Processo nº 138/2019 Data: 05.06.2020
(Autos de recurso civil e laboral)
Assuntos : Litisconsórcio necessário natural.
Efeito útil normal.
Compropriedade.
Direito de preferência.
Acção de preferência.
SUMÁRIO
1. Se – quiçá – na maior parte das acções, “duas” são as partes que se defrontam, integrando, com o Juiz, a dita “relação processual (trilateral)”, pode suceder que, em lugar de 1 só autor e de 1 só réu, tenha a acção “vários autores”, podendo ser proposta contra “dois ou mais réus”.
Uma das mais importantes formas de “pluralidade de partes” (principais), é a regulada nos art°s 60° e 61° do C.P.C.M., onde se prevê a figura do “litisconsórcio voluntário” e “litisconsórcio necessário” – sendo a outra a “coligação” – que será “activo” se se tratar de mais de um autor (ou exequente), “passivo”, se a pluralidade disser respeito aos demandados, e “misto”, se a ambos disser respeito.
O “litisconsórcio voluntário” é o previsto por “norma permissiva”, o “necessário”, por “norma técnica”.
É, assim, “voluntário”, se estiver na disponibilidade das partes, e, necessário (ou obrigatório), se imposto por Lei, negócio jurídico ou, ainda, quando pela própria natureza da relação jurídica, a intervenção de todos os interessados seja necessária para que a decisão a obter produza o seu “efeito útil normal”.
Diferentemente do que sucede em relação ao “litisconsórcio voluntário”, no “litisconsórcio necessário”, a falta de qualquer dos interessados determina a “ilegitimidade dos intervenientes na acção”.
2. O comproprietário goza de direito de preferência nos termos do art. 1308° do C.C.M..
Porém, tal direito não deve ser interpretado no sentido de lhe assistir legitimidade para intervir na “acção de execução específica” que tem como objecto a outra metade indivisa do imóvel e que já se apresenta com decisão de mérito proferida.
Para reagir a tal decisão e situação, deve o comproprietário servir-se da “acção de preferência”, prevista no art. 1309° do C.C.M..
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 138/2019
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 18.07.2019, (Proc. n.° 235/2018), concedeu-se provimento ao recurso por A (甲) interposto, anulando-se todo o processado após as citações pelo Tribunal Judicial de Base efectuadas no âmbito dos autos aí registados com a referência CV2-11-0008-CAO; (cfr., fls. 695 a 713-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Do assim decidido traz o A. B (乙) o presente recurso, alegando para, a final, produzir as seguintes – e extensas – conclusões:
“1. O presente recurso tem por objecto o acórdão do Tribunal de Segunda Instância (TSI), que concedeu provimento ao recurso interposto pela interessada, A, anulando e mandando repetir tudo o que foi processado depois das citações, com o qual o recorrente não se conforma, por entender que o mesmo está viciado por um erro na aplicação do direito.
2. Através da presente acção, veio o autor e ora recorrente peticionar que a mesma fosse julgada procedente por provada e, em consequência, seja:
a. ordenada a execução específica do contrato promessa de compra e venda de metade do prédio urbano sito em Macau na [Rua(1)], n° 21, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° XXXX a fls. 5v do livro BXX;
b. declarado o mesmo contrato promessa resolvido no que respeita à metade da qual a ré não é proprietária e ser esta condenada a pagar ao autor uma indemnização no valor de HK$4.575.000,00, acrescida dos juros legais vencidos e vincendos até ao integral pagamento; ou,
c. subsidiariamente, para o caso de o pedido de execução específica ser improcedente; e
d. declarado o contrato promessa em causa resolvido e a ré condenada a pagar ao autor uma indemnização no valor de HK$9.150.000,00, acrescida dos juros legais vencidos e vincendos até ao integral pagamento; e, em qualquer caso,
e. condenada a ré no pagamento das custas e legal procuradoria.
3. Finda a audiência de discussão e julgamento, o Tribunal Judicial de Base (TJB) proferiu sentença, na qual julgou parcialmente procedente a acção e em consequência decidiu: Substituir-se à ré, C, a emitir declaração de vontade desta no sentido de vender ao autor, aqui recorrente, B metade indivisa do prédio urbano sito em Macau na [Rua(1)], n° 21, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° XXXX e absolver a ré dos demais pedidos formulados pelo autor.
4. Desta decisão veio a interessada, A, ora recorrida interpor recurso extraordinário para o TSI, na qualidade de proprietária da outra metade indivisa do imóvel, invocando para o efeito uma "suposta" violação do direito legal de preferência, o qual veio a merecer provimento no acórdão ora recorrido.
5. Na fundamentação do seu acórdão, o TSI considerou que se está perante uma situação de litisconsórcio necessário natural, porquanto a decisão não poderá produzir o seu efeito útil normal, no sentido de obter regulamentação definitiva da situação concreta das partes relativamente ao pedido de execução específica da metade indivisa do imóvel, sem a intervenção da interessada, com vista a apurar se a mesma pretende exercer o direito de preferência na aquisição do imóvel.
6. Ou melhor, ao questionar se a comproprietária do imóvel deveria ser citada para a acção, por forma a exercer o seu direito de preferência legal, o tribunal recorrido concluiu que a procedência da acção de execução específica depende (sublinhado e destaque nossos) de a interessada não vir exercer o direito de preferência na compra do prédio.
7. Ora, com o devido o respeito, o recorrente discorda absolutamente do entendimento do douto tribunal, porque i) não se verifica qualquer situação de preterição de litisconsórcio nestes autos ii) nem estes dependem de qualquer intervenção da interessada, o que, de resto, o tribunal recorrido nem tentou sequer demonstrar.
8. De acordo com o art. 61° do CPC, se a lei ou o negócio jurídico exigir a intervenção dos vários sujeitos na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade (n° 1), sendo igualmente necessária a intervenção de todos os sujeitos quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal, acrescentando ainda que a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes sujeitos, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado (n° 2).
9. Deste preceito resultam três tipos de fundamentos para o litisconsórcio necessário: a lei, o negócio e a própria natureza da relação jurídica.
10. Excluindo desde logo os fundamentos da lei e do negócio, por não serem manifestamente aplicáveis ao caso em apreço, resta aferir se a interessada deve ser demandada nestes autos, com o fundamento na própria natureza da relação jurídica, para que a decisão possa produzir o seu efeito útil normal.
11. O conceito de efeito útil da decisão visa alcançar a resolução definitiva do conflito, projectando-a (vinculando) simultaneamente a todos os sujeitos da relação jurídica controvertida, por forma a evitar futuras decisões contraditórias sobre essa relação.
12. Acresce que não basta que algum interessado seja directamente afectado pela relação jurídica material objecto da decisão. Aquilo que importa é que a sua intervenção nos autos constitua pressuposto, tendo em conta como foi configurada a acção.
13. Assim, estaremos perante um litisconsórcio necessário natural passivo quando a decisão sobre a relação jurídica controvertida implique que só possa resolver o conflito em termos definitivos se for vinculativa aos demais sujeitos, conforme foi configurada a acção.
14. Em termos práticos, pode dizer-se que existe a necessidade de vincular todos os sujeitos da relação jurídica quando, de acordo com a configuração dada pelo autor, a decisão só possa produzir efeitos quando afecte todos eles.
15. Ora, os presentes autos assentam numa relação jurídica contratual (contrato-promessa de compra e venda de bem imóvel – art. 404° do CC) entre o autor, ora recorrente, e a ré, C, enquanto promitente-vendedora, cujo inadimplemento motivou o pedido de execução específica daquele, enquanto promitente-comprador – art. 820° do CC.
16. A execução específica nestes autos incide, porém, somente sobre metade indivisa do imóvel pertencente à ré, porquanto a outra metade é propriedade da interessada e ora recorrida, o que lhe confere um direito de preferência – art. 1308° do cc.
17. Torna-se necessário esclarecer se a declaração de vontade de venda da metade indivisa do imóvel, em substituição da ré, deve ser vinculativa à interessada, para que produza efeitos definitivos, e em última análise, determinar a consequência jurídica da falta de exercício do direito de preferência para a transmissão de parte indivisa do bem.
18. Sendo o direito adjectivo instrumental do direito substantivo, é de concluir que a decisão que declare a execução específica sobre parte indivisa de imóvel com preterição da comunicação do direito de preferência será tanto válida e eficaz seria a celebração de escritura de compra e venda nas mesmas condições.
19. Recorrendo a tal analogia, interessa nestes autos escrutinar se um contrato de compra e venda de parte indivisa de um imóvel está dependente ou se fica prejudicada pela falta de intervenção do preferente no negócio jurídico, o que leva à análise da natureza do direito de preferência e dos mecanismos legais para exercício do mesmo direito em caso de ser este violado.
20. O direito de preferência em causa nestes autos, contrariamente ao pacto de preferência, resulta de imposição da lei – art. 1308° do CC –, e caracteriza-se pela faculdade de o comproprietário preferir na aquisição de outra parte indivisa do bem, nas mesmas condições negociais acordadas entre o obrigado a conceder o direito de preferência e um terceiro interessado.
21. O mecanismo para o exercício direito da preferência vem regulado no art. 410° do CC, cujo número 1, conforme esclarece o Prof. Almeida Costa, determina que o obrigado à preferência que pretenda transmitir a sua quota a terceiros deverá comunicar ao titular do direito de preferência o projecto negocial, com as exactas cláusulas contratuais e a identificação do terceiro, ou seja, todos os elementos que sejam significativos para a formação da vontade de exercer ou não a preferência.
22. Uma vez recebida a comunicação do obrigado à preferência ou conhecido o projecto do negócio, deve o beneficiário exercer esse direito mediante declaração de vontade, dentro do prazo de 8 dias, sob pena de caducidade – art. 410°, n° 2, do CC.
23. O dever de comunicação do projecto contratual não tem que seguir uma forma específica, tanto podendo ser escrita como verbal, e integra uma dimensão obrigacional do interessado na alienação.
24. Todavia, o titular da preferência legal goza de uma protecção adicional, que consiste no direito potestativo de fazer seu o negócio realizado, sub-rogando-se na posição do adquirente, uma vez verificada a violação da obrigação de comunicação a que o comproprietário vendedor está obrigado.
25. De onde se retira que, até à comunicação do projecto negocial ao preferente, este apenas goza de um direito creditório – que consiste no direito a ser notificado para exercer a preferência; porém, após a concretização do negócio de compra venda sem ser concedido o direito de exercer previamente a preferência, tem o preferente um direito potestativo – que lhe permite sub-rogar-se na posição do adquirente, o que é feito nos termos, pelos meios e nos locais próprios, mediante acção de preferência.
26. A exercitabilidade do direito de prelação através da acção de preferência pressupõe, como resulta do preceito, a violação da obrigação de preferência, com a consumação da alienação, sem satisfação do dever de comunicação do projecto da venda e cláusulas do contrato ou mediante irregular cumprimento desse dever.
27. É, pois, com a concretização da transmissão do bem, com preterição do mecanismo de exercício prévio da preferência, que o preferente passa a ter o direito potestativo de, através da acção de preferência, se substituir ou sub-rogar ao adquirente, no contrato celebrado com o obrigado à prelação, direito que não incide directamente sobre a coisa transmitida, mas sobre o contrato.
28. É pacífico entre a doutrina e jurisprudência que o titular do direito de preferência só pode usar da acção prevista no art. 1309° do CC, se a coisa tiver já sido alienada a terceiro, com violação da obrigação de dar preferência, sendo sempre elemento da causa de pedir a transmissão da propriedade da coisa.
29. Como tal, não está ao alcance do preferente legal poder invocar ou exercitar o direito enquanto o negócio de venda projectado não se realizar, porquanto, até lá, o preferente legal mantém-se tão-só como detentor da expectativa que a norma legal lhe atribui – a de virem a verificar-se essas condições, que fazem surgir o direito a favor do preferente (no caso de alienação, o direito potestativo de substituição através da acção de preferência).
30. Acresce que, estando o exercício do direito de preferência condicionado à propositura da acção de preferência no prazo de 6 meses desde o conhecimento da alienação e ao depósito do preço no prazo de 8 dias, como se vê, o referido direito não é absoluto, contrariamente ao que parece evidenciar o acórdão recorrido.
31. In casu, perante a prolação da sentença proferida pelo TJB, não restava à comproprietária A senão accionar o único mecanismo legal ao seu dispor, que seria exercer o direito de preferência mediante acção de preferência prevista no art. 1309° do CC.
32. É, pois, reitera-se, entendimento pacífico entre a doutrina e jurisprudência que a única via para um comproprietário (in casu, A) exercer o direito de preferência será através de uma propositura da acção de preferência, e não pela nulidade ou anulabilidade do negócio transmissivo, sob pena de fazer caducar o mesmo.
33. Dito isto, importa reter que: i) nem o preferente poderá forçar o obrigado a efectuar a comunicação do projecto de venda; ii) nem o mecanismo a que o art. 410° do CC alude se traduz num pressuposto de validade e eficácia do negócio de transmissão do direito de propriedade do imóvel.
34. De facto, a lei é expressa no que respeita ao exercício da tutela efectiva do direito de preferência legal, ao estabelecer que o único meio de reacção do preferente contra a violação do seu direito é através da acção de preferência.
35. Sendo de notar que o legislador não previu qualquer mecanismo que vise ao preferente impedir a realização da compra e venda quando o obrigado não lhe confere a oportunidade de exercer a preferência antecipadamente.
36. Por outro lado, não se estabelece qualquer consequência jurídica para a validade do contrato de compra e venda nem para a eficácia da própria transmissão da parte indivisa do imóvel, realizado em violação da obrigação de preferência.
37. Pelo contrário, a transmissão mantém-se válida e eficaz, incluindo para o preferente – não obstante o direito potestativo de se sub-rogar na posição de comprador, através da acção de preferência –, no plano da eficácia erga omnes (uma vez registada), pelo que é óbvio que a transmissão não sofre qualquer vício que determine a sua nulidade, anulabilidade ou até mesmo ineficácia – art. 278° e ss. do CC.
38. Em termos comparados, este entendimento encontra respaldo na lei adjectiva referente à venda judicial de bens, onde, no art. 787° do CPC, se lê: n° 1 – Os titulares do direito de preferência na alienação dos bens são notificados do dia, hora e local aprazados para a abertura das propostas, a fim de poderem exercer o seu direito no próprio acto, se alguma proposta for aceite; n° 2 – A falta de notificação tem a consequência estabelecida na lei civil para a falta de notificação ou aviso prévio dos preferentes na venda particular (sublinhado nosso).
39. Assim, salvo o devido respeito, a celebração e eficácia do contrato de compra e venda – e, por analogia a execução específica – não está dependente quer da comunicação ao preferente quer da sua declaração de vontade, nem a sua falta impede ou prejudica a alienação, porque nada resulta da lei que sustente tal asserção.
40. Voltando aos presentes autos, significa que a falta de intervenção da comproprietária não afecta a declaração do TJB de venda do bem a favor do recorrente, a qual é plenamente válida e eficaz, tal como seria uma escritura de compra e venda, contrariamente ao entendimento do TSI.
41. Portanto, a ausência da interessada nos presentes autos não constitui um obstáculo ao efeito útil normal da decisão do TJB, visto que esta alcança uma regulação definitiva da situação concreta das partes quanto ao objecto do litígio.
42. Pelo contrário, é com a prolação da sentença que a recorrida passa a ter legitimidade para exercer o seu direito de preferência, o qual não poderá deixar de ocorrer no âmbito da acção própria prevista na lei.
43. O efeito útil da acção não só é alcançado em toda a sua plenitude, como ainda constitui, para a recorrente, um requisito para a efectiva constituição do direito de preferência, o qual terá necessariamente de ser obtido por intermédio da acção de preferência prevista no art. 1309°, do CC.
44. Portanto, contrariamente à decisão recorrida, não resulta destes autos qualquer preterição de litisconsórcio necessário.
45. A manter-se a decisão do TSI, verificar-se-ia uma situação de ilegitimidade singular passiva, da interveniente.
46. Com efeito, o tribunal a quo ordenou que a recorrida fosse citada, na qualidade de comproprietária, para intervir na acção com vista a apurar se a mesma pretende exercer o direito de preferência.
47. Ora, a citação tem como finalidade dar conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção e para o chamar ao processo para se defender ou chamar, pela primeira vez, ao processo alguma pessoa interessada na causa – art. 175°, n° 1, alíneas a) e b), do CPC.
48. A citação de interessados na causa remete para incidentes ou procedimentos autónomos, legalmente previstos, permitindo, dessa forma ao interessado ou chamado beneficiar das mesmas garantias processuais concedidas ao réu, nomeadamente as de se opor ou obstar ao direito invocado pelo autor.
49. No caso vertente, além de não existir qualquer incidente, mecanismo ou instituto processual que vise o exercício do direito de preferência no decurso da presente acção declarativa, também já vimos que a lei não confere à interessada e ora recorrida o direito de se poder opor à transmissão da metade indivisa do imóvel nem de exigir o cumprimento da obrigação de comunicação dos termos do negócio.
50. Aliás, nem se compreende como poderia a citação ser equiparada à comunicação prevista no art. 410°, n° 1, do CC, quer em termos de forma, quer em termos de conteúdo, e bem assim como poderia a citada respeitar o prazo de 8 dias previsto no n° 2 do citado artigo.
51. A questão revela-se tanto mais grave quando se considera que se está perante um caso de litisconsórcio, como é o entendimento do TSI, o que significa que a recorrida deve ser demandada em simultâneo com a ré, e ter uma posição enquanto parte principal.
52. Ora, no seguimento da tese defendida por Barbosa de Magalhães, o legislador optou por estabelecer que, na falta de indicação em contrário, possuem legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor – art. 58° do CPC.
53. Conforme foi já acima expendido, a relação material controvertida e que o recorrente configurou como relação substantiva, invocada como fundamento da sua pretensão nos presentes autos, assenta num contrato-promessa de compra e venda celebrado entre o A. e a R., onde é peticionado a declaração de incumprimento por parte desta e de declaração de venda de metade indivisa do imóvel.
54. Sucede que, enquanto a ré tem interesse directo em contraditar a demanda do A. e ora recorrente, o mesmo não se passa com a comproprietária, A e ora recorrida, visto que não faz parte da relação substantiva configurada pelo autor, pelo que sempre seria para considerada parte ilegítima nos presentes autos.
55. E nem se diga que a decisão do TSI, em ordenar a citação da recorrida para exercer a preferência nos presentes autos tenha amparo no princípio da economia processual, visto que tal não só viola lei expressa como também constitui um autêntico atropelo dos direitos reais e processuais do autor e ora recorrente.
56. Com efeito, é à ré que compete, enquanto obrigada ao direito de preferência, proceder à respectiva comunicação à interessada, para efeitos de exercício do direito de preferência – e não ao autor nem ao tribunal, contrariamente ao que parece ter sido o entendimento do TSI.
57. Uma vez recebida a comunicação do obrigado à preferência – que tanto pode ser escrita como verbal –, deve o beneficiário exercer esse direito mediante declaração de vontade, dentro do prazo de 8 dias, sob pena de caducidade – art. 410°, n° 2, do CC.
58. Também não suscitam dúvidas que a falta da declaração dentro do prazo legal de 8 dias, corresponde a uma renúncia tácita do preferente, a qual também pode ser expressa, caso este, em resposta à comunicação, declare não pretender exercer a preferência.
59. Toda esta matéria, que constitui pressupostos do direito de preferência, carece de ser alegada, apreciada e provada, sendo que a sede própria é a acção de preferência, na qual é possível exercer o contraditório, e não nestes autos de execução específica.
60. Não é, pois, desde logo, legalmente passível, quer do ponto de vista substantivo, quer do ponto de vista da lei processual que a comproprietária pretenda exercer o seu direito de preferência por intermédio dos autos aqui em causa, o que sempre constituiria um expediente ilegal e à la carte, desenvolvido especialmente para este fim.
61. Ou seja, salvo o devido respeito, a decisão de ordenar a citação da preferente nos presentes autos, para exercer a preferência viola grosseiramente a lei e os próprios princípios que norteiam o direito em geral ao não permitir a apreciação dos pressupostos do direito invocado pela recorrida.
62. A terminar, sempre se sublinha que nada decorre destes autos que demonstre que o invocado direito de preferência da interessada e ora recorrida não tenha já caducado ou até sido renunciado, visto que nenhuma destas questões foi alegada, apreciada e muito menos provada.
63. Como tal, não sendo estes factos do conhecimento oficioso, a decisão do tribunal a quo foi baseada na mera bondade das alegações da recorrida, e sem cuidar de saber em concreto se a A tinha tido conhecimento do projecto de compra e venda antes da transmissão – até porque é familiar da ré e acompanhou todo o processo de usucapião e o próprio processo destes autos – e se o seu direito já tinha caducado ou sido renunciado.
64. Ao ter concedido provimento ao recurso da ora recorrida, presumivelmente sob o manto do princípio da economia processual, sem qualquer tipo de prova das alegações da recorrente, verifica-se uma violação do princípio do dispositivo e da preclusão processual – art. 566° e art. 562°, n° 2, do CPC – sendo, como tal, ilegal.
65. Atentos todos estes fundamentos, e sempre com o devido respeito por opinião contrária, deve o acórdão recorrido ser anulado e mantida a decisão proferida pelo TJB”; (cfr., fls. 727 a 766).
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Respondendo, diz a – antes recorrente, e, agora – recorrida A, que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 772 a 786).
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Nada obstando, passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão dados como provados os factos seguintes:
“No dia 2 de Maio de 2007, o autor, como segundo outorgante, celebrou sob a forma escrita, com a ré, como primeira outorgante, um acordo através do qual a última prometeu vender ao primeiro, pelo preço de HK$4.850.000,00, dois prédios urbanos, um sito em Macau na [Rua(1)], nº 21, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXXX a fls. 5v do livro BXX (alínea A) dos factos assentes).
É o seguinte o teor parcial do referido acordo (alínea B) dos factos assentes):
A 1ª outorgante compromete-se a vender os imóveis urbanos situados na ilha da Taipa, na [Rua(1)] No. 21 (descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº XXXX) e na [Rua(1)] No. 23, na Região Administrativa Especial de Macau, ao 2º outorgante que as aceitam. O 2º outorgante compromete-se a comprar. Ambos os outorgantes assumem e estipulam as seguintes cláusulas:
1. O preço estipulado dos ditos imóveis urbanos é de quatro milhões e oitocentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong (HK$4.850.000,00).
2. Forma de pagamento:
a. Na data de celebração do presente contracto, o 2º outorgante paga o sinal de quatrocentos mil dólares de Hong Kong (HK$400.000,00) à 1ª outorgante;
b. O montante remanescente de quatro milhões e quatrocentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong (HK$4.450.000,00), será pago por livrança de um banco de Macau, dentro de 90 dias, após a 1ª outorgante resolver os problemas de direito de propriedade do imóvel No. 23 da [Rua(1)] e os respectivos problemas de arrendamento e desocupação.
3. Quando o 2º outorgante realizar o pagamento referido na alínea b) da cláusula 2, a 1ª outorgante terá de assegurar:
a. O pagamento total de todas as dívidas dos referidos imóveis urbanos (incluindo foro, contribuição predial, despesas de condomínio, despesas de água, despesas de electricidade … … etc.);
b. Cancelamento de todos os encargos e contrato de arrendamento que incidem nos imóveis em causa;
c. Celebração da escritura de compra e venda para registar os imóveis vendidos em nome do 2º outorgante; e
d. Entrega devoluta dos respectivos imóveis urbanos ao 2º outorgante.
4. Após celebração … .
5. Todas as respectivas despesas … .
6. Como a 1ª outorgante a fim de obter a qualidade de titular do direito de propriedade da [Rua(1)] No. 23, tem uma acção de usucapião sobre o dito imóvel, a 1ª outorgante e o 2º outorgante concordaram que caso a acção por improcedência não conseguir obter a qualidade de titular do direito de propriedade, o 2º outorgante pode optar por cancelar o presente contrato e receber incondicionalmente o sinal na íntegra. A 1ª outorgante e o 2º outorgante desistem mutuamente do direito de pedir indemnização.
7. A morada … .
8. Às situações não previstas … .
9. O presente contrato foi estipulado voluntariamente e com plena concordância da 1ª outorgante e do 2º outorgante e feito em triplicado; … .
Macau, 02 de Maio de 2007.
(em manuscrito): O preço de venda dos imóveis situados na [Rua(1)] No. 21 é de dois milhões e oitocentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong, [Rua(1)] No. 23 é de dois milhões de dólares de Hong Kong.
Na sequência da celebração do referido acordo, o autor pagou à ré, a título de sinal e pagamento parcial do preço, a quantia de HK$400.000,00 (alínea C) dos factos assentes).
A escritura de compra e venda ainda não foi outorgada (alínea D) dos factos assentes).
A ré tem inscrita a seu favor metade indivisa do prédio urbano situado no número 21 da [Rua(1)], descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXXX (alínea E) dos factos assentes).
A Ré tem também inscrita a seu favor metade indivisa do prédio urbano situado no número 26 da [Rua(1)], descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXXX (alínea F) dos factos assentes).
Autor e Ré acordaram que a escritura pública de compra e venda dos referidos prédios nºs 21 e 23 da [Rua(1)], descritos na CRP sob os n.ºs XXXX e XXXX, seria celebrada até 90 dias depois de a Ré ter adquirido o direito de propriedade do imóvel com o n.º 23 da [Rua(1)] e depois da resolução do problema de arrendamento deste prédio (resposta aos quesitos 2º e 9º da base instrutória).
A Ré foi interpelada pelo Autor, por várias vezes, para concluir as formalidades para a aquisição do prédio n.º 23 da [Rua(1)] a fim de as partes puderem outorgar a escritura definitiva de compra e venda (resposta ao quesito 4º da base instrutória).
Em momento algum o Autor pretendeu comprar o prédio urbano com o n.º 26 da [Rua(1)] descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX (resposta ao quesito 6º da base instrutória).
Mas antes pretendeu comprar os prédios sitos em Macau na [Rua(1)] n.º 21, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX a fls. 5v do livro BXX e o prédio contíguo sito na [Rua(1)] com o n.º 23, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX, o qual anteriormente correspondia ao n.º 22 (resposta ao quesito 7º da base instrutória).
Apesar de a Ré constar no registo predial como proprietária de 1/2 indivisa do prédio com o n.º 26 da [Rua(1)], descrito na CRP sob o nº XXXX, este imóvel não lhe pertence (resposta ao quesito 8º da base instrutória).
Foi intenção do Autor prometer comprar, e intenção da Ré prometer vender, os dois prédios contíguos que correspondem aos nºs 21 e 23 da [Rua(1)], descritos na CRP, o primeiro sob o nº XXXX e o segundo sob o nº XXXX (resposta ao quesito 11º da base instrutória).
O imóvel com o n.º 26 da [Rua(1)] descrito na CRP sob o n.º XXXX, estava erradamente inscrito a favor da Ré e do D (resposta ao quesito 12º da base instrutória)”; (cfr., fls. 708-v a 711).
Do direito
3. Como se deixou relatado, o presente recurso tem como objecto o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância com o qual se determinou a “anulação de todo o processado depois das citações”; (cfr., fls. 713-v).
Antes de mais, e para uma melhor compreensão das “razões” do assim decidido, mostra-se útil consignar o que segue.
Pois bem, em sede da acção no Tribunal Judicial de Base registada com a referência CV2-11-0008-CAO, em que era A., o ora recorrente, e R., C (丙), proferiu-se sentença onde se decidiu julgar procedente o pedido de execução específica do contrato promessa de compra e venda entre A. e R. celebrado e que tinha como objecto a metade indivisa do prédio urbano (…) descrito na C.R.P. sob o n.° XXXX a fls. 5-v do livro BXX.
Do assim decidido, ao abrigo do estatuído no art. 585°, n.° 2 do C.P.C.M., invocando a sua qualidade de “proprietária da outra metade indivisa do dito imóvel”, e alegando, assim, a “violação do seu direito de preferência”, interpôs, a ora recorrida, A, recurso para o Tribunal de Segunda Instância que culminou com a prolação do Acórdão objecto da presente lide recursória, (e que, como se referiu, determinou a anulação de tudo o que naquela acção se processou após as citações).
Para chegar a tal solução, assim ponderou o Tribunal de Segunda Instância:
“(…)
Coloca-se a questão de saber se a recorrente, sendo comproprietária da metade indivisa do imóvel, deveria ser citada para a acção por forma a exercer o seu direito de preferência legal, sob pena de preterição de litisconsórcio necessário passivo.
Dispõe o artigo 61.º do Código de Processo Civil o seguinte:
“1. Se a lei ou o negócio jurídico exigir a intervenção dos vários sujeitos da relação material controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade.
2. É igualmente necessária a intervenção de todos os sujeitos quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal; a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes sujeitos, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.”
Segundo esse artigo, há situações em que é obrigada a intervenção de todos os sujeitos interessados na relação material controvertida, sob pena de ilegitimidade de parte.
Como observam Cândida Pires e Viriato Lima , “Esta classificação tripartida pode suscitar a seguinte observação: a necessidade de obtenção de uma decisão una em face de todos os interessados – que está na base da exigência da intervenção de todos eles no processo -, quando esta exigência é decretada pela lei, resulta explicitamente dos seus comandos; enquanto que, nos casos previstos no n.º 2 do artigo, aquela mesma necessidade retira-se implicitamente das normas jurídicas substantivas que definem a natureza e o regime da relação material litigada. O que permite afirmar que, afinal e em rigor, litisconsórcio necessário legal e litisconsórcio necessário natural se integram numa mesma categoria. Outra categoria será a do litisconsórcio necessário convencional, expressão da vontade das partes.”
No caso vertente, trata-se de uma acção de execução específica intentada pelo promitente-comprador ora Autor contra a promitente-vendedora C (Ré nos autos), sendo esta titular de metade indivisa do imóvel n.º XXXX melhor identificada nos autos.
Enquanto titular de outra metade indivisa do mesmo imóvel, a recorrente não teve qualquer intervenção no contrato-promessa de compra e venda celebrado entre o Autor B e a Ré C.
De facto, inexistindo norma legal que imponha a intervenção da recorrente na acção de execução específica, nem que as partes outorgantes do contrato-promessa tenham acordado a necessidade de intervenção da recorrente nessa mesma acção, resta apreciar se a intervenção da recorrente deriva da própria natureza da relação jurídica, ao abrigo do n.º 2 do citado artigo 61.º do CPC.
Ensinam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora que “Há realmente situações em que, pela natureza da relação substantiva sobre a qual recai a acção, a falta de algum ou alguns dos interessados impede praticamente a decisão que nela se proferisse de produzir qualquer efeito útil.”
Ainda sobre a locução “efeito útil normal”, Rodrigues Bastos diz o seguinte: “A decisão produz o seu efeito útil normal quando regule definitivamente a situação concreta sujeita a apreciação judicial. Sempre que, por não intervirem certas pessoas, seja abalada essa estabilidade que se procura e se deseja, deixando a porta aberta à possibilidade de outros interessados na mesma relação jurídica suscitarem nova demanda, em que poderão obter decisão diferente, o litisconsórcio impõe-se como obrigatório.”
Dispõe o n.º 1 do artigo 1308.º do Código Civil que “O comproprietário goza do direito de preferência e tem o primeiro lugar entre os preferentes legais no caso de caso de venda, ou dação em cumprimento, a estranhos da quota de qualquer dos seus consortes.”
No caso vertente, não obstante que a recorrente não é parte outorgante do contrato-promessa, a verdade é que a procedência da acção de execução específica depende de a recorrente, na qualidade de preferente legal, não vir exercer o seu direito de preferência na compra do prédio.
Nestes termos, para que a decisão possa produzir o seu efeito útil normal, no sentido de obter regulamentação definitiva da situação concreta das partes relativamente ao pedido de execução específica da metade indivisa do imóvel n.º XXXX, há-de mandar citar a recorrente, na qualidade de comproprietária da outra metade indivisa do prédio, para, querendo, intervir na acção com vista a apurar se a mesma pretende exercer o direito de preferência na aquisição do imóvel.
Uma vez verificada a falta de citação da recorrente na acção, há ilegitimidade passiva por preterição do litisconsórcio necessário natural e, em consequência, temos que anular tudo o que se tenha processado depois das citações, nos termos da alínea a) do artigo 143.º do Código de Processo Civil.
(…)”; (cfr., fls. 711 a 713).
Entendeu-se, em síntese, que dada a qualidade de “proprietária da outra metade indivisa do imóvel” da (ali) recorrente, (e agora recorrida), e reconhecendo-se-lhe, assim, o seu alegado “direito de preferência” na sua compra, considerou-se verificada a falta da sua citação na aludida “acção de execução específica”, desta forma se justificando a decretada anulação do processado (para o seu efeito).
No fundo, deu-se como verificado o vício de “preterição de litisconsórcio necessário”.
Chamados que fomos a nos pronunciar sobre a bondade do assim decidido, vejamos.
Considerando o que decidido foi, importa – desde já – ponderar no seguinte.
Como (expressivamente) ensina A. Varela: “Para que o juiz se possa pronunciar sobre o mérito da questão, julgando a acção procedente ou improcedente, não basta que as partes tenham personalidade judiciária e gozem de capacidade judiciária. É preciso que, além disso, elas tenham legitimidade para a acção, que o autor e réu sejam partes legítimas. É essencial que, como diria HENCKEL, estejam no processo, como autor e como réu, as partes exactas (die richtige Parteien).
Ser parte legítima na acção é ter o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo ou a defesa contra ela oponível. A parte terá legitimidade como autor, se for ela quem juridicamente pode fazer valer a pretensão em face do demandado, admitindo que a pretensão exista; e terá legitimidade como réu, se for ela a pessoa que juridicamente pode opor-se à procedência da pretensão, por ser ela a pessoa cuja esfera jurídica é directamente atingida pela providência requerida.
Se assim não suceder, a decisão que o tribunal viesse a proferir sobre o mérito da acção, não poderia surtir o seu efeito útil, visto não poder vincular os verdadeiros sujeitos da relação controvertida, ausentes da lide”; (cfr., “Manual Processo Civil”, 2ª ed., pág. 128 e 129).
Regulando o pressuposto processual da “legitimidade” dispõe o art. 58° do C.P.C.M.:
“Na falta de indicação da lei em contrário, possuem legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
Ora, como é sabido, a legitimidade, como pressuposto processual, não é uma “qualidade pessoal das partes”, (como sucede com a capacidade judiciária), mas uma (certa) “posição delas em face da relação material litigada”.
Como conceito de “relação” que é, traduz-se na posição das partes em relação ao objecto do processo, a relação jurídica controvertida.
Tratando o tema que agora nos ocupa – e com a clareza que lhe é habitual – considera V. Lima que:
“A legitimidade processual é um conceito de relação com determinado processo ou litígio.
Faz sentido dizer que certa pessoa é judiciariamente capaz, pois é um atributo que assiste (ou falta) a uma pessoa em relação a todos os processos.
Não faz sentido dizer que certa pessoa é, em geral, parte legítima.
Sê-lo-á ou não consoante o processo ou litígio que se considere.
A legitimidade é uma posição do autor ou do réu, em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objecto do processo.
A legitimidade processual pode ser encarada segundo duas técnicas diferentes:
a) Uma que considera o objecto do processo um litígio, um conflito de interesses;
b) Outra, que considera o objecto do processo uma relação jurídica, a relação jurídica subjacente, material ou controvertida (que não se confunde com a relação jurídica processual).
a) Se entendermos que o objecto do processo é um litígio, um conflito de interesses, a legitimidade resultará das posições das partes perante esse litígio ou conflito.
Em regra, só aos titulares dos interesses em litígio permite a lei que sejam partes no processo, para pedir ou contra eles ser pedida a composição do litígio. É um reflexo do princípio da autonomia da vontade que seja o titular do interesse o único que pode prossegui-lo, em juízo ou fora dele.
(…)
b) Se entendermos que o objecto do processo é uma relação jurídica, a relação jurídica subjacente, material ou controvertida, então a legitimidade é vista como posição da parte em face dessa relação jurídica, posição essa que justifica ocupar-se essa mesma parte de tal relação.
Foi nesta orientação que se verificou uma controvérsia doutrinal entre os Profs. Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães”; (cfr., “Manual de Direito Processual Civil”, 3ª ed., pág. 214 e segs., podendo-se, também, sobre o tema, ver A. Varela, ob. cit.; A. Reis in, “Legitimidade, das Partes”, in B.F.D., VIII, pág. 64 e IX 106, “Cod. Proc. Civil Anot.”, I, pág. 72; B. de Magalhães, na Gazeta da Rel. de Lisboa, Anos 32, 50 e 52 a 55, M. Andrade in, “Algumas notas sobre legitimidade das partes …” in B.F.D., X, e “Noções elementares de processo civil”, pág. 83).
Ora, como se sabe, o legislador local adoptou no C.P.C.M. a posição do Prof. B. de Magalhães, daí o estatuído no transcrito art. 58°.
Porém, as “coisas”, nem sempre se apresentam assim tão simples.
Com efeito, se – quiçá – na maior parte das acções, “duas” são as partes que se defrontam, integrando, com o Juiz, a dita “relação processual (trilateral)”, pode também muitas vezes suceder que, em lugar de 1 só autor e de 1 só réu, tenha a acção “vários autores”, podendo ser proposta contra “dois ou mais réus”.
Como adverte A. Varela, “À dualidade das partes substitui-se nesses casos a pluralidade das partes: pluralidade: activa, se a acção é proposta por dois ou mais autores contra o mesmo réu; pluralidade passiva, se o autor demanda simultaneamente vários réus; pluralidade mista, quando a acção é instaurada por dois ou mais autores contra vários réus”; (in, ob. cit. pág. 160).
Ora, uma das mais importantes formas de “pluralidade de partes” (principais), (e que, para o caso dos autos interessa), é pois a regulada nos art°s 60° e 61° do C.P.C.M., onde se prevê a figura do “litisconsórcio voluntário” e “litisconsórcio necessário” – sendo a outra a “coligação” – que será “activo” se se tratar de mais de um autor (ou exequente), “passivo”, se a pluralidade disser respeito aos demandados, e “misto”, se a ambos disser respeito.
Sob a epígrafe “litisconsórcio voluntário” preceitua o art. 60° que:
“1. Se a relação material controvertida respeitar a várias pessoas, a acção respectiva pode ser proposta por todos ou contra todos os sujeitos; mas, se a lei ou o negócio for omisso, a acção pode também ser proposta por um só ou contra um só dos sujeitos, devendo o tribunal, nesse caso, conhecer apenas da respectiva quota-parte do interesse ou da responsabilidade, ainda que o pedido abranja a totalidade.
2. Se a lei ou o negócio permitir que o direito seja exercido por um só ou que a obrigação comum seja exigida de um só dos sujeitos, basta que um deles intervenha para assegurar a legitimidade”.
Por sua vez, e referindo-se agora ao “litisconsórcio necessário”, dispõe o art. 61°:
“1. Se a lei ou o negócio jurídico exigir a intervenção dos vários sujeitos da relação material controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade.
2. É igualmente necessária a intervenção de todos os sujeitos quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal; a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes sujeitos, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado”.
E, parafraseando, uma vez mais, V. Lima:
“Dá-se o litisconsórcio voluntário quando existe pluralidade de partes principais porque a lei o permite e não se verifica qualquer ilegitimidade se não estiverem todos os interessados presentes em juízo.
Dá-se o litisconsórcio necessário quando existe pluralidade de partes principais porque a lei ou o contrato impõem”; (in, ob. cit. pág. 223).
Como nota Castro Mendes, o “litisconsórcio voluntário” é o previsto por “norma permissiva”, o “necessário”, por “norma técnica”; (in “Direito Processual Civil”, vol. II, pág. 278).
É, assim, “voluntário”, se estiver na disponibilidade das partes e necessário (ou obrigatório), se imposto por Lei, negócio jurídico ou, ainda, quando pela própria natureza da relação jurídica, a intervenção de todos os interessados seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.
O regime regra, é o “litisconsórcio voluntário”, regulado no transcrito art. 60°.
In casu, tendo o Tribunal a quo entendido que se estava numa situação de “litisconsórcio necessário natural”, (cabendo notar que só assim se justifica a solução a que chegou), continuemos.
Pois bem, e como já se deixou adiantado, diferentemente do que sucede em relação ao “litisconsórcio voluntário”, no “litisconsórcio necessário”, a falta de qualquer dos interessados determina a “ilegitimidade dos intervenientes na acção”.
Comentando o instituto em questão, considerava A. dos Reis que: “Há realmente casos em que a lei determina que a acção seja proposta contra todos os interessados. Caso típico e o do artigo 2193.° do Código Civil: qualquer acção relativa à propriedade do prédio indiviso, ou que possa ter efeito diminuir o valor dos quinhões, deve ser intentada contra todos os quinhoeiros. Outro caso é o do artigo 195.° do Código do notariado: a acção de revalidação tem de ser intentada contra os demais interessados e contra o notário.
Nestes casos e em casos semelhantes a lei torna indivisível o interesse em litígio. A indivisibilidade, em vez de ser decretada pela lei, pode ser estipulada por contrato. Compreende-se perfeitamente que num contrato em que outorguem vários interessados, se insira uma cláusula concebida nestes termos: qualquer acção emergente deste contrato terá de ser proposta contra todos os outorgantes, exceptuados o autor ou autores.
Finalmente, a indivisibilidade pode derivar da própria natureza da relação jurídica. É o que sucede quando for necessária a intervenção de todos os interessados para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal (2.ª parte da alínea c).
Há, pois; relações jurídicas indivisíveis; e a indivisibilidade pode proceder da lei, do contrato, ou da própria natureza da relação. Ora, sempre que se trate de relações deste tipo, hão-de figurar na acção respectiva todos os interessados; quer dizer, a acção tem de ser proposta contra todos os outros interessados, além do autor ou dos autores. Se o não for, verifica-se a ilegitimidade das partes.
As partes são ilegítimas no caso figurado, não por falta de interesse, mas por o interesse não poder ser declarado judicialmente sem o concurso de todos os titulares. Precisamente por se tornar indispensável a presença de todos os interessados, sob pena de ilegitimidade, é que o litisconsórcio reveste, nos casos apontados, a feição de necessário.
(…)
Das três fontes de indivisibilidade da relação jurídica, a que suscita dificuldades de aplicação é a terceira. Tudo está em saber como deve entender-se a fórmula «para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal»”; (in, “C.P.C. Anotado”, vol. I, pág. 92 e segs., podendo-se ver também, C. Pires e V. Lima in “C.P.C.M. Anotado e Comentado”, vol. I, pág. 184 e segs., onde vem citada abundante doutrina sobre a questão).
No caso, o Tribunal de Segunda Instância, (invocando o art. 61°, n.° 2 do C.P.C.M., e) considerou que “para que a decisão possa produzir o seu efeito útil normal, no sentido de obter regulamentação definitiva da situação concreta das partes relativamente ao pedido de execução específica da metade indivisa do imóvel n.º XXXX, há-de mandar citar a recorrente, na qualidade de comproprietária da outra metade indivisa do prédio, para, querendo, intervir na acção com vista a apurar se a mesma pretende exercer o direito de preferência na aquisição do imóvel”.
Ora, na vigência do C.P.C. de 1939, e em relação ao referido “efeito útil normal da decisão”, debatiam-se duas teses, uma “lata” e outra “restrita”.
Para a segunda, (a mais restrita), o litisconsórcio, em virtude da própria natureza da relação jurídica, apenas teria lugar quando a decisão a proferir não pudesse produzir efeito estável e definitivo entre as próprias partes, se não atingisse todos os sujeitos da relação.
Para a primeira, (a lata), abrangia, além do caso indicado, aqueles em que a decisão, embora susceptível de aplicação restrita às partes, ficasse em contradição – teórica ou técnica – com outra divergente que sobre a mesma relação viessem a obter os restantes sujeitos; (cfr., A. Castro in, “Lições de Proc. Civil”, 2° - 725 e 736).
Pronunciando-se (especificamente) sobre o “litisconsórcio necessário natural”, e, mais concretamente, sobre o alcance da expressão “efeito útil normal”, assim pondera Manual de Andrade: “Quando o entrelaçamento das posições dos vários interessados vai a tal ponto, pela natureza da relação jurídica, que nada de definitivo se pode decidir senão para todos e portanto entre todos, quer dizer, vai a tal ponto que não podem regular-se inatacavelmente as posições de alguns sem se regularem as dos outros, - então é que a sentença que se proferisse sem todos estarem no pleito não produziria «o seu efeito útil normal»”; (in “Significado da expressão efeito útil normal”, parecer publicado na revista Scientia Iuridica, n.° 34, tomo VII, pág. 185 e segs.).
Aqui chegados, vejamos.
Tendo em conta os elementos (disponíveis) nos presentes autos, importa salientar que a agora recorrida não teve – nem tinha de ter – intervenção no contrato promessa celebrado e cuja execução específica foi decretada com a sentença do Tribunal Judicial de Base.
E, como tal, não sendo “parte no dito contrato”, razoável se mostra de realçar também que, na dita acção, não existia qualquer “facto alegado” que determinasse a sua demanda.
Na verdade, e não sendo “sujeito”, mas, antes, um “estranho” na “relação material controvertida”, adequado se nos apresenta de considerar que não lhe assiste legitimidade para, na dita “acção”, discutir o que quer que seja, e, eventualmente, qualquer versão ou circunstancialismo do acordado, nomeadamente, quanto ao seu cumprimento, mora ou incumprimento.
Dest’arte, (e em nossa opinião), não se mostra de confirmar a decisão proferida e ora recorrida.
Dir-se-á, assim, que abalado, ou mesmo (frontalmente) violado fica o “direito” do qual a ora recorrida é titular, (sobre a metade indivisa do imóvel em questão), totalmente desprotegida estando em relação ao mesmo, o que não se apresenta legal ou razoável.
Porém, e sem embargo do muito respeito devido a diverso entendimento, apenas, aparentemente, assim é, outra sendo a nossa posição sobre a questão.
Cumpre referir que com o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância ora recorrido se pretendeu assegurar o “exercício do direito de preferência” que à ora recorrida se entendeu assistir; (cfr., o penúltimo § do segmento decisório atrás transcrito).
Contudo, ainda que se compreenda a razão do decidido, cremos haver equívoco.
Os “direitos de preferência” podem ser “convencionais” – como os chamados “pactos de preferência”, (cfr., art. 408° do C.C.M.) – ou “legais”, (cfr., art°s 1308°, 1446° e 1970° do mesmo código), consoante tenham origem num acordo de vontade ou na lei.
Sendo este último o caso da preferência que (efectivamente) assiste à recorrida dada a sua qualidade de “comproprietária”, (cfr., sobre a questão, o Ac. deste Tribunal de 09.05.2012, Proc. n.° 14/2012), vejamos.
Nos termos do estatuído no art. 1308° do C.C.M.:
“1. O comproprietário goza do direito de preferência e tem o primeiro lugar entre os preferentes legais no caso de venda, ou dação em cumprimento, a estranhos da quota de qualquer dos seus consortes.
2. É aplicável à preferência do comproprietário, com as adaptações convenientes, o disposto nos artigos 410.º a 412.º
3. Sendo dois ou mais os preferentes, a quota alienada é adjudicada a todos, na proporção das suas quotas”.
Remetendo o transcrito comando legal para os “artigos 410° a 412°”, vale a pena atentar que, em conformidade com primeiro destes, e sob a epígrafe “Conhecimento do preferente” se estatui aí que:
“1. Querendo vender a coisa que é objecto do pacto, o obrigado deve comunicar ao titular do direito o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato.
2. Recebida a comunicação, deve o titular exercer o seu direito dentro do prazo de 8 dias, sob pena de caducidade, salvo se estiver vinculado a prazo mais curto ou o obrigado lhe assinar prazo mais longo”.
Em face do assim preceituado, desde logo resulta que o direito de preferência pode ser exercido, (digamos que, no “momento ideal”), perante a “comunicação do projecto de venda” a que se refere o n.° 1 do aludido art. 410° do C.C.M. (e art. 1220° do C.P.C.M.), cabendo ao preferente observar o que aí se prescreve.
In casu, diversa é a situação.
No caso dos autos, a “venda”, (ainda que através da decretada “execução específica”), está “consumada”, ultrapassada estando a fase da possibilidade do preferente (optar por) aceitar ou não o “projecto de venda”, podendo, apenas, “reagir” à mesma.
Esta a “posição” da ora recorrida que, em face da já referida sentença do Tribunal Judicial de Base, recorreu, vindo a obter provimento com o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que agora constitui objecto do presente recurso.
Tratando da matéria da “tutela do direito de preferência”, é comum referir-se que violado o direito de preferência, ao preferente cabe – até por uma questão de elementar justiça – o “direito a uma indemnização” pelos danos sofridos, podendo, em certos casos, recorrer à chamada “acção de preferência”; (cfr., art. 415° e o art. 1309° do C.C.M.).
Neste sentido, veja-se a lição de Galvão Telles: “Se o obrigado à preferência vender a coisa a terceiro sem notificar a outra parte ou apesar de esta ter em tempo declarado preferir, incorrerá perante ela em responsabilidade contratual, devendo indemnizá-la pelos prejuízos que lhe advierem da violação do pacto.
O preferente tem de se contentar com essa indemnização, não podendo chamar a si a coisa alienada.
Só não é assim se ao pacto tiver sido atribuída eficácia real – eficácia real que só existirá, como vimos, se o pacto respeitar a imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, constar de escritura pública ou de documento particular com reconhecimento notarial, conforme os casos, e estiver registado. Neste caso o direito do preferente prevalece sobre o do comprador. Mas para isso o titular terá de o exercer através da chamada acção de preferência …”; (in “Direito das Obrigações”, 6ª ed., pág. 152 e 153, podendo-se, também, sobre os “meios de tutela à disposição do preferente”, ver A. Cardoso Guedes in, “O exercício do direito de preferência”, Teses, Porto, 2006, Publicações Univ. Católica, pág. 589 e segs., e Cheok Ian Lei in, “A tutela do direito de preferência”, 2017, Univ. Coimbra, pág. 86 e segs.).
Como parece evidente, a aludida “indemnização”, não justifica a decisão pelo Tribunal a quo proferida.
E a referida “acção de preferência”?
Vejamos.
Com a epígrafe “acção de preferência”, preceitua o art. 1309° do C.C.M. que:
“1. O comproprietário a quem se não dê conhecimento da venda ou dação em cumprimento tem o direito de haver para si a quota alienada, contanto que o requeira dentro do prazo de 6 meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e deposite, nos 8 dias seguintes ao despacho que ordene a citação, o preço devido, acrescido das despesas, quando e na medida em que o beneficiem, com emolumentos notariais e de registo e com impostos devidos pela aquisição.
2. O direito de preferência e a respectiva acção não são prejudicados pela modificação ou revogação da alienação, ainda que estes efeitos resultem de confissão ou transacção judicial”.
Ora, atento o estatuído, e não obstante ser a situação da ora recorrida, também aqui se nos mostra de considerar que justificada não se apresenta a decisão recorrida.
Com efeito, e, tanto quanto, (em nossa opinião), resulta do transcrito comando legal, evidente se apresenta que o exercício do aí previsto “direito de preferência”, (condicionado pelo “prazo” e pelo “depósito” aí referidos), não constitui nenhum “direito” que confere ao seu titular, (no caso, à ora recorrida), a “capacidade” – ou melhor dizendo, “legitimidade” – de se “introduzir na acção de execução específica” que culminou com a sentença do Tribunal Judicial de Base, (que, note-se, não sofre de qualquer nulidade ou anulabilidade), sem prejuízo do direito de, com a invocação do seu “direito de preferência”, e através de meio processual próprio (e autónomo), ou seja, da dita “acção de preferência”, se poder sub-rogar na posição do comprador, (sendo, aliás, de referir, que o pedido a deduzir na aludida “acção” e sobre o qual deve o Tribunal emitir pronúncia é, concretamente, e apenas, o de reconhecer o reclamado direito de preferência sobre o prédio… e de se declarar transferida a sua propriedade, com a condenação do aí R. a proceder à sua entrega).
Neste sentido, veja-se, A. Varela, (in R.L.J., n.° 119, pág. 109), que adverte que a “acção de preferência, na sua real essência, não é uma acção de anulação, mas uma pura acção de substituição, que nada tem a ver com a ilicitude ou a má fé do substituído”, valendo também a pena atentar na observação de Lebre de Freitas que, a propósito da “falta de notificação para o exercício do direito de preferência”, considera que, perante a mesma, se deve seguir o regime geral da Lei civil, devendo o titular do direito de preferência “propor uma acção de preferência” no prazo que a Lei, consoante a causa do seu direito, lhe concede; (in “A acção executiva”, Coimbra editora, 1993, pág. 273, e no mesmo sentido, R. Bastos in, “Notas ao C.P.C.”, vol. IV, pág. 126).
Na verdade, as “preferências legais”, (como é o caso), apenas conferem ao respectivo titular, a faculdade de, em igualdade de condições, (pelo mesmo preço), se substituir a qualquer adquirente da coisa sobre que incidam, em certas formas de alienação, sendo que da procedência da “acção de preferência” pode-se tão só esperar a substituição, com eficácia «ex tunc», do adquirente pelo preferente.
Como escreve Henrique Mesquita, “o direito que pode exercer-se através de uma acção de preferência é o direito de em determinada venda, substituir o comprador, reembolsando-o do preço que pagou ao comprador…e passando o preferente a ocupar a sua posição jurídica, como se o vinculado à preferência houvesse celebrado directamente com ele o negócio sujeito à prelação”; (in R.L.J., 132°, n.° 3903, pág. 191).
De tudo o que se vem de expor, resulta pois que é pressuposto da mesma “acção”, (como meio processual autónomo e específico), que já tenha sido celebrado, (consumado), o negócio jurídico em relação ao qual existe direito de preferência, e que este seja válido; (atente-se na própria redacção do art. 1309° do C.C.M. que, à semelhança do que antes constava do art. 1566° do Código de Seabra, se refere ao direito do comproprietário de “haver para si a quota alienada”).
Como nota Manuel Trigo:
“Não sendo dada a preferência, porque falte a comunicação, nem por outra via se conheça atempadamente a venda, ou porque embora tenha havido renúncia se dê a venda subsequente em condições diversas mais favoráveis, violada a obrigação de dar preferência, são diferentes os direitos dos preferentes em função da sua natureza e do seu valor relativo.
O titular de um direito legal de preferência tem, como o comproprietário, o direito de haver para si o bem ou direito alienado, contanto que o requeira dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e deposite o preço devido nos oito dias seguintes ao despacho que ordene a citação dos réus em acção judicial de preferência, nos termos do n.° 1, do art. 1309.°”, advertindo, também, que “Pressuposto do exercício de preferência é a violação desse direito por acto do devedor, verificada a alienação e alienação válida”; (in “Lições de Direito das Obrigações”, F.D.U.M., pág. 186 e “nota 231”).
Com efeito, é caso para se dizer que o “direito de preferência” em questão nasce com a sentença de execução específica, antes disso, existindo, apenas, uma mera “expectativa jurídica”.
E, a ser assim, sentido cremos que não faz anular-se todo o processado que culminou com a sentença que decretou a execução específica do contrato promessa de compra e venda em questão – até porque não se vislumbra viabilidade prático-processual em se “enxertar” na acção de execução específica, (proposta e já finda), uma “acção de preferência”, no âmbito da qual, após citada a ora recorrida, até pode suceder que nada venha a dizer, (com a eventual necessidade de repetição de tudo o que já se processou) – adequado se mostrando de considerar que a “reacção” que (eventualmente) pretenda adoptar, (assim como o resultado que possivelmente queria alcançar), deve antes ter lugar e ocorrer na dita “acção de preferência”, se, para tal, verificados estiveram os seus pressupostos legais.
Aliás, vale a pena atentar também que, mesmo na situação do art. 803°, n.° 2 do C.P.C.M. – que tratando das situações em que as “vendas judiciais ficam sem efeito” prescreve que “Quando, posteriormente à venda, for julgada procedente qualquer acção de preferência ou for deferida a remição de bens, o preferente ou o remidor substituem-se ao comprador, pagando o preço e as despesas da compra” – a venda em questão não é anulada, prevendo-se, tão só, que com a procedência da acção de preferência, ocorra a (mera) substituição do comprador; (cfr., v.g., May de Figueiredo Bordadágua in, “Os direitos reais de aquisição no processo executivo”, pág. 64 e segs.).
Aqui chegados, e outra questão não havendo a apreciar, resta decidir.
Decisão
4. Em face do expendido, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, revogando-se o Acórdão recorrido.
Custas pela recorrida.
Registe e notifique.
Macau, aos 5 de Junho de 2020
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
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Proc. 138/2019 Pág. 1