Processo nº 291/2020
Data do Acórdão: 09JUL2020
Assuntos:
Impugnação da matéria de facto
Livre apreciação de provas
Convicção do Tribunal
Princípio da imediação
SUMÁRIO
1. Se é verdade que, por força do princípio da livre apreciação das provas consagrado no artº 558º do CPC, como regra geral, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, não é menos certo que a matéria de facto assente de primeira instância pode ser alterada nos termos e ao abrigo do disposto no artº 629º do CPC.
2. Apesar de a lei exigir sempre a objectivação e motivação da convicção íntima do Tribunal na fundamentação da decisão de facto, ao levar a cabo a sua actividade cognitiva para a descoberta da verdade material, consistente no conhecimento ou na apreensão de um acontecimento supostamente ocorrido no passado, o julgador não pode deixar de ser subjectivamente influenciado por elementos não explicáveis por palavras, nomeadamente quando concedem a credibilidade a uma testemunha e não a outra, pura e simplesmente por impressão recolhida através do contacto vivo e imediato com a atitude e a personalidade demonstrada pela testemunha, ou com a forma como reagiu quando inquirida na audiência de julgamento. Assim, desde que tenham sido observadas as regras quanto à valoração das provas e à força probatória das provas e que a decisão de facto se apresenta coerente em si ou se não mostre manifestamente contrária às regras da experiência de vida e à logica das coisas, a convicção do Tribunal a quo, colocado numa posição privilegiada por força do princípio da imediação, em princípio, não é sindicável.
3. O recurso ordinário existe para corrigir erro e repor a justiça posta em causa pela decisão errada. Para impugnar com êxito a matéria fáctica dada por assente na primeira instância, não basta ao recorrente invocar a sua discordância fundada na sua mera convicção pessoal formada no teor de um determinado meio de prova, ou identificar a divergência entre a sua convicção e a do Tribunal de que se recorre, é ainda preciso que o recorrente identifique o erro que, na sua óptica, foi cometido pelo Tribunal de cuja decisão se recorre.
4. Os julgadores de recurso, não sentados na sala de audiência para obter a percepção imediata das provas ai produzidas, naturalmente não podem estar em melhores condições do que os juízes de primeira instância que lidaram directamente com as provas produzidas na sua frente. Assim, o chamamento dos julgadores de recurso para a reapreciação e a revaloração das provas, já produzidas e/ou examinadas na 1ª instância, com vista à eventual alteração da matéria de facto fixada na 1ª instância, só se justifica e se legitima quando a decisão de primeira instância padecer de erros manifestamente detectáveis.
5. Para que possa abalar com êxito a convicção formada pelo Tribunal a quo com vista à revogação da decisão de facto e à sua ulterior modificação pelo Tribunal ad quem, é preciso que o recorrente identifique erro manifesto na valoração de provas e na fixação da matéria de facto, e não a simples divergência entre ele e o Tribunal no que diz respeito à valoração de provas ou à fixação da matéria fáctica. Integram em tais erros manifestos, inter alia, a violação de regras quanto à valoração de provas e à força probatória de provas, v. g. o não respeito à força vinculativa duma prova legal, e a contrariedade da convicção íntima do Tribunal a regras de experiência de vida e à lógica das coisas.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 291/2020
Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I
A, devidamente identificada nos autos, instaurou no Tribunal Judicial de Base contra B, os herdeiros de C (D, E, F e G) e D, todos devidamente identificados nos autos, e interessados incertos, uma acção ordinária que veio a ser registada sob o nº FMI-18-0013-CAO e correr os seus termos no Juízo de Família de de Menores do Tribunal Judicial de Base.
A final, foi a acção julgada improcedente pela seguinte sentença:
I – Relatório:
A (A), maior, solteira, de nacionalidade chinesa, portadora do BIRPM n.º …, residente em Coloane,…;
veio intentar a presente
Acção Ordinária de Impugnação e de Investigação da Maternidade
contra
1ª - B (B), casada, de nacionalidade chinesa, natural de cidade de Chong San – China, província de Kuong Tong, ausente em parte incerta;
2º – HERDEIROS DE C (C的繼承人), em representação deste, falecido no estado de solteiro e sem filhos, em …, de nacionalidade chinesa, portador do BIRPM n.º …, a saber:
1. D (D), maior, de nacionalidade chinesa, portador do BIRPM n.º …, residente em Coloane, no …;
2. E (E), de nacionalidade chinesa, portador do BIRPM n.º ..., residente em Coloane, no…;
3. F (F), de nacionalidade chinesa, portador do BIRPM n.º …, residente em Coloane, no…;
4. G (G), de nacionalidade chinesa, portadora do BIRPM n.º …, residente em Coloane, no…;
3º – D (D), por si e na qualidade de pai do C (C);
4ºs – INTERESSADOS INCERTOS (不確定利害關係人);
com os fundamentos apresentados constantes da petição inicial de fls. 56 a 63;
concluiu pedindo que fosse julgada procedente por provada a presente acção, e em consequência,
a. fosse declarado que B (B), nome que consta do assento de nascimento do falecido C(C) como sua mãe, não era o da mãe biológica deste;
b. fosse a Autora, cujo nome verdadeiro é A, declarada como mãe biológica do falecido C;
c. fosse ordenado o cancelamento no assento de nascimento do falecido C, da menção aí feita quanto a ser aí designada B sua mãe;
d. fosse ordenado o registo, por averbamento no assento de nascimento do falecido C, do reconhecimento da Autora como sua mãe.
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Citados pessoalmente os herdeiros de C (também o 3º Réu), seja D, E, F e G, estes não vieram contestar, sendo a 1º Ré e os Interessados Incertos actualmente representado pelo Ministério Público.
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Este Tribunal é o competente em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária.
O processo é o próprio.
Inexistem nulidades, excepções ou outras questões prévias que obstem à apreciação "de meritis".
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Procedeu-se a julgamento com observância do devido formalismo.
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II – Factos:
Dos autos resulta assente a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
- Em 17 de Junho de 1980, nasceu em Macau no Hospital Kiang Wu na Freguesia de Santo António, Concelho de Macau, o falecido, C.
- Em 22 de Setembro de 1987, o 3º Réu, D, declarou junto da então Conservatória do Registo de Nascimentos que a mãe do falecido, C, era B.
- A Autora tem, pelo menos, três filhos, uma de nome E, um de nome F e outra de nome G, todos filhos igualmente do 3º Réu.
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III – Fundamentos:
Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
Pela presente acção vem a Autora pedir que seja declarado que o nome B não é o nome da mãe biológica do falecido C; que a menção daquele nome no registo de nascimento de C seja cancelada; que seja declarado que a Autora é a mãe biológica de C; e que seja reconhecido e registado que a Autora é mãe de C.
Para o efeito, alega que a Autora que viveu em união de facto com o 3º Réu e desta relação nasceu C, em Macau, em 12 de Julho de 2017; que foi, nessa data, a Autora se encontrava clandestinamente em Macau onde veio ilegalmente; que, para evitar que a Autora e C fossem expulsos da Macau, o 3º Réu declarou na Conservatório do Registo de Nascimento que C era filho de B, apesar de nunca ter existido uma pessoa com este nome; que C sempre esteve sob os cuidados da Autora tendo esta, na qualidade de mãe, acompanhado o desenvolvimento e formação de C tratando-o sempre como filho e este àquela como mãe; que a Autora e o 3º Réu tiveram mais três filhos, a saber E, F e G, os quais, juntamente com a Autora e o 3º Réu, sempre viveram com C, todos em família; que os moradores da localidade onde essa família viveu sempre reputaram a Autora como mãe de C e este como filho daquela.
Tanto a partir dos factos alegados pela Autora como a partir dos pedidos formulados, vê-se que o que está aqui em causa são a relação materno-filial em que a 1ª Ré figura como mãe do falecido C, estabelecida por meio de declaração feita junto da então Conservatória do Registo de Nascimento, e a relação materno-filial da Autora e o falecido C.
A demonstrar-se o alegado pela Autora, assiste-lhe o direito de não apenas ver afastada a menção de B no registo de nascimento de C com mãe desta mas também de ser reconhecida como mãe de C.
Feito o julgamento, resultou provado que o falecido C estava, de facto, registado como filho de B e do 3º Réu.
Assim, para o efeito pretendido pela Autora, o afastamento da menção de B como mãe de C precede necessariamente o pedido de estabelecimento da maternidade.
É que, a alegada relação materno-filial entre a Autora e o falecido C só pode ser estabelecida depois de deixar de constar do registo de C qualquer menção na parte relativa à maternidade. Pois, dispõe o artigo 1675º do CC, que “Não é admitido o reconhecimento da maternidade em contrário da que conste do registo de nascimento” e 1702º, nº 1, do CC, que “Não é admitido o reconhecimento em contrário da filiação que conste do registo de nascimento enquanto este não for rectificado, declarado inexistente ou nulo ou cancelado.”
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Entrando na substância da presente acção, no que se refere à pretensão da Autora de ver declarado que o nome B não é o nome da mãe biológica de C e a menção de B como mãe de C cancelada do registo de nascimento deste último, a Autora não logrou demonstrar que o 3º Réu fez as declarações como vêm descritas na petição inicial, ou seja, que este declarara falsamente que a mãe de C se chamava B.
Assim, o pedido de declaração de que o nome B não é o nome da mãe biológica de C e o de cancelamento da respectiva parte do registo de nascimento não podem deixar de improceder.
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Ora, não estando afastada a menção de B com mãe de C no registo de nascimento deste, por força das normas dos 1675º e 1702º, nº 2, do CC, o pedido de reconhecimento da Autora como mãe de C e o averbamento desta relação no registo de nascimento de C também não podem proceder.
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IV – Decisão:
Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga improcedente a acção e, em consequência, absolve os Réus dos pedidos formulados pela Autora, A.
Custas pela Autora.
Notifique e registe.
Não se conformando com o decidido, veio a Autora recorrer da mesma concluindo e pedindo:
1. A factualidade a que se alude nos artigos 4.º,5.º,9.º, 13.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 20.º, 21.º, 22.º.24.º e 25.º da petição deveria ter sido julgada provada.
2. Nem a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto nem a fundamentação da sentença poderiam ter conduzido o Tribunal a quo a ter decidido que a recorrente não provou que o seu marido (o 3.º réu) declarou falsamente que a mãe do falecido C se chamava B.
3. Ambas as testemunhas referiram ter visto a autora grávida, sendo que a testemunha H (H) - tal qual resulta das passagens de gravação áudio acima indicadas - mencionou especificamente que assistiu à gestação e pós parto do C, que sempre viu toda a família junta - incluindo a recorrente e o C - em festas e no ano novo chinês, que só há uns meses, devido a este processo, soube que houve um engano quanto ao nome da recorrente - A (A) - e quanto ao nome indicado no registo civil (B), que nunca ninguém em Ká-Hó questionou que a recorrente não fosse a mãe do C e que a recorrente tratava todos os 4 filhos por igual.
4. A testemunha I (I), de 80 anos de idade e que sempre viveu em Ká-Hó, - tal qual resulta das passagens de gravação áudio acima indicadas - mencionou que viu a recorrente grávida pelo menos duas vezes, uma delas alguns meses antes do nascimento do C e que todos os 4 irmãos sempre se trataram entre si como “irmãos” ou “manos”.
5. A livre apreciação das provas não significa a ausência de regras e critérios, as quais, pois, serão as regras da vida e da experiência, as regras comuns da lógica, da razão e dos conhecimentos científicos que já entraram no conhecimento comum.
6. Em face de duas testemunhas que sempre viveram em Ká-Hó - uma delas, I (I), desde há 80 anos e que é o presidente da Associação de Moradores - mostra-se de atender ao sentido inequívoco do que foi dito pelas mesmas.
7. Antes de mais, que entre a aqui recorrente - que dá pelo nome de A (A) - existiu desde sempre um quadro de posse de estado em relação ao Fan Chi
Hang e também, aliás, entre este e os seus 3 irmãos.
8. Satisfeitos todos os requisitos e pressupostos, positivos e negativos, dúvidas não se poderiam oferecer que a mãe do C é a aqui recorrente, não uma qualquer outra pessoa até porque nunca ninguém na vila colocou a hipótese de a mãe do C não ser a recorrente.
9. Coisa diversa - sempre sem conceder - seria que a recorrente pudesse ser também conhecida indeterminada e informalmente por um outro nome ou alcunha, designadamente “B”.
10. É que nenhuma testemunha referiu ter conhecido uma pessoa com esse nome!
11. “B” teria sido, vagamente, um nome que, a tempos, ao longo de cerca de 40 anos, as testemunhas teriam ouvido como eventual alcunha da recorrente. Mas só isso! E nada mais que isso!
12. Aquilo que as testemunhas, assertiva e unanimemente, sabem e informaram em audiência foi a efectiva e visível gravidez da recorrente antes do nascimento do C e que este sempre gozou em vida de posse de estado em relação aos irmãos e à recorrente!
13. Quanto ao móbil para a inscrição registal em 1987 de um nome diverso daquele que é o nome da recorrente tal deveu-se unicamente ao medo das consequências legais de, por eventualmente não estar prescrito, ser “confessado um crime” caso fosse revelado em 1987 que, afinal, em 1980 tinha sido indicado um nome e identidade falsos.
14. Nos termos e para os efeitos das als. a) e b) do n.º 1 e do n.º 2 do art. 599.º e da primeira parte da al. a) do n.º 1 do art. 629.º, ambos do C.P.C., e tendo, designadamente, por base os meios probatórios consistente nas gravações feita em julgamento acima indicadas, a recorrente impugna a decisão de facto do Tribunal a quo e requer que o T.S.I. modifique tal decisão nos termos acima apresentados pela recorrente (ou noutros, equivalentes), julgando tal factual idade provada.
15. A decisão recorrida mostra-se eivada de um erro de direito pois a posse de estado deveria ter levado a concluir que a recorrente é a mãe do C (C), e não quem quer que - ou que nome/alcunha - fosse.
16. Ao não ter adoptado a ora propugnada interpretação e aplicação da norma jurídica constante do art. 1665.º, n.º 4, do Código Civil, o Tribunal a quo procedeu à violação da mesma norma jurídica, o que se invoca nos termos e para os efeitos das alíneas a) e b) do n.º 2 do art. 598.º do C.P.C.
TERMOS EM QUE se solicita a V. Ex.as seja julgado procedente o recurso nos exactos termos e alcance acima propugnados.
Ao recurso não foram apresentadas contra-alegações.
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
II
Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
Não há questões que nos cumpre apreciar ex oficio.
De acordo com as conclusões tecidas na petição do recurso, a Autora começou por impugnar a matéria de facto, e pretendeu com o êxito da impugnação da decisão de facto ver revogada a sentença recorrida, e em substituição julgada procedente a acção.
Então comecemos pela impugnação da matéria de facto.
De acordo com o Acórdão do Colectivo, foi provado que:
- Em 17 de Junho de 1980, nasceu em Macau no Hospital Kiang Wu na Freguesia de Santo António, Concelho de Macau, o falecido, C.
- Em 22 de Setembro de 1987, o 3º Réu, D, declarou junto da então Conservatória do Registo de Nascimentos que a mãe do falecido, C, era B.
- A Autora tem, pelo menos, três filhos, uma de nome E, um de nome F e outra de nome G, todos filhos igualmente do 3º Réu.
Constatando-se nas conclusões tecidas na minuta do recurso interposto pela Autora, que esta pretende ver provada toda a restante matéria articulada na petição inicial que foi julgada não provada pelo Tribunal a quo.
Ora, se é verdade que, por força do princípio da livre apreciação das provas consagrado no artº 558º do CPC, como regra geral, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, não é menos certo que a matéria de facto assente de primeira instância pode ser alterada nos termos e ao abrigo do disposto no artº 629º do CPC.
Diz o artº 629º/1-a) do CPC que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 599º, a decisão com base neles proferida.
Reza, por sua vez, o artº 599º, para o qual remete o artº 629º/1-a), todos do CPC, que:
1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.
3. Na hipótese prevista no número anterior, e sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe à parte contrária indicar, na contra-alegação que apresente, as passagens da gravação que infirmem as conclusões do recorrente.
4. O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 590.º
A recorrente identificou a matéria que considera incorrectamente julgada não provada.
Os meios probatórios que, na óptica da recorrente, impunham decisão diversa são os depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas na audiência de julgamento.
No caso dos autos, houve gravação dos depoimentos.
Foram indicadas as passagens da gravação dos depoimentos que a recorrente entendeu mal valoradas pelo Tribunal a quo.
Todavia, não obstante a verificação dos pressupostos formais da reapreciação da decisão de facto, por razões que passemos a expor infra, este Tribunal de recurso não é permitido pela lei processual a proceder à reapreciação das tais provas nos termos requeridos.
Como se sabe, na matéria da valoração das provas, documental e testemunhal, vigora o princípio da livre apreciação da prova, à luz do qual o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
O Colectivo da 1ª instância fundamentou a sua convicção nos termos seguintes:
A convicção do tribunal baseou-se nos documentos juntos aos autos que demonstram com clareza os factos acima elencados os quais foram parcialmente corroborados pela prova testemunhal.
Quanto à restante matéria alegada, designadamente a de a Autora ser a mãe biológica de C, constata-se, antes de mais, a seguinte prova:
1. a 1ª testemunha declara, em audiência de discussão e julgamento, que viu a Autora grávida, que desta gravidez nasceu C, que este tratava a Autora como mãe e esta àquele como filho, que toda a família da Autora, inclusivamente três irmãos dos quais dois mais velhos do que C, considera C como filho da Autora e de 3º Réu, que nunca ouvira dizer que a mãe de C era outra pessoa que não a Autora e que não sabia que o nome da mãe de C constante do registo não era o da Autora mas de uma outra pessoa. Mais declara que, uns meses atrás, por causa do presente caso, foi-lhe dito que a Autora tinha um outro nome: J;
2. a 2ª testemunha, em audiência de discussão e Julgamento, declara que viu a Autora grávida duas vezes, que destas gravidezes nasceram C e G, que a Autora e D tratavam C como filho e este aqueles como pais, que os três filhos da Autora e de D tratavam C como irmão e este aqueles como irmãos. Mas declara que não sabia se a Autora tinha outro nome declaração que depois nega dizendo que a Autora usava de vez em quando o nome B sendo B e a Autora uma mesma pessoa, apesar de não saber porquê.
3. A 1ª testemunha, em 22 de Outubro de 1987 aquando do registo de nascimento de C, declara que D era casado com B com quem teve apenas um filho, o K, que B abandonou a família três anos depois do casamento com D e actualmente se encontrava em parte incerta (cfr. declaração prestada a fls 40).
4. A 2ª testemunha, em 10 de Março de 2018, declara por escrito que a Autora também era conhecida por B (cfr. declaração prestada a fls 106).
5. Do documento de identificação junto pela Autora a fls 11, vê-se que o bilhete de identidade de residente da Autora foi emitido pela primeira vez em 11 de Junho de 1981.
6. O pedido de registo de nascimento de C foi feito em 22 de Setembro de 1987 (cfr. fls 24).
A partir das datas elencadas nos pontos 5 e 6 vê-se que, quando foi pedido o registo de nascimento de C, a eventual situação clandestinidade da Autora já se encontrava totalmente regularizada. Por essa razão, não se vislumbra motivo para D ter prestado as falsas declarações alegadas nos artigos 8º a 16º na petição inicial.
Trata-se de uma constatação que torna o alegado pela Autora muito duvidosa, dúvida esta só afastável por outras provas sólidas da alegada filiação.
Da descriminação das provas acima feita verifica-se que a prova testemunhal destina-se a demonstrar o alegado pela Autora.
Contudo, nada garante que as declarações prestadas em audiência de discussão e julgamento pela 1ª testemunha correspondem à verdade tendo em conta que a mesma prestara declarações não coincidentes quando interveio também nesta qualidade no processo de registo de nascimento de C. Nem se diga que foi precisamente porque D tinha a necessidade de encobrir a identidade da Autora pelas razões indicadas na petição inicial. Contudo, durante a audiência de discussão e julgamento, nenhuma ressalva ou explicação foi feita pela testemunha acerca do que dissera anteriormente em 22 de Outubro de 1987 tendo, antes, dito que não sabia que o nome da mãe de C constante do registo não era o da Autora mas de uma outra pessoa e que apenas, alguns meses antes, é que lhe fora dito que a Autora tinha um outro nome: J.
No que se refere à 2ª testemunha, da descrição do seu depoimento vê-se que as suas declarações não são inequívocas designadamente quando a testemunha desdiz o que tinha dito no momento imediatamente anterior acerca do uso de um outro nome por parte da Autora.
A isso acresce que o que foi alegado pela Autora era de que o nome B inexistente e não era o seu nome (cfr. artigos 5º, 9º, 13º e 16ºda petição inicial).
Apesar de estarem juntos aos autos os documentos de fls 127 a 129 que demonstram a filiação existente entre a Autora e D, por um lado, e os E, F e G, cujas datas de nascimento não conflituam com a possibilidade de a Autora ter dado à luz C antes do nascimento de F e depois do de G, estes documentos não permitem demonstrar positivamente o alegado pela Autora corresponde à verdade.
Fora das provas acima indicadas, nada mais permite ao tribunal considerar demonstrado o alegado pela Autora razão por que não deu como provada a matéria relativa à filiação existente entre a Autora e C.
Nessa sequência, também não deu credibilidade às declarações das testemunhas quanto à forma como C integrava no seio familiar da Autora razão por que a matéria relativa à eventual posse de estado também não foi considerada como demonstrada.
Apesar de a lei exigir sempre a objectivação e motivação da convicção íntima do Tribunal na fundamentação da decisão de facto, ao levar a cabo a sua actividade cognitiva para a descoberta da verdade material, consistente no conhecimento ou na apreensão de um acontecimento supostamente ocorrido no passado, o julgador não pode deixar de ser subjectivamente influenciado por elementos não explicáveis por palavras, nomeadamente quando concedem a credibilidade a uma testemunha e não a outra, pura e simplesmente por impressão recolhida através do contacto vivo e imediato com a atitude e a personalidade demonstrada pela testemunha, ou com a forma como reagiu quando inquirida na audiência de julgamento.
Assim, desde que tenham sido observadas as regras quanto à valoração das provas e à força probatória das provas e que a decisão de facto se apresenta coerente em si ou se não mostre manifestamente contrária às regras da experiência de vida e à logica das coisas, a convicção do Tribunal a quo, colocado numa posição privilegiada por força do princípio da imediação, em princípio, não é sindicável.
Segundo o ensinamento de Amâncio Ferreria, a admissibilidade dos meios de impugnação, incluindo o recurso ordinário, funda-se na falibilidade humana e na possibilidade de erro por parte dos juízes.
O recurso ordinário visa atacar a decisão judicial por ser errada ou injusta.
A decisão é errada ou por padecer de error in procedendo, quando se infringe qualquer norma processual disciplinadora dos diversos actos processuais que integram o procedimento, ou de error in iudicando, quando se viola uma norma de direito substantivo ou um critério de julgamento, nomeadamente quando se escolhe indevidamente a norma aplicável ou se procede à interpretação e à aplicação incorrectas da norma reguladora do caso ajuizado.
A decisão é injusta quando resulta duma inapropriada valoração das provas, da fixação imprecisa dos factos relevantes, da referência inexacta dos factos ao direito e sempre que o julgador, no âmbito do mérito do julgamento, utiliza abusivamente os poderes discricionários, mais ou menos amplos. – in Manual dos Recursos em Processo Civil, 6ª ed. pág. 69 e s.s.
Ou seja, o recurso ordinário existe para corrigir erro e repor a justiça posta em causa pela decisão errada.
Na esteira dessa doutrina autorizada sobre a função do recurso ordinário no processo civil, para impugnar com êxito a matéria fáctica dada por assente na primeira instância, não basta ao recorrente invocar a sua discordância fundada na sua mera convicção pessoal formada no teor de um determinado meio de prova, ou identificar a divergência entre a sua convicção e a do Tribunal de que se recorre, é ainda preciso que o recorrente identifique o erro que, na sua óptica, foi cometido pelo Tribunal de cuja decisão se recorre.
Os julgadores de recurso, não sentados na sala de audiência para obter a percepção imediata das provas ai produzidas, naturalmente não podem estar em melhores condições do que os juízes de primeira instância que lidaram directamente com as provas produzidas na sua frente.
Assim, o chamamento dos julgadores de recurso para a reapreciação e a revaloração das provas, já produzidas e/ou examinadas na 1ª instância, com vista à eventual alteração da matéria de facto fixada na 1ª instância só se justifica e se legitima quando a decisão de primeira instância padecer de erros manifestamente detectáveis.
Portanto, para que possa abalar com êxito a convicção formada pelo Tribunal a quo com vista à revogação da decisão de facto e à sua ulterior modificação pelo Tribunal ad quem, é preciso que o recorrente identifique erro manifesto na valoração de provas e na fixação da matéria de facto, e não a simples divergência entre ele e o Tribunal no que diz respeito à valoração de provas ou à fixação da matéria fáctica.
Integram em tais erros manifestos, inter alia, a violação de regras quanto à valoração de provas e à força probatória de provas, v. g. o não respeito à força vinculativa duma prova legal, e a contrariedade da convicção íntima do Tribunal a regras de experiência de vida e à lógica das coisas.
In casu, nada disso foi alegado.
O que fez a recorrente não é mais do que valorar, ela própria, as provas em causa, e formar a sua convicção, diversa da formada pelo Colectivo a quo, sem que tenha sido apontado o erro manifesto na apreciação da prova.
Nestas circunstâncias, nada temos para legitimar este Tribunal de recurso para sindicar a decisão de facto de primeira instância.
Improcede in totum a impugnação da matéria de facto.
O que prejudica o conhecimento do pedido de revogação da sentença de direito, fundado no pretendido êxito da impugnação da matéria de facto.
E em face da matéria de facto assente na primeira, nada temos de censurar a sentença ora recorrida.
Concluindo e resumindo:
1. Se é verdade que, por força do princípio da livre apreciação das provas consagrado no artº 558º do CPC, como regra geral, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, não é menos certo que a matéria de facto assente de primeira instância pode ser alterada nos termos e ao abrigo do disposto no artº 629º do CPC.
2. Apesar de a lei exigir sempre a objectivação e motivação da convicção íntima do Tribunal na fundamentação da decisão de facto, ao levar a cabo a sua actividade cognitiva para a descoberta da verdade material, consistente no conhecimento ou na apreensão de um acontecimento supostamente ocorrido no passado, o julgador não pode deixar de ser subjectivamente influenciado por elementos não explicáveis por palavras, nomeadamente quando concedem a credibilidade a uma testemunha e não a outra, pura e simplesmente por impressão recolhida através do contacto vivo e imediato com a atitude e a personalidade demonstrada pela testemunha, ou com a forma como reagiu quando inquirida na audiência de julgamento. Assim, desde que tenham sido observadas as regras quanto à valoração das provas e à força probatória das provas e que a decisão de facto se apresenta coerente em si ou se não mostre manifestamente contrária às regras da experiência de vida e à logica das coisas, a convicção do Tribunal a quo, colocado numa posição privilegiada por força do princípio da imediação, em princípio, não é sindicável.
3. O recurso ordinário existe para corrigir erro e repor a justiça posta em causa pela decisão errada. Para impugnar com êxito a matéria fáctica dada por assente na primeira instância, não basta ao recorrente invocar a sua discordância fundada na sua mera convicção pessoal formada no teor de um determinado meio de prova, ou identificar a divergência entre a sua convicção e a do Tribunal de que se recorre, é ainda preciso que o recorrente identifique o erro que, na sua óptica, foi cometido pelo Tribunal de cuja decisão se recorre.
4. Os julgadores de recurso, não sentados na sala de audiência para obter a percepção imediata das provas ai produzidas, naturalmente não podem estar em melhores condições do que os juízes de primeira instância que lidaram directamente com as provas produzidas na sua frente. Assim, o chamamento dos julgadores de recurso para a reapreciação e a revaloração das provas, já produzidas e/ou examinadas na 1ª instância, com vista à eventual alteração da matéria de facto fixada na 1ª instância, só se justifica e se legitima quando a decisão de primeira instância padecer de erros manifestamente detectáveis.
5. Para que possa abalar com êxito a convicção formada pelo Tribunal a quo com vista à revogação da decisão de facto e à sua ulterior modificação pelo Tribunal ad quem, é preciso que o recorrente identifique erro manifesto na valoração de provas e na fixação da matéria de facto, e não a simples divergência entre ele e o Tribunal no que diz respeito à valoração de provas ou à fixação da matéria fáctica. Integram em tais erros manifestos, inter alia, a violação de regras quanto à valoração de provas e à força probatória de provas, v. g. o não respeito à força vinculativa duma prova legal, e a contrariedade da convicção íntima do Tribunal a regras de experiência de vida e à lógica das coisas.
Resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam julgar improcedente o recurso, mantendo na íntegra a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
RAEM, 09JUL2020
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Ho Wai Neng