Processo n.º 536/2020 Data do acórdão: 2020-7-30 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– art.o 6.o da Lei n.o 10/2012
– interdição de entrada em casinos a pedido do interditando
– limitação voluntária da liberdade de entrada em casinos
– revogabilidade da limitação voluntária da liberdade
– art.o 69.o, n.o 5, primeira parte, do Código Civil
– art.o 72.o, n.o 9, do Código Civil
– incumprimento da interdição voluntária de entrada em casinos
– crime de desobediência
– art.o 12.o, alínea 2), da Lei n.o 10/2012
– autoridade pública como bem jurídico
S U M Á R I O
1. O art.o 6.o da Lei n.o 10/2012, de 27 de Agosto, dispõe que o Director de Inspecção e Coordenação de Jogos pode interditar a entrada em todos os casinos, ou em apenas alguns deles, pelo prazo máximo de dois anos, às pessoas que o requeiram ou que confirmem requerimento apresentado para este efeito por cônjuge, ascendente, descendente ou parente na linha colateral em 2.o grau.
2. A interdição de entrada nos casinos assim requerida e deferida não é uma ordem imposta por alguma decisão judicial ou administrativa interditando a entrada nos casinos nos casos previstos na lei no exercício do direito de punir (por exemplo, no caso de aplicação de pena acessória de proibição de entrada nas salas de jogos a arguido condenado por prática de crime de usura para jogo, ou no caso de imposição da regra de conduta de não frequência dos casinos no período da suspensão da pena de prisão aplicada – cfr. o art.o 15.o da Lei n.o 8/96/M, de 22 de Julho, ou o art.o 50.o, n.os 1 e 2, alínea b), do Código Penal, respectivamente) ou no exercício do poder de autoridade em assuntos de gestão pública, mas, sim, resulta da própria solicitação da pessoa visada, que procedeu como que à limitação voluntária da sua liberdade de entrada em casinos, limitação esta que é sempre revogável (nos termos do art.o 6.o, n.o 2, da Lei n.o 10/2012, dentro da filosofia do disposto nos art.os 69.o, n.o 5, primeira parte, e 72.o, n.o 9, do Código Civil).
3. Não tendo sido, pois, essa medida de interdição aplicada ao arguido dos autos na sequência de anterior prática de algum acto com relevância penal ou violador de alguma norma jurídica de carácter sancionatório, mas sim correspondendo essa medida ao pedido então confirmado por ele traduzido materialmente numa limitação voluntária da sua liberdade de entrada em casinos, o tipo delitual penal de desobediência, previsto no art.o 12.o, alínea 2), da Lei n.o 10/2012, que pretende tutelar a autoridade pública como seu bem jurídico, não é aplicável à conduta de incumprimento de uma interdição de entrada em casinos inicialmente querida pelo arguido que se retractou dessa interdição vindouramente, ainda que a interdição tenha sido autorizada pelo Director de Inspecção e Coordenação de Jogos ao abrigo do art.o 6.o dessa Lei, compreensivelmente apenas para fins de execução da própria medida de interdição por si querida antes (medida esta que visa ajudar o arguido visado, sem confiança própria na capacidade de se abster de entrar em casinos, a tirar o vício de jogar em casinos).
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 536/2020
(Recurso em processo penal)
Recorrente: Ministério Público
Recorrido (arguido): A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 127 a 136 do subjacente Processo Comum Colectivo n.o CR3-19-0219-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou absolvido o arguido A, aí já melhor identificado, da acusada prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de desobediência simples (por incumprimento da decisão administrativa, devidamente notificada, de interdição da entrada nos casinos) p. e p. sobretudo pelo art.o 12.o, alínea 2), da Lei n.o 10/2012, de 27 de Agosto, e condenado como autor material de um crime consumado de abuso de confiança de valor elevado, em oito meses de prisão, suspensa na execução por um ano e seis meses.
Inconformado, veio o Digno Delegado do Procurador recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI) para pedir a condenação do arguido também pela prática do crime acima referido, ou o reenvio do processo para novo julgamento desse crime, tendo alegado (no seu essencial) o seguinte na sua motivação de fls. 143 a 154 dos presentes autos correspondentes:
– discorda da actuação da M.ma Juíza Presidente do Tribunal Colectivo recorrido de, já depois da conclusão da audiência de julgamento sobre a causa, e no momento imediatamente anterior à leitura do acórdão, sem a presença simultânea dos outros dois M.mos Juízes membros do mesmo Colectivo, ter aditado factos favoráveis ao arguido (mas não descritos na acusação pública) com importância decisiva para a tomada da respectiva decisão absolutória penal, ao arrepio do disposto nos art.os 339.o, n.o 1, e 342.o do Código de Processo Penal (CPP);
– além disso, a mesma decisão absolutória padece dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação, previstos nas alíneas a) e b) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP;
– por fim, é de entender que a medida de auto-exclusão de acesso aos casinos de Macau não é autêntica medida de auto-exclusão se não tiver sido objecto de uma decisão administrativa por parte da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos (DICJ), pelo que o nascimento dessa decisão administrativa na ordem jurídica não depende apenas da vontade, neste sentido, da própria pessoa visada, mas sim também da autorização, por aquela entidade administrativa, da pretensão deste tipo, de maneira que essa decisão administrativa é dotada da autoridade pública que faz com que a violação ou não acatamento da própria decisão administrativa tenha que ser sancionada com o crime de desobediência; aliás, é por esta decisão administrativa ser sancionável com crime de desobediência é que faz ela surtir a eficácia da ajuda prestada pela Administração ao arguido visado no sentido de este tirar o vício de jogos;
– ademais, nos pontos 310, 311, 312 e 324 do Parecer n.o 2/IV/2012 subjacente ao processo legiferante, pela Assembleia Legislativa de Macau, da Lei n.o 10/2012, já consta escrita a intenção da Entidade Proponente desta Lei de fazer punir penalmente quem violar a medida de auto-exclusão de acesso aos casinos;
– e a perda da eficácia da ordem administrativa em causa só operaria depois, pelo menos, da devida apresentação, por escrito, dessa pretensão pela pessoa visada à DICJ
– portanto, é de condenar o arguido pela prática do crime acusado, sob pena de ficar ferido o bem jurídico subjacente à norma incriminatória em causa, e frustrado também o esforço prestado pela Administração para prevenir a prática de jogos de fortuna e azar por pessoas viciadas neste tipo de jogos.
Ao recurso, respondeu o arguido recorrido a fls. 156 a 159v, no sentido de manutenção da decisão absolutória em questão.
Subidos os autos, opinou a Digna Procuradora-Adjunta a fls. 168 a 170v, pugnando pela condenação do arguido no crime de desobediência, por entendido já preenchimento, no caso do arguido, de todos os elementos desse tipo legal de ilícito.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. A acusação do Ministério Público contra o arguido foi deduzida a fls. 80 a 81v, cujo teor se tem por aqui inteiramente reproduzido.
2. O acórdão ora recorrido pelo Ministério Público encontrou-se proferido a fls. 127 a 136 dos autos, cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido. Nesse acórdão, o arguido foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime consumado de abuso de confiança em valor elevado, mas absolvido do crime de desobediência simples então também imputado naquele libelo acusatório.
3. De acordo com a fundamentação fáctica desse acórdão, ficou inclusivamente provado que:
– (cfr. o facto provado 5, que corresponde materialmente ao facto acusado 5:) o arguido, por ter vício de jogos, pediu, em 18 de Novembro de 2016, à DICJ a auto-exclusão de acesso, por dois anos, a todos os casinos da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM);
– (cfr. o facto provado 6, que corresponde materialmente ao facto acusado 6:) no mesmo dia, por despacho da DICJ, foi interditada a entrada do arguido, a partir de 25 de Novembro de 2016 e até 24 de Novembro de 2018, em todos os casinos da RAEM, e o arguido foi notificado disso no mesmo dia, e informado de o não cumprimento da interdição de entrada nos casinos incorrer no crime de desobediência, nos termos do n.o 1 do art.o 312.o do Código Penal (CP), por remissão da alínea 2) do art.o 12.o da Lei n.o 10/2012, tendo o arguido assinado no mesmo dia na notificação em causa;
– (cfr. o facto provado 8, em correspondência material com o facto acusado 8:) em 17 de Janeiro de 2018, cerca das 08:45 horas, o arguido, com uso do dinheiro tirado à loja referida, jogou no Casino Rio, e até cerca das 16:44 horas, perdeu todo o dinheiro;
– (cfr. o facto provado 9, em correspondência parcial com o facto acusado 9 que diz que na altura, o arguido sabia que o despacho de interdição de entrada em todos os casinos da RAEM era ainda válido): antes de entrar no acima referido casino, o arguido sabia que o despacho de interdição de entrada em todos os casinos da RAEM era ainda válido;
– (cfr. o facto provado 11, em correspondência parcial com o facto acusado 11 que diz que o arguido, após devidamente advertido, sabia claramente que ele era interditado de entrar em qualquer casino da RAEM, e sabia também claramente das consequências legais da entrada em casino, mas decidiu em violar a ordem legítima emitida pela Autoridade competente de Macau à qual ele devia dar acatamento:) o arguido, após devidamente advertido, sabia claramente que ele era interditado de entrar em qualquer casino da RAEM, e sabia também claramente das consequências legais da entrada em casino;
– (cfr. o facto provado 12, em correspondência material com o facto acusado 12:) o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente ao praticar a conduta acima referida, e sabia claramente que a conduta acima referida era proibida e punida por lei de Macau.
4. O Tribunal recorrido fez constar no mesmo acórdão que não se provou o seguinte:
– a partir do momento em que entrou no referido casino, o arguido sabia que o despacho de interdição de entrada em todos os casinos da RAEM ainda era válido;
– o arguido decidiu em violar a ordem legítima emitida pela Autoridade competente de Macau à qual ele devia dar acatamento.
5. O arguido disse na audiência de julgamento em primeira instância que sabia do período de interdição de entrada em casino e das consequências da sua violação, e que sabia que, antes de ele entrar no Casino Rio, aquela ordem de interdição ainda era válida (cfr. o resumo das declarações prestadas por ele na audiência de julgamento, feito pelo Tribunal recorrido no primeiro parágrafo da fundamentação probatória do seu acórdão, na parte respeitante aos factos de entrada no casino – concretamente nas três últimas linhas do primeiro parágrafo da página 10 do texto do acórdão recorrido).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
O Ministério Público ora recorrente assacou à decisão judicial absolutória, em primeira instância, do crime de desobediência simples os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de contradição insanável da fundamentação, e de violação do disposto nos art.os 339.o, n.o 1, e 342.o do CPP.
Entretanto, da leitura da fundamentação fáctica do acórdão recorrido, no que ao acusado crime de desobediência simples diz respeito, vê-se que o Tribunal recorrido já fez investigação sobre toda a factualidade descrita na acusação pública, pelo que não pode esse Tribunal ter cometido o vício referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP quanto à matéria acusada ao arguido (e sobre o alcance e sentido do vício, aí referido, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, cfr., por exemplo, de entre muitos outros, os acórdãos deste TSI, de 22 de Julho de 2010, do Processo n.o 441/2008, e de 17 de Maio de 2018, do Processo n.o 817/2014).
E agora do assacado vício de contradição insanável da fundamentação:
O facto de o Tribunal recorrido não ter dado tal e qual por provado o facto acusado 9 (segundo o qual o arguido sabia que o despacho de interdição de entrada em todos os casinos da RAEM era ainda válido), mas sim apenas ter dado por provado que antes de entrar no acima referido casino, o arguido sabia que o despacho de interdição de entrada em todos os casinos da RAEM era ainda válido, afasta a hipótese de contradição desse facto provado 9 com os dois factos descritos como não provados (e referidos no ponto 4 da parte II do presente acórdão de recurso).
E o teor conjugado do facto provado 12, dos primeiros 11 factos provados e daqueles dois factos não provados conduz ao seguinte entendimento, por parte do Tribunal recorrido, a nível de julgamento dos factos: o arguido sabia claramente que apenas a sua conduta de abuso de confiança era proibida e punida por lei.
Daí que não há contradição irredutível, a relevar nos termos da alínea b) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, entre os próprios factos provados, nem entre os factos provados e os factos não provados, na fundamentação fáctica da decisão absolutória do crime de desobediência simples.
Na motivação do recurso, foi questionado o aditamento daqueles dois factos não provados.
Entretanto, realiza o presente Tribunal de recurso que aqueles dois factos não provados não foram “aditados” pelo Tribunal recorrido ao tema probando dos autos, mas sim corresponderam à decisão desse Tribunal no sentido sobretudo de dividir em dois o espaço temporal descrito no facto acusado 9, e de dar por não provado o descrito na parte final do facto acusado 11, isto porque:
– no facto acusado 9, foi descrito que “na altura, o arguido sabia que o despacho de interdição de entrada em todos os casinos da RAEM era ainda válido”, mas o Tribunal recorrido acabou por dar por provado que “antes de entrar no acima referido casino, o arguido sabia que o despacho de interdição de entrada em todos os casinos da RAEM era ainda válido”, porque no entender desse mesmo Tribunal, não se pôde dar por provado que “a partir do momento em que entrou no referido casino, o arguido sabia que o despacho de interdição de entrada em todos os casinos da RAEM ainda era válido”; por aí fica demonstrado que houve qualquer aditamento de factos ao tema probando dos autos, mas sim uma decisão judicial de se dar por parcialmente provado o facto acusado 9;
– por outra banda, no facto acusado 11, foi descrito que “o arguido, após devidamente advertido, sabia claramente que ele era interditado de entrar em qualquer casino da RAEM, e sabia também claramente das consequências legais da entrada em casino, mas decidiu em violar a ordem legítima emitida pela Autoridade competente de Macau à qual ele devia dar acatamento”, e o Tribunal recorrido acabou, porém, por não dar provado que “o arguido decidiu em violar a ordem legítima emitida pela Autoridade competente de Macau à qual ele devia dar acatamento”, pelo que o segundo dos factos especificados como não provados representou a comprovação parcial do descrito no facto acusado 11, e não acarretou assim o aditamento de algum facto ao tema probando dos autos.
Outrossim, e independentemente da conclusão acima tirada no sentido de não havido aditamento de factos ao tema probando dos autos, sempre seria de entender que o art.o 339.o, n.o 1, do CPP não serviria para se opor à descrição, no acórdão recorrido, daqueles dois factos não provados, porque tendo esta norma processual penal por ratio legis (evidenciada pelo n.o 2 desse próprio artigo) proteger o arguido contra a alteração (em desfavor dele) da factualidade inicialmente imputada a ele, não previamente comunicada pelo Tribunal julgador para efeitos do exercício do seu direito de defesa, e acabando o sentido e alcance daqueles dois factos não provados por beneficiar a própria Defesa, à Entidade Acusadora não seria pertinente a invocação do disposto no n.o 1 do art.o 339.o para pretender a invalidação dos mesmos dois factos não provados.
Entretanto, do resumo das declarações prestadas pelo arguido na audiência de julgamento, feito pelo Tribunal recorrido na fundamentação probatória do seu acórdão, sabe-se que o arguido disse na audiência de julgamento que sabia do período de interdição de entrada em casino e das consequências da sua violação, e que sabia que, antes de ele entrar no Casino Rio, aquela ordem de interdição ainda era válida.
Assim, com base nessas declarações do arguido, realmente não se pode julgar – sob pena de ofensa às leges artis a observar no julgamento da matéria de facto – como não provado que “a partir do momento em que entrou no referido casino, o arguido sabia que o despacho de interdição de entrada em todos os casinos da RAEM ainda era válido”, nem julgar como não provado que “o arguido decidiu em violar a ordem legítima emitida pela Autoridade competente de Macau à qual ele devia dar acatamento”.
Daí que a objecção levantada na motivação do recurso a respeito dessa parte já se reconduz à verificação do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP (pelo que se mostra prejudicada a indagação da questão, levantada inclusivamente na mesma motivação, de violação, pelo Tribunal recorrido, do art.o 342.o do CPP, aquando do alegado aditamento daqueles dois factos não provados).
Contudo, não é mister reenviar o processo para novo julgamento por causa da constatação desse vício de julgamento da matéria de facto.
É que: em conformidade com o art.o 418.o, n.o 1, do CPP, o reenvio do processo, por existir algum dos vícios referidos nas alíneas do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, só é determinado no caso de não ser possível, ao tribunal de recurso, decidir da causa, e no caso dos autos, a causa penal relativa ao acusado crime de desobediência simples pode ser decidida directamente na presente lide recursória, com abstracção da indagação dos factos acusados (a cujo âmbito se circunscreveu, in casu, aquele vício de erro notório na apreciação da prova) na parte tangente à questão do dolo do arguido na prática da sua conduta de entrada no casino, porquanto nos acórdãos de recurso de 12 de Julho de 2018 do Processo n.o 437/2016 e de 29 de Abril de 2020 do Processo n.o 176/2020 deste TSI, já se pronunciou sobre a não ilicitude da conduta congénere de entrada em casino de Macau por pessoa particular que antes tinha pedido à DICJ a sua auto-exclusão de acesso aos casinos e depois veio entrar em casino, dentro do período inicial de interdição da sua entrada, decidida pela DICJ; assim, se se concluísse que a conduta deste tipo seria logo não ilícita, então já não seria mais necessário investigar sobre a veracidade dos factos acusados pelo Ministério Público acerca da intenção do arguido na prática da mesma conduta.
Na verdade, uma das questões postas na motivação do recurso do Ministério Público prende-se com a indagação sobre se o não acatamento, pelo arguido, da medida de exclusão de acesso aos casinos de Macau acarretou para ele os efeitos legais de prática do crime de desobediência simples, como tal cominados na notificação da decisão administrativa de autorização do pedido de exclusão de acesso aos casinos, então apresentado por ele à DICJ.
Assim sendo, sobre o caso concreto dos autos, não deixa de ser também aplicável, mutatis mutandis, o seguinte entendimento jurídico das coisas já veiculado nos dois acórdão de recurso atrás identificados:
O art.o 6.o da Lei n.o 10/2012, de 27 de Agosto, dispõe que o Director de Inspecção e Coordenação de Jogos pode interditar a entrada em todos os casinos, ou em apenas alguns deles, pelo prazo máximo de dois anos, às pessoas que o requeiram ou que confirmem requerimento apresentado para este efeito por cônjuge, ascendente, descendente ou parente na linha colateral em 2.o grau.
No caso, tratou-se de um pedido voluntariamente apresentado pelo próprio arguido à DICJ, de exclusão de acesso dele aos casinos de Macau. Portanto, é de entender que a medida da interdição de entrada dele nos casinos de Macau, referida na matéria de facto provada, não foi uma ordem imposta por alguma decisão judicial ou administrativa interditando a entrada nos casinos, nos casos previstos na lei no exercício do direito de punir (por exemplo, no caso de aplicação de pena acessória de proibição de entrada nas salas de jogos a arguido condenado por prática de crime de usura para jogo, ou no caso de imposição da regra de conduta de não frequência dos casinos de Macau no período da suspensão da pena de prisão aplicada – cfr. o art.o 15.o da Lei n.o 8/96/M, de 22 de Julho, ou o art.o 50.o, n.os 1 e 2, alínea b), do CP, respectivamente) ou no exercício do poder de autoridade em assuntos de gestão pública, mas, sim, resulta da própria solicitação voluntária do arguido, que procedeu como que à limitação voluntária da sua liberdade de entrada em determinados casinos, limitação essa que é sempre revogável (nos termos do art.o 6.o, n.o 2, da Lei n.o 10/2012, dentro da filosofia do disposto nos art.os 69.o, n.o 5, primeira parte, e 72.o, n.o 9, do Código Civil), de maneira que o tipo delitual penal de desobediência, que pretende tutelar a autoridade pública como seu bem jurídico, não é aplicável à conduta de incumprimento de uma interdição de entrada em casinos inicialmente querida pelo arguido que se retractou dela vindouramente.
Ou seja, entende-se, em prol da unidade do sistema jurídico como critério orientador na interpretação da lei, que a retractação, pelo arguido, da interdição voluntária da entrada em casinos não fere nunca o bem jurídico de autoridade pública em mira no tipo-de-ilícito de desobediência (porque a medida de interdição de entrada em casinos não lhe foi aplicada na sequência de anterior prática de algum acto com relevância penal ou violador de alguma norma jurídica de carácter sancionatório, mas sim correspondeu ao pedido então apresentado por ele, traduzido materialmente numa limitação voluntária da sua liberdade de entrada em casinos), pelo que a ele não se deve imputar a ilicitude do facto de desobediência (cfr. o art.o 30.o, n.o 1, do CP), ainda que tal interdição voluntária da entrada em casinos tenha sido autorizada pela DICJ, compreensivelmente apenas para fins de execução da medida de interdição voluntária em causa (medida esta que visa ajudar a própria pessoa do arguido, naturalmente sem confiança própria na capacidade de se abster de entrar em casinos, a tirar o vício de jogar em casinos).
E cabe ainda tecer as seguintes considerações, então já materialmente vertidas no referido acórdão do Processo n.o 176/2020:
– na exposição jurídica acima feita, está-se a interpretar a lei em prol da unidade do sistema jurídico, porquanto a unidade do sistema jurídico é o factor primado na interpretação da lei, a ser feita a partir do texto da lei, nos termos ditados da norma do n.o 1 do art.o 8.o do Código Civil (e neste sentido, cfr. JOÃO BAPTISTA MACHADO, in INTRODUÇÃO AO DIREITO E AO DISCURSO LEGITIMADOR, Livraria Almedina, Coimbra, 1995, 8.a reimpressão, sobretudo página 191, penúltimo parágrafo: “A sua consideração como factor decisivo ser-nos-ia sempre imposta pelo princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica”);
– a “interdição de entrada nos casinos a pedido”, determinada nos termos do n.o 1 do art.o 6.o da Lei n.o 10/2012, é exclusivamente a pedido, apresentado ou confirmado, pela pessoa particular visada, e, como tal, naturalmente sob e em sintonia total com a vontade pessoal desta (sendo, assim, uma decisão administrativa tomada ex voluntate da pessoa particular visada e com produção de efeitos legais também ex voluntate da pessoa particular visada), o que é diferente do caso da emissão, somente ex lege (por efeito de alguma norma jurídica emanada do Órgão Legislativo), da ordem administrativa limitativa da liberdade de alguma pessoa particular (com produção de efeitos legais ex lege, e como tal, naturalmente contra a vontade da pessoa visada e assim limitada na sua liberdade, por ninguém gostar de ver limitada a sua liberdade, sem sua concordância própria, mesmo que em concreto não queira ainda exercer a liberdade em questão);
– como ilustrativo do papel da vontade da própria pessoa visada para o condicionamento necessário da medida da “interdição de entrada nos casinos a pedido”, é a própria regra contida na primeira parte do n.o 2 desse art.o 6.o que dispõe que “O visado pode pedir em qualquer momento a revogação da interdição prevista no número anterior” (regra esta que condiz com o espírito do art.o 69.o, n.o 5, primeira parte, do Código Civil), sendo certo que é também por força do mecanismo da primeira parte do n.o 5 do art.o 69.o do Código Civil que o prazo de 30 dias referido na segunda e última parte do n.o 2 desse art.o 6.o deve ser razoavelmente entendido como um prazo meramente procedimental para a Administração “deferir” necessariamente o pedido de revogação da interdição e fazer comunicações necessárias às entidades públicas e privadas fiscalizadoras e/ou executadoras da medida de interdição, para efeitos de actualização da situação da pessoa visada em matéria de entrada em casino;
– em suma, não há “interdição de entrada nos casinos a pedido” sem a vontade, neste sentido, da pessoa visada; a vontade da pessoa visada é que dá vida e sentido útil à “interdição de entrada nos casinos a pedido”;
– do acto concreto e efectivo da pessoa visada de entrada em casino, praticado sem ter ela feito o pedido expresso de revogação da “interdição de entrada nos casinos a pedido” à DICJ, deduz-se, com toda a probabilidade, que ela tenha querido, no momento desta entrada, já fazer revogar a mesma medida (art.o 209.o, n.o 1, do Código Civil).
Não se pode satisfazer, assim, o pedido formulado na motivação do recurso vertente, de condenação directa do arguido pelo acusado crime de desobediência simples, ou de reenvio do processo para novo julgamento.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o pedido formulado no recurso do Ministério Público.
Sem custas, atenta a isenção do Ministério Público.
Fixam em mil patacas os honorários da Ex.ma Defensora Oficiosa do arguido recorrido, a suportar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Comunique a presente decisão ao Senhor Director de Inspecção e Coordenação de Jogos.
Macau, 30 de Julho de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
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