Processo nº 1225/2019
(Reclamação para a Conferência)
Data: 30 de Julho de 2020
ASSUNTO:
- Litisconsórcio necessário
- Desistência do recurso por um dos consórcios
- Ilegitimidade
SUMÁRIO
- A desistência do recurso por um dos consórcios não implica, face ao disposto do nº 2 do artº 240º do CPCM, ex vi do artº 1º do CPAC, a ilegitimidade activa “superveniente” da Recorrente.
O Relator,
Ho Wai Neng
Processo nº 1225/2019
(Reclamação para a Conferência – pedidos de revogação do despacho do relator)
Data: 30 de Julho de 2020
Reclamante: A Limitada
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
O Mmº Relator apresentou o projecto do acórdão nos seguintes termos:
“I – Introdução
Em 18 de Junho de 2020 foi proferida pela Relator deste processo a sentença constante de fls. 619 a 620, com o seguinte teor na parte final:
“(…)
Pelo que, por ser válido quanto ao objecto e quanto à qualidade da interveniente, homologo a desistência das instância constante do documento de fls. 600, destarte se extingue o presente procedimento nos termos do disposto nos artigos 84º/-d) e 86º do CPAC, conjugado com o artigo 242º/3, ex vi do preceituado no artigo 1º do CPAC, e absolvendo-se da instância os Recorridos (a Entidade Recorrida e os contra-interessados) (artigos 61º/2, 413º/-e), 414º e 412º/2, todos do CPC, ex vi do preceituado no artigo 1º do CPAC).
* * *
Custas pela Recorrente/Desistente, que se fixem em 6 UCs.
(…)”.
Tal decisão foi notificada às Partes em 22/06/2020 (fls. 622 e 623), veio a Recorrente consorciada (A Limitada) em 01/07/2020 reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 12º/2 do CPAC, pedindo que seja revogada a referida decisão do relator e mandando prosseguir os autos, por entender que a desistência de uma parte consorciada não afecta a posição da Recorrente/Requerente, fundamentando a sua posição no artigo 240º do CPC e os argumentos constantes de fls. 690 a 702, cujo teor se dá por reproduzido aqui para todos os efeitos legais.
*
Os contra-interessados pronunciaram pelo indeferimento do pedido, conforme o teor da resposta constante de fls. 740 a 747, cujo teor se dá por reproduzido aqui para todos os efeitos legais.
*
Cumpre analisar e decidir.
*
II – Apreciando
Comecemos pelo pedido da Requerente/Recorrente (parte consorciada), formulando ela o seguinte pedido:
54. Face ao exposto, resulta evidente que, por força do Artigo 240º No. 2 do CPC, aplicável aos autos ex vi do Artigo 1º do CPAC, a desistência da instância por parte da CRBC nos presentes tem apenas e só efeito no que toca a custas, em nada afectando a legitimidade activa da Reclamante, pelo que mal andou a Decisão ao decidir em contrário, devendo ser revogada em conformidade.
Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis que V. Exas. doutamente suprirão, requer sobre a presente reclamação recaia um Acórdão que
a. Revogue a Decisão de extinção por pretensa ilegitimidade activa superveniente, dado que, como se deixou patentemente exposto supra, ela não se verificou; e
b. Ordene o prosseguimento dos autos de recurso contencioso em epígrafe até final.
O despacho reclamado tem os seguintes fundamentos:
No presente recurso contencioso a parte activa, um consórcio, que é composto por A Limitada e B Corporation, veio a recorrer do despacho do Chefe do Executivo da RAEM, datado de 15/10/2019, pelo qual foi adjudicada a obra denominada Empreitada de concepção e construção da quarta ponte marítima Macau-Taipa.
Em 08/06/2020, a parte consorciada B Corporation veio, mediante o requerimento de fls. 600, dirigido a este Tribunal, pedir desistência da instância.
Em 09/06/2020, outra parte consorciada A Limitada veio, mediante o requerimento de fls. 601 a 602, manifestar a sua vontade de pretender continuar o procedimento, alegando, para tal, que, por força do disposto no artigo 240º/2 do CPC, ex vi do disposto no artigo 1º do CPAC, a desistência no caso de litisconsórcio necessário só produz efeitos quanto a custas.
O Digno.Magistrado do MP junto deste TSI emitiu o douto parecer no sentido de que a desistência de uma parte consorciada determina a extinção superveniente da instância.
Ora, quanto a este ponto, já tivemos oportunidade de pronunciar, nos autos de suspensão da eficácia, nos seguintes termos:
“(...)
A Requerente, A, Limitada, participou no concurso limitado por prévia qualificação para a execução da «Empreitada de Concepção e Construção da Quarta Ponte Marítima Macau - Taipa» em consórcio externo com a B Corporation, tendo as duas, em conjunto, apresentado uma proposta unitária e singular, bem como se comprometeram a apresentar a formalização do consórcio externo caso a empreitada lhes viesse a ser adjudicada. (Doc, 1, fls. E00024, E1, Caixa 8).
A propósito desta matéria escreveu o Dr. José Cândido de Pinho (Cfr. in Notas e Comentários ao CPAC, vol. II, pág. 210):
“Da mesma maneira, se num consórcio têm que estar todas as empresas do grupo pelo lado activo do recurso contencioso, igualmente o devem estar no procedimento de suspensão de eficácia, sob pena de ilegitimidade activa.”
Portanto, em matéria de processo, é uma espécie de situação de litisconsórcio necessário.
Só o não é se e na medida em que é possível defender o fraccionamento dos interesses em causa. Ou seja, para que a legitimidade activa singular se verifique, é preciso a Requerente alegar e provar a existência de créditos e prejuízos que só a ela, exclusivamente, diriam respeito, apesar de resultarem da empreitada levada a cabo pelo consórcio, coisa que na ausência da sua consorciada se revelaria praticamente impossível, desde logo por manifesta falta de alegação de factos e razões cabais nesse sentido.
A ilegitimidade activa é respaldada em caso essencialmente idêntico julgado no Ac. de 20-02-2015, pelo tribunal administrativo central de Portugal (Proc. 00239/12.6BEMDL), citado em nome de direito comparado, com o seguinte sumário:
I – O consórcio consiste num contrato pelo qual duas ou mais pessoas singulares ou colectivas que exerçam uma actividade económica se obrigam entre si a, de forma concertada, realizar certa actividade ou efectuar certa contribuição com o fim de prosseguir determinados objectivos referidos na lei (…).
II – Carece de legitimidade activa uma empresa integrante de consórcio externo formado por duas sociedades a quem foi adjudicado empreitada de obras públicas para propor, desacompanhada da sua consorciada, acção administrativa comum contra a entidade adjudicante pedindo a condenação daquela no pagamento de juros moratórios respeitantes a facturação inerente ao respectivo contrato de adjudicação.
III – Assim o exige a natureza da relação jurídica estabelecida entre as sociedades adjudicatárias constituídas em consórcio externo e a entidade adjudicante na medida em que sendo única a relação jurídica (a proposta apresentada a concurso pelas referidas sociedades é unitária e singular bem como o contrato celebrado) é plural numa das suas partes – artigo 28.º do CPC.»
Em Macau, a matéria de consórcio encontra-se regulada no artigo 528º e seguintes do Código Comercial (CCM), a doutrina consignada no acórdão citado vale perfeitamente para o ordenamento jurídico da RAEM, dada a semelhança do regime disciplinar do instituto de consórcio em causa.
Assim, seguido o raciocínio firmado no acórdão mencionado, é clara a ilegitimidade activa da Requerente.
(…)”.
Estas ideias valem igualmente para este processo principal, com a desistência da parte consorciada B Corporation, gera-se uma situação de ilegitimidade activa superveniente, que é do conhecimento oficioso e conduz à absolvição da instância (artigos 61º/2, 413º/-e), 414º e 412º/2, todos do CPC, ex vi do preceituado no artigo 1º do CPAC).(…).
A Recorrente fundamentou o seu pedido essencialmente no artigo 240º do CPC, em matéria de desistência de litigante, que dispõe:
(Confissão, desistência e transacção no caso de litisconsórcio)
1. No caso de litisconsórcio voluntário, é livre a confissão, desistência e transacção individual, limitada ao interesse de cada um na causa.
2. No caso de litisconsórcio necessário, a confissão, desistência ou transacção de algum dos litisconsortes só produz efeitos quanto a custas.
No entender da Recorrente/Requerente, a desistência por parte de outra parte consorciada não produz efeito da extinção da instância, pelo contrário, a continuada participação dela no procedimento é bastante para continuar o processo.
Ora, salvo o melhor respeito, não acolhemos este raciocínio, visto que:
1) – É certo que o artigo 240º do CPC se aplica subsidiariamente, por força do disposto no artigo 1º do CPAC, só que este último artigo manda “com as necessárias adaptações”.
2) – Quer ao nível doutrinal, quer ao jurisprudencial, é ideia assente que, no caso de concurso público em que o concorrente é composto por consórcio, se este pretender atacar a decisão proferida durante o concurso, é precisa a intervenção de todas as partes que compõem o respectivo consórcio, a falta de uma delas gera ilegitimidade das partes (activa ou passiva consoante a posição que assuma), e foram citadas várias decisões no despacho reclamado, relativamente às quais não vamos repetir aqui.
3) – Compreende-se que assim seja, porque, quando um consórcio participar num concurso público, significa que as partes consorciadas apresentam uma proposta conjunta perante a autoridade que abriu o respectivo concurso, prometando elas que honrarão a proposta por todas estas partes consorciadas. Ou seja, o consórcio é entendido aqui como um “ente úno”, uma entidade colectiva única, um interesse infraccionável perante a Entidade que abriu o concurso, porque no concurso público, está sempre em causa um interesse público.
4) – No caso sub judice, se uma parte consorciada desistiu do recurso, enquanto a ora Recorrente/Requerente pretende continuar, pergunta-se, como esta irá a continuar a honrar a proposta quando esta foi apresentada por mais do que uma partes consorciadas? O cumprimento do compromisso implica necessariamente a intervenção de todas elas, mas agora uma já desistiu! O que demonstra claramente a inutilidade da lide quando nesta participa apenas uma parte consorciada.
5) – Nestes termos, entendemos que a decisão ora reclamada não merece reparo, e como tal é de indeferir o pedido e manter a decisão em causa.
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III – Decidindo
Face ao exposto, e decidindo, acordam em indeferir o pedido da Requerente/Recorrente, mantendo-se a decisão ora reclamada.
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Custas pela Requerente/Recorrente, com taxa de justiça em 5 UCs.”
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Uma vez que ficou vencida a posição apresentada pelo Mmº Relator, passa o 1º Adjunto a elaborar o presente aresto, nos termos do nº 3 do artº 631º do CPCM, ex vi do nº 1 do artº 149º do CPAC.
Não duvidamos que estamos perante um caso de litisconsórcio necessário. Contudo, entendemos que, salvo o devido respeito, a desistência de um dos consórcios não implica, face ao disposto do nº 2 do artº 240º do CPCM, ex vi do artº 1º do CPAC, a ilegitimidade activa “superveniente” da Recorrente.
O nº 2 do artº 240º do CPCM é claro no sentido de que “No caso de litisconsórcio necessário, a confissão, desistência ou transacção de algum dos litisconsortes só produz efeitos quanto a custas”.
No caso em apreço, não é só A Limitada a interpor o recurso contencioso. Se assim fosse, estaríamos perante uma situação de ilegitimidade activa.
O presente recurso foi interposto pelo consórcio formado entre A Limitada e B Corporation.
Ou seja, no momento da interposição do recurso, a Recorrente dispõe da legitimidade activa.
Assim, uma vez já intervindo, a mera desistência de um deles, face ao disposto do nº 2 do artº 240º do CPCM, não gera ilegitimidade activa “superveniente” da Recorrente.
Por outro lado, não obstante a sua desistência do recurso, a eventual procedência do recurso também lhe aproveita (cfr. artº 77º do CPAC), daí que não se pode dizer que a sua desistência gera inutilidade superveniente da lide.
Pelo exposto, é de julgar procedente a reclamação apresentada, revogando a decisão reclamada na parte que determinou a absolvição da instância.
Sem custas.
Notifique e D.N.
*
RAEM, aos 30 de Julho de 2020.
Ho Wai Neng M°P°
Tong Hio Fong Joaquim Teixeira de Sousa
Fong Man Chong
(Vencido nos termos do projeto da decisão submetida à conferencia, acima integralmente transcrito no texto do acórdão antecedente)
2019-1225- reclamação-decisão-relator 9