judicial sobre os mesmos imóveis.
  Assim, por se entender que a decisão objecto do recurso corresponde à mais integral legalidade, mantenho-a. sustentamos na íntegra a decisão recorrida.
*
  Após, desapensa-se o presente Apenso remetendo o mesmo ao Venerando TSI nos termos do artigo 618.º do CPC.

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

II

Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

Não há questões que nos cumpre apreciar ex oficio.

Não obstante interpostos dois recursos que têm por objecto dois despachos diferentes, estes no fundo estão a compartilhar o mesmo plano de fundo e tem por objecto uma mesma questão, cuja apreciação e decisão deverá passar pelo apuramento do alcance do determinado no Acórdão do TSI datado de 09MAIO2019 (vide as fls. 314 a 319 dos autos de reclamação de crédito) e das consequências que, aos presentes autos e àquela execução que corre os seus termos no 2º Juízo Civil, deverão advir da sua inobservância pelos despachos ora recorridos.

Para a apreciação e a boa decisão de ambos os recursos, convém lembrar os seguintes elementos, existentes em ambas as execuções (a presente acção executiva nº CV1-16-0053-CEO e a acção executiva nº CV2-16-0226-CEO), tidos por nós relevantes à melhor compreensão do contexto e ao enquadramento das questões objecto da nossa apreciação.

Nos autos da acção executiva nº CV2-16-0226-CEO, movida pelo Banco C, S. A., contra a Sociedade de Construção E, Limitada, B, F, G e H:

* Foi efectuada a penhora dos bens imóveis id. a fls. 735 dos autos principais de execução (quais são 1/220 da fracção autónoma DR/C e fracções autónomas L20, M20, N20 e O20 do prédio id. nesses autos da acção executiva nº CV2-16-0226-CEO);

* Citados credores com garantia real sobre os bens penhorados, vieram o BANCO D, Limitada, e o Bank I Co. Ltd. Macau Branch, reclamar os seus créditos;

* O credor reclamante BANCO D, Limitada, pediu a sustação da execução quanto às fracções autónomas L20, M20, N20 e O20 igualmente penhoradas na execução nº CV1-16-0053-CEO;

* Por despacho datado de 07DEZ2018, foi indeferido esse pedido de suspensão da execução quanto aos bens igualmente penhorados na execução nº CV1-16-0053-CEO (fls. 224 do apenso de reclamação de créditos);

* Por despacho saneador-sentença datado de 07DEZ2018, foram graduados os créditos reclamados (fls. 225 do apenso de reclamação de créditos);

* Por despacho datado de 22FEV2019, foi designada o dia 26MAR2019 para a abertura de propostas a fim de se proceder à venda judicial dos bens penhorados (fls. 752 dos autos principais da execução);

* No acto de abertura de propostas realizado em 26MAR2019, foi declarada a aceitação de uma única proposta apresentada referente à verba nº 1 que é o parque de estacionamento, que não faz parte dos bens igualmente penhorados na execução nº CV1-16-0053-CEO (fls. 791 dos autos principais da execução);

* Por despacho datado de 27ABR2020, foi designado o dia 09JUN2020 para a abertura de propostas a fim de se proceder à venda judicial dos restantes bens penhorados (fracções autónomas L20, M20, N20 e 020, igualmente penhoradas na execução nº CV1-16-0053-CEO) (fls. 924 dos autos principais da execução); e

* No acto de abertura de propostas realizado em 09JUN2020, verificou-se que nenhuma proposta foi apresentada (fls. 949 dos autos principais da execução).

Na presente execução (nº CV1-16-0053-CEO) movida pela Sociedade de Promoção de Jogos A Limitada contra B:

* Foi efectuada a penhora dos bens imóveis id. a fls. 735 dos autos principais de execução (fracções autónomas L20, M20, N20 e O20 do mesmo prédio id. nesses autos da acção executiva nº CV1-16-0053-CEO);

* Citados credores com garantia real sobre os bens penhorados, vieram o BANCO D, Limitada e o Banco C, S. A. apresentar as reclamações de crédito.

* Por despacho datado de 31JAN2018 exarado nos presentes autos (de acção executiva nº CV1-16-0053-CEO), não foram admitidas reclamações de créditos, com fundamento na suspensão da presente execução quanto às fracções autónomas L20, M20, N20 e O20, nos termos do disposto no artº 764º/1 do CPC, por a penhora efectuada nos presentes autos ser posterior à efectuada naquela outra execução ordinária nº CV2-16-0226-CEO (cf. fls. 251 dos p. autos de reclamação de crédito);

* Inconformado com esse despacho da não admissão da reclamação de crédito por ele deduzida, veio o BANCO D, Limitada, interpor recurso dele para o TSI;

* Por Acórdão do TSI datado de 09MAIO2019 (vide as fls. 314 a 319 dos autos de reclamação de crédito), foi revogado esse despacho da não admissão da reclamação de crédito, foi determinada a substituição por outro que admitiria liminarmente a reclamação de créditos e ordenado o prosseguimento do respectivo apenso de reclamação de créditos;

* Baixados os autos, em cumprimento do ordenado nesse Acórdão do TSI, foi liminarmente admitida a reclamação de créditos por despacho datado de 14JUN2019 (fls. 327 dos presentes autos de apenso de reclamação de créditos);

* Por despacho datado de 25OUT2019 lançado nas fls. 361 dos presentes autos de apenso de reclamação de créditos (objecto de um dos presentes recursos), foi julgada extinta a execução sobre as fracções autónomas L20, M20, N20 e O20, com fundamento na inutilidade superveniente; e

* Por despacho datado de 25OUT2019 lançado nas fls. 960 dos autos principais de execução (objecto dum dos presentes recursos), foi determinada a suspensão da execução sobre as fracções autónomas L20, M20, N20 e O20, a fim de deixar a venda judicial desses bens penhorados a realizar nos autos da acção executiva nº CV2-16-0226-CEO.

Então apreciamos.

Por Acórdão do TSI datado de 09MAIO2019 (vide as fls. 314 a 319 dos autos de reclamação de crédito), que decidiu o recurso interposto pelo credor reclamante BANCO D, Limitada, no âmbito nos autos da reclamação de créditos que correm por apenso aos presentes autos principais da presente execução, foi revogado o despacho recorrido que não admitiu as reclamações de créditos deduzidas com fundamento na suspensão dos presentes autos de execução (nº CV1-16-0053-CEO) em virtude de sobre os bens aqui penhorados ter recaído outra penhora reputada mais antiga naqueloutra execução nº CV2-16-0226-CEO, nos termos prescritos no artº 764º/1 do CPC e em consequência determinado que fosse substituído por outro despacho a proferir pelo Tribunal a quo que admitisse liminarmente da reclamação de créditos e fizesse prosseguir o apenso da reclamação de créditos.

Segundo a fundamentação desse Acórdão do TSI, foi com base no erro nos pressupostos de facto que levou o Tribunal a quo a aplicar mal o disposto no artº 764º/1 do CPC.

Ora, reza o artº 764º/1 do CPC que pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, suspende-se quanto a estes a execução em que a penhora tenha sido posterior, podendo o exequente reclamar o respectivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga; se a penhora estiver sujeita a registo, é por este que a sua antiguidade se determina.

Trata-se de uma norma imperativa que, no caso da pendência de mais do que uma execução sobre os mesmos bens, manda a sustação daquela execução em que a penhora tiver sido efectuada posteriormente e que a dedução dos direitos pelo exequente e a reclamação de créditos pelos credores com garantia real sobre os bens penhorados sejam processadas no processo em que os bens tiverem sido penhorados em primeiro lugar.

Essa norma manda atender a antiguidade da penhora como critério para identificar qual é a execução que deverá prosseguir-se e qual deverá ser sustada.

Em vez de atender à antiguidade da penhora, o Tribunal a quo levou a conta a data do arresto, posteriormente convertida em penhora.

Eis o erro com base no qual decidiu a sustação da presente execução.

No fundo, o Acórdão do TSI limita-se a interpretar e aplicar a norma imperativa do artº 764º/1 do CPC.

Baixados os autos ao Tribunal a quo, foi proferido o despacho que admitiu as reclamações de crédito e mandou cumprir o disposto no artº 759º/2 do CPC.

Só que, a “sugestão” do credor reclamante Banco C, S. A. mediante o requerimento a fls. 329 dos presentes autos do apenso de reclamação de créditos, o Exmº Juiz declarou extinta a instância por inutilidade superveniente uma vez que a reclamação de créditos em relação às fracções autónomas “L20”, “M20”, “N20” e “O20”, objecto dos presentes autos de reclamação de créditos, foi também objecto de decisão nos autos CV2-16-0226-CEO-C (cfr. fls. 947 a 954 dos autos de execução), deixou de ter utilidade a prossecução da reclamação sobre as mesmas fracções nos presentes autos.

Foi mais ou menos com o mesmo fundamento, foi proferido nos autos principais da presente execução o despacho ora recorrido que determinou a suspensão da instância, aguardando a conclusão da venda judicial dos bens penhorados e o pagamento dos credores naqueloutra execução nº CV2-16-0226-CEO e a transferência do eventual remanescente do produto da venda aos presentes autos de execução.

Ou seja, o Acórdão do TSI não foi respeitado, pelo menos na parte que determinou o prosseguimento do apenso da reclamação de crédito no âmbito dos presentes autos de execução nº CV1-16-0053-CEO.

Como excepção ao princípio da independência dos tribunais, a lei impõe aos Tribunais e aos juízes o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores.

A este propósito, na anotação a um Acórdão do STJ de Portugal, citada por Amâncio Ferreira, Antunes Varela defende que ……, a hierarquia judicial, atenta a independência que caracteriza a actuação de todos os tribunais (……), traduz-se mais do dever de acatamento da decisão dos tribunais de recurso do que no dever de obediência às determinações dos juízes do tribunal superior – in Manual dos Recursos em Processo Civil, 6ª, p. 182.

Segundo os ensinamentos de Liebman, ……os magistrados se distinguem entre si somente pela diversidade de funções e que existe uma coordenação das actividades dos diversos órgãos em vista ao fim da justiça, resultando dessa coordenação o dever para o órgão da impugnação de rever e eventualmente reformar ou anular a sentença do órgão que tenha julgado anteriormente. – ibidem, pág. 183.

Por outro lado, segundo o ensinamento de Amâncio Ferreria, ob. cit. pp. 69 e s.s., a admissibilidade dos meios de impugnação, incluindo o recurso ordinário, funda-se na falibilidade humana e na possibilidade de erro por parte dos juízes.

O recurso ordinário visa atacar a decisão judicial por ser errada ou injusta.

A decisão é errada ou por padecer de error in procedendo, quando se infringe qualquer norma processual disciplinadora dos diversos actos processuais que integram o procedimento, ou de error in iudicando, quando se viola uma norma de direito substantivo ou um critério de julgamento, nomeadamente quando se escolhe indevidamente a norma aplicável ou se procede à interpretação e à aplicação incorrectas da norma reguladora do caso ajuizado.

A decisão é injusta quando resulta duma inapropriada valoração das provas, da fixação imprecisa dos factos relevantes, da referência inexacta dos factos ao direito e sempre que o julgador, no âmbito do mérito do julgamento, utiliza abusivamente os poderes discricionários, mais ou menos amplos.

Ou seja, o recurso ordinário existe para corrigir erro e repor a justiça posta em causa pela decisão errada.

Na esteira desses entendimentos doutrinários, é de afirmar que, tendo por fim assegurar a eficiente reposição da justiça posta em causa pela decisão errada e portanto geradora da injustiça e a boa coordenação das actividades dos diversos tribunais de várias instâncias em vista ao fim da justiça, o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores, imposto pelo artº 5º/2, in fine, da LBOJM, não deve ceder perante as razões que se prendem nomeadamente com a vontade das partes em contrário, a economia e a conveniência processual.

In casu, as razões que levaram o Tribunal a quo a decidir como decidiu, em ambos despachos recorridos, são justamente a vontade das partes e a economia processual.

A eventual aceitação da invocação da vontade das partes e a economia processual como argumentos válidos para justificar o não acatamento da decisão proferida em via de recurso pelo tribunal superior põe em perigo a função de reposição da justiça própria de recurso ordinário e constitui grave ameaça à própria certeza e segurança jurídica inerente às decisões transitadas em julgado.

Tendo violado o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso pelo tribunal superior e o princípio de caso julgado, não é de manter o decidido em ambos os despachos ora recorridos.

Aliás, conforme se vê supra, naqueloutra execução nº CV2-16-0226-CEO a venda judicial não foi ainda feita com êxito em relação aos bens também aqui penhorados, pois no acto de abertura de propostas realizado em 09JUN2020, nenhuma proposta foi apresentada (fls. 949 dos autos principais da execução).

Nem a graduação dos créditos já efectuada naqueloutra execução nº CV2-16-0226-CEO constitui qualquer impedimento ao cumprimento do determinado no Acórdão do TSI datado de 09MAIO2019, uma vez que a própria lei já prevê a hipótese da sustação da execução onde foi feita a graduação de créditos e , se for caso disso, esta será substituída ou incluída na nova sentença de graduação nos autos de execução onde a penhora tenha a maior antiguidade – artº 764º/3 do CPC.

Pelo que, devem ser revogado o despacho recorrido a fls. 361 do apenso da reclamação de crédito, que deve ser substituído por outro que ordene o prosseguimento do apenso com vista à prolação da sentença de graduação de créditos, e o despacho recorrido a fls. 960 dos autos principais da presente execução, que deve ser substituído por outro que determina o prosseguimento da execução na sua tramitação posterior e a comunicação aos autos de execução nº CV2-16-0226-CEO para ali ordenar, nos termos prescritos no artº 764º/1 do CPC, a sustação da execução sobre as fracções autónomas “L20”, “M20”, “N20” e “O20” do prédio identificado a fls. 153 nos presentes autos principais de execução, por estes bens terem sido penhorados primeiro nos presentes autos, sem prejuízo do prosseguimento dessa execução quanto aos bens que não tenham sido objecto da penhora efectuada nos presentes autos, e para a notificação do ali exequente e dos credores reclamantes, para, querendo, vir reclamar os seus créditos nos presentes autos.



Resumindo e concluindo:

O dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores, imposto pelo artº 5º/2, in fine, da LBOJM, não pode ceder perante as razões que se prendem nomeadamente com a vontade das partes e a economia e conveniência processual, sob pena de pôr em perigo a função de reposição da justiça dos recursos ordinários e constituir grave ameaça à própria certeza e segurança jurídica inerente às decisões transitadas em julgado.

Tudo visto resta decidir.

III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência em julgar procedentes os recursos:

1. Revogando o despacho recorrido a fls. 361 do apenso da reclamação de crédito, que deve ser substituído por outro que ordene o prosseguimento do apenso com vista à prolação da sentença de graduação de créditos; e

2. Revogando o despacho recorrido a fls. 960 dos autos principais da presente execução, que deve ser substituído por outro que determina o prosseguimento da execução na sua tramitação posterior e a comunicação aos autos de execução nº CV2-16-0226-CEO:

i. para ali ordenar, nos termos prescritos no artº 764º/1 do CPC, a sustação da execução sobre as fracções autónomas “L20”, “M20”, “N20” e “O20” do prédio identificado a fls. 153 nos presentes autos principais de execução, por estes bens terem sido penhorados primeiro nos presentes autos, sem prejuízo do prosseguimento dessa execução quanto aos bens que não tenham sido objecto da penhora efectuada nos presentes autos; e

ii. para a notificação do ali exequente e dos credores reclamantes para, querendo, vir reclamar os seus créditos nos presentes autos.

Sem custas.

Registe e notifique.

RAEM, 09JUL2020

Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Ho Wai Neng

307/2020-1