Processo nº 5/2020 Data: 26.06.2020
(Autos de recurso civil e laboral)
Assuntos : Embargos de terceiro.
Divórcio.
Efeitos patrimoniais.
Entre os (ex-)cônjuges.
Em relação a terceiros.
Bem próprio.
SUMÁRIO
1. Reconhecido estando na R.A.E.M. o divórcio entre A. e R. decretado na República Popular da China, e, com tal reconhecimento, declarada estando, por assim dizer, a sua “eficácia” perante o ordenamento jurídico local, (cfr., art. 1199° do C.P.C.M.), impõe-se concluir – atento o estatuído no art. 1644°, n.° 1 do C.C.M., quanto à “data em que se produzem os efeitos do divórcio” – que, “entre os (ex-)cônjuges”, os seus efeitos retroagem à data em que foi “decretado”.
2. O estatuído no n.° 3 do aludido art. 1644° do C.C.M., destina-se a regular “os efeitos patrimoniais do divórcio em relação a terceiros”, mas tão só em relação a “situações (que lhe são) anteriores”, e não, em relação àquelas que apenas ocorreram “depois do divórcio”.
3. Provado estando que a A. já estava (efectivamente) divorciada – em 08.05.2012 – quando adquiriu a fracção autónoma em causa – em 04.06.2013 – a mesma não integra o “património (comum) do casal”, (motivos não havendo para se falar em “protecção de 3os”, pois que o normativo em questão apenas actua em relação a “bens comuns do casal” e (já) não em relação a “bens (próprios) adquiridos depois do divórcio”).
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 5/2020
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A (甲), A., propôs acção declarativa contra B (乙) e C (丙), RR., pedindo que fosse declarada como a legítima e única proprietária da fracção autónoma designada por “IID4”, para habitação, do prédio “[Edifício(1)]”, sito em Macau, descrito na C.R.P. sob o n.° XXXXX e inscrito a favor da A. sob o n.° XXXXXXG; (cfr., fls. 2 a 6 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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O processo seguiu os seus termos e, após contestação do (2°) R. C, (cfr., fls. 134 a 137-v), por sentença de 14.01.2019, declarou-se que o “direito à concessão por arrendamento e propriedade de construção sobre a fracção autónoma designada por “IID4”, (…) e inscrito a favor da Autora sob o n° XXXXXXG, pertence apenas à Autora por o ter adquirido no estado de divorciada, julgando-se improcedente a excepção invocada pelo 2° Réu de lhe ser inoponível o reconhecimento do direito supra. (…)”; (cfr., fls. 306 a 312).
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Inconformado com o decidido, o 2° R. recorreu, (cfr., fls. 323 a 327-v), e por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 18.07.2019, (Proc. n.° 423/2019), decidiu-se:
“- ampliar a matéria de facto nos termos acima consignados;
- para o efeito, determinar a junção da certidão da petição inicial do Proc. nº 581/2015; e
- conceder provimento ao presente recurso jurisdicional, revogando a sentença recorrida na parte que julgou improcedente a excepção de ineficácia invocada pelo 2º Réu, passando a julgar procedente a dita excepção, declarando consequentemente que o reconhecimento da propriedade exclusiva da Autora sobre a fracção autónoma em referência é ineficaz em relação ao 2º Réu.
(…)”; (cfr., fls. 365 a 370).
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Do assim decidido, traz agora a A. o presente recurso, onde, nas suas alegações, produz as conclusões seguintes:
“1. O presente recurso tem por objecto i) a decisão de ampliação da matéria de facto dos autos e ii) a determinação dos efeitos do registo civil e predial relativamente ao 2.° Réu, ora Recorrido;
2. A primeira questão está relacionada com a interpretação e aplicação do n.° 4 do artigo 629.° CPC;
3. A segunda questão, pode ser reconduzida às seguintes formulações:
a. será legal considerar o registo de um imóvel, inscrito na Conservatória do Registo Predial apenas em nome da Autora, ora Recorrente, adquirido por esta no estado civil de divorciada (realidade substantiva), como atribuindo direitos de propriedade sobre o imóvel em causa ao 1.° Réu, pelo simples facto de no registo de aquisição, na identificação da Recorrente, constar ser casada com o 1.° Réu no regime da comunhão de adquiridos?
b. E poderá tal registo na Conservatória do Registo Predial tornar legal a penhora - registada posteriormente, no âmbito de uma execução - sobre tal imóvel, considerando que o único executado é o 1.° Réu, pelo facto deste constar no registo predial como casado no regime de bens da comunhão de adquiridos com a única proprietária do imóvel, e pelo facto de nem a proprietária nem o ex-cônjuge executado do 2.° Réu terem levado o divórcio decretado da República Popular da China à Conservatória de Registo Civil de Macau?
c. Será que a mera declaração sobre o estado civil de uma pessoa e o seu regime de bens no âmbito de uma escritura pública de compra e venda beneficia da presunção do artigo 7.° do Código de Registo Predial, no sentido de que os titulares dos direitos registados (directa e indirectamente) beneficiam de direitos que na realidade não têm pelo simples facto de terem declarado um estado civil / regime de bens incorrecto?
d. Será que se pode considerar, atenta a redacção do artigo 5.° do Código de Registo Civil, que o registo de factos ocorridos fora da RAEM (casamento e o divórcio, como sucede nos presentes autos) é obrigatório, e que não o fazendo se presume iuris et de iure não ser oponível a terceiros, isto é, que tais factos não produzem efeitos em Macau?
4. Relativamente à primeira questão identificada, o TSI decidiu ampliar a matéria de facto (art, 29.° da Contestação do Réu), com fundamento pouco esclarecedor de que a mesma poderá influenciar eventualmente a decisão do mérito da causa, relativamente à aplicação do artigo 1644.° do CC;
5. Contudo, tal decisão de ampliação é ilegal, por ser manifestamente contra legem, na medida em que na situação sub judice não existe qualquer situação de insuficiência da matéria de facto, pois o facto em causa - o registo do divórcio ocorrido na República Popular da China - não é obrigatório em Macau, tal como resulta de forma manifesta do artigo 5.° do Código de Registo Civil ("podem");
6. Na verdade, o facto que se pretende aditar não só é dispensável como é totalmente irrelevante para a boa decisão da causa, pelo que se deve concluir que o TSI atribuiu relevo onde ele não existe, assente numa confusão conceptual relativamente à natureza do registo civil de divórcio entre a Autora e o 1.° Réu, quando confrontado com os efeitos do registo predial;
7. Á luz do artigo 5.° do CRCivil, a inscrição do casamento e do divórcio no registo civil, quando se trate de factos não ocorridos em Macau, não é obrigatória;
8. Diferentemente, quanto ao registo predial (e ao próprio registo comercial), a inscrição dos factos podem ter influência quanto aos efeitos patrimoniais e ao nível da tutela de terceiros porquanto os mesmos ou são de registo obrigatório ou, caso não o sejam, a sua inscrição no respectivo registo confere protecção aos próprios interessados e a terceiros;
9. Por outro lado, ainda que se entendesse que este facto era passível de influenciar a decisão de mérito da causa - o que não se acolhe mas apenas se equaciona por cautela de patrocínio - sempre se dirá que, ao contrário do que refere o Tribunal a quo, o facto decidido acrescentar por este não poderia ter sido considerado assente, por não ter sido impugnado;
10. Com efeito, tal facto não foi impugnado porque não era possível sê-lo, na medida em que a matéria em causa [rectius, o registo do divórcio] é matéria indisponível por ser relativa ao estado civil das partes e o registo é feito com base em prova documental, e não por mero acordo entre as partes ou por impugnação das mesmas;
11. Relevante para os presentes autos era a prova da existência de casamento e do divórcio, e esses factos foram considerados provados pelo Tribunal Judicial de Base com base em prova documental;
12. Em suma, andou mal o Tribunal recorrido ao ter aceite a ampliação da matéria de facto, cuja declaração de nulidade se requer por manifestamente ilegal;
13. Relacionado com o tema acabado de se considerar está a questão de saber se o estado civil declarado no âmbito da identificação do sujeito activo de um acto de registo predial e extractado como tal para o Registo Predial) se pode impor à realidade substantiva;
14. O TSI propugnou o entendimento (com o qual a ora Recorrente não pode, de forma alguma, concordar) seguinte:
a. Após adquirirem o estatuto de residentes não-permanentes da RAEM, tanto a Autora como o 1.° Réu tinham a obrigação de registar/averbar o seu divórcio ocorrido e decretado na República Popular da China na RAEM (onde não eram residentes habituais);
b. O artigo 5.° do Código do Registo Civil (doravante, o "CRC") obrigava a que a Autora e o 1.° Réu tivessem transcrito o seu casamento lavrado no exterior e registado/averbado o seu divórcio na RAEM, de modo a que estes pudessem beneficiar dos efeitos jurídicos do seu estado civil em relação a terceiros;
c. O artigo 5.° do CRC justifica a aplicação do artigo 1644.°, n.° 3, do CC;
d. Não estando registado/averbado o divórcio à data da penhora da fracção autónoma em referência, a situação de única proprietária da fracção da Autora, ora Recorrente, como titular única da fracção, à data da aquisição, é ineficaz em relação ao 1.° e ao 2.° Réus.
15. O caminho defendido pelo Tribunal recorrido e a solução a que este chega é totalmente descabida e desprovida de qualquer assento legal, baseando-se numa errada consideração dos efeitos jurídicos do registo predial e civil;
16. São diferentes as finalidades e naturezas do registo civil e do registo predial: o registo civil tem como finalidade a ordenação jurídico-social das relações dos administrados enquanto tais, as quais, pela sua própria natureza, valem pela sua inscrição no mesmo e não com base em meras declarações (por exemplo, no âmbito de uma escritura de compra e venda, como é o caso dos presentes autos);
17. Do confronto entre o artigo 5.° e 1.° do CRCivil (e, lateralmente, o artigo 1.° da lei 11/82/M), resulta que o registo civil de Macau dispõe de forma expressa que os actos ocorridos no território da RAEM estão sujeitos a registo obrigatório ("devem"), ao passo que os actos ocorridos fora da RAEM podem ser inscritos no registo, mas que tal inscrição não passa de uma faculdade, jamais revestindo a natureza de obrigação ("podem") - o que expressa uma manifestação do princípio da territorialidade do registo civil de Macau, nos termos do qual apenas os factos ocorridos no respectivo espaço territorial da RAEM estão sujeitos à obrigatoriedade do registo;
18. Tal entendimento já tinha sido aflorado pelo Tribunal Judicial de Base de Macau, ao referir que a lei ao mencionar, no artigo 1644.°, n.° 3 do CC, que os efeitos do divórcio retroagem ao momento do registo da sentença ou decisão "pressupõe um sistema jurídico de registo civil como o de Macau em que há um registo centralizado de casamentos onde em caso de divórcio é averbado o mesmo", avançando também que a data da decisão a que o artigo 1644.°, n.° 3 do CC se refere "não é a da revisão e confirmação de sentença estrangeira proferida pelo Venerando TSI, mas sim a decisão do Tribunal estrangeiro que efectivamente decretou o divórcio", a qual, recorde-se, ocorreu em momento anterior à aquisição por parte da Recorrente da fracção autónoma objecto dos presentes autos;
19. Ou seja, a ratio daquela norma aplica-se aos casos em que as pessoas em causa, residentes ou não residentes, tenham necessária e obrigatoriamente de proceder ao registo dos factos civis em Macau, nomeadamente as pessoas que nasçam em Macau, que aí casem ou aqui se divorciem;
20. Ora, não tendo a Recorrente e o 1.° Réu casado em Macau, nem aí se divorciado, nem sequer aqui tendo residência habitual, não existe qualquer obrigação de registar o casamento nem o subsequente divórcio em Macau, nos termos do artigo 5.° do Código do Registo Civil (e o do artigo 1.° a contrario), que expressamente refere que os interessados podem submeter a registo factos ocorridos fora de Macau;
21. Da natureza não obrigatória de tal faculdade decorre, desde logo, que da ausência de tal registo não se podem retirar quaisquer efeitos ou sanções, como pretende o Recorrido e como propugna o Tribunal a quo, donde resulta que nunca o Tribunal recorrido, no caso vertente, podia legalmente entender que o imóvel adquirido pela Autora, ora Recorrente, após o seu divórcio na República Popular da China, passaria a pertencer ao 1.° Réu, seu ex-cônjuge, pelo simples facto de não ter sido usada a faculdade referida no normativo indicado;
22. É falsa a imputação feita ao Tribunal Judicial de Base pelo Tribunal recorrido quando, em aparente transcrição, afirma que "O Tribunal a quo [i.e. o Tribunal Judicial de Base] entendeu que o n.° 3 do art. 1644.° do CC não se aplicava ao caso sub judice porque tanto a Autora [i.e. a ora Recorrente] como o 1.° Réu não eram residentes da RAEM, pelo que não haveria lugar ao registo do divórcio na RAEM", porquanto a referida passagem não existe no aresto em causa;
23. Na verdade, aquilo que o Tribunal Judicial de Base afirma a propósito do artigo 1644.° do CC não se prende com o facto de a Recorrente e do 1.° Réu serem ou não residentes de Macau, mas sim quanto ao facto de a aquisição do prédio ter ocorrido quando a Recorrente já era divorciada, o que se sobrepõe ao que consta do registo predial ou seja, a ideia da prevalência da realidade substantiva sobre as declarações sobre a identificação das partes (nomeadamente sobre regime de bens e estado civil);.
24. Sendo um dos fundamentos em que assenta a decisão do Tribunal recorrido inexistente, a decisão recorrida fica fatalmente inquinada, tornando-a assim inválida - o que também se requer desde já;
25. Por outro lado, também não se consegue compreender como pôde o Tribunal a quo socorrer-se do artigo 5.° do Código de Registo Civil para concluir que a Autora, ora Recorrente, deveria ter registado o divórcio sob pena de, contra legem e contra a realidade material, não poder a sua qualidade de única proprietária da fracção em causa ser invocada contra a penhora efectuada relativamente ao ex-cônjuge, a propósito de um bem de que ele nunca foi proprietário;
26. A redacção do normativo em apreço não deixa margem para dúvidas de que os actos ocorridos fora da RAEM não estão obrigatoriamente sujeitos a registo na RAEM, constituindo uma mera faculdade atribuída aos sujeitos de tais actos;
27. A ratio deste registo, inversamente ao que sucede com os registos previstos em sede de Registo Predial e Comercial, não é o da protecção de terceiros, tal como configurado pelo Tribunal recorrido;
28. Quanto ao registo predial e à sua autonomização face ao civil, sempre se dirá que são diferentes o objecto; o objecto do registo predial são os prédios e a sua situação enquanto que o do civil as pessoas e o seu estado;
29. Da mesma maneira, são diferentes os efeitos: o registo predial é, quanto aos seus efeitos, declarativo, no sentido em que os direitos se transferem por mero efeito do contrato, servindo o registo para publicitar os direitos sobre os imóveis, tornando-os inoponíveis a terceiros;
30. O registo predial de Macau assume também uma vertente especial ao nível da protecção jurídica, na medida em que assenta num sistema de presunções iruis tantum, ou seja, o direito inscrito constitui mera presunção da sua existência, sendo oponível erga omnes, isto é, perante todos os interessados, podendo, no entanto, a presunção ser elidida por prova em contrário;
31. Tal como afirma Vicente Monteiro, podemos dizer que o fim do registo predial é o de "dar publicidade à situação jurídica dos prédios tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário", mais se acrescentando que "no sistema jurídico de Macau, a publicidade registal não é mera publicidade-notícia, pois ela garante a eficácia dos actos e contratos celebrados entre os imóveis, com duas vertentes fundamentais: 1. O registo definitivo é oponível a terceiros (art. 5.°); 2. O registo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que nele está definido (art. 7.°)" (cfr. Direito Registrai, Registos Predial e Comercial, CREDDM, pág. 18.19, 2013);
32. O acórdão recorrido conclui de forma errada em virtude da interpretação enviesada dos artigo 5.° do CRCivil e 1644.° do CC, a qual está, por sua vez, relacionada com a confusão operada pelo Tribunal a quo a propósito do efeito do registo;
33. É jurisprudência do TUI que "I - A presunção prevista no artigo 7. ° do Código do Registo Predial não se estende ao regime de bens do casamento do titular inscrito, que este fez constar do registo de aquisição do imóvel. (Acórdão do douto Tribunal de Última Instância de Macau proferido em 10 de Junho de 2011, no âmbito do Processo n.° 19/2011);
34. Nos termos do referido acórdão se deixou expresso que "o que o registo predial não faz presumir, manifestamente, é o regime de bens do casamento do adquirente, levado ao registo por constar da escritura pública de compra e venda";
35. Entendimento esse que é sufragado por vários Autores (João Vicente Monteiro e Isabel Pereira Mendes, inter alia);
36. Portanto, o Tribunal a quo estende a presunção do artigo 7.° do CRPredial, alargando-a, para além da inscrição da titularidade do prédio, à identificação do sujeito activo, ao seu regime de bens e ao seu estado civil - o que é, reitera-se, totalmente descabido e sem assento legal;
37. Há que recordar que, no âmbito do registo predial, o respectivo Conservador comprova a titularidade do prédio com o trato sucessivo e com o respectivo suporte documental, não o fazendo, no entanto, relativamente às menções / declarações feitas pelos intervenientes quanto ao seu estado civil e ao regime de bens. Esses são apenas extractados como factos meramente complementares ou identificativos das partes mas que, obviamente, não merecem a tutela jurídica do registo predial;
38. As declarações sobre tais factos não são bastantes para alterar a realidade, sendo tal desiderato apenas possível por prova documental (no caso sub judice, a sentença de divórcio proferida na República Popular da China);
39. Como já se referiu acima, a inscrição no registo civil só é obrigatório para factos ocorridos na RAEM, ao passo que os demais (os não ocorridos na RAEM) não estão sujeitos a registo obrigatório (artigo 5.° do CRCivil), existindo apenas uma faculdade que é atribuída às partes mas sem que, em caso de não ser lançada mão de tal faculdade, daí possam resultar sanções ao nível patrimonial ou predial;
40. É este o segundo erro de que padece a sentença recorrida, transformando a Autora, ora Recorrente, de única proprietária em comproprietária com o seu ex-cônjuge, pelo facto de não ter promovido o registo do divórcio que não era obrigatório, retirando-lhe a propriedade de um imóvel que, de acordo com a realidade material dos factos, só a si lhe pertence (e sempre pertenceu) na sua totalidade;
41. Com efeito, e tal como o Tribunal Judicial de Base concluiu e bem, com fundamento na respectiva sentença, à data da aquisição do imóvel a Autora, ora Recorrente, era divorciada, pelo que não há como sustentar juridicamente a legalidade da penhora do referido imóvel por uma dívida contraída pelo 1.° Réu, ex-marido da Autora, ora Recorrente, simplesmente porque tal bem imóvel jamais ingressou na esfera jurídica daquele;
42. Muito menos se pode admitir ser a Autora, ora Recorrente, sancionada com a perda de parte do imóvel, por considerar que por não ter sido registado o seu divórcio na RAEM - que, recorde-se, ocorreu na República Popular da China em momento prévio ao da aquisição da fracção objecto dos presentes autos - quando nem tal registo é obrigatório, nem a menção do estado civil e do regime de bens feito em sede de escritura de compra e venda é de molde a produzir direitos e a beneficiar da presunção do artigo 7.° do CRPredial;
43. A conclusão do Tribunal a quo é manifestamente ilegal, sendo difícil de conceber como poderiam as pessoas com factos sujeitos a registo facultativo (tal como o nascimento, casamento ou divórcio no estrangeiro) ser prejudicadas, de alguma forma ou por alguma maneira, por não terem levado tais factos a registo;
44. Neste contexto, o douto acórdão recorrido, quando vem sustentar que a Autora e o 1.° Réu tinham a obrigação de registar/averbar o seu divórcio na RAEM, após adquirirem o estatuto de residentes não-permanentes da RAEM, de forma a que, à luz do artigo 5.° do Código de Registo Civil, estes pudessem beneficiar dos efeitos jurídicos do seu estado civil, em relação a terceiros, incorre numa conclusão tão errada quanto indefensável do ponto de vista do ordenamento jurídico de Macau e, designadamente, da norma invocada pelo TSI para sufragar tal entendimento - mas nada disto justifica que se retirem ou se atribuam direitos à Recorrente ou ao 1.° Réu.
45. Depois, porque do artigo 5.° do CRC não ressalta qualquer obrigatoriedade de registo para os indivíduos nem com residência habitual na RAEM, nem com residência habitual fora da RAEM (como era o caso da Recorrente e do 1.° Réu), e muito menos conduz a referida norma a resultados draconianos de tal ordem, nos termos dos quais determinado indivíduo seria sancionado com uma perda substancial de património ou de outros direitos por falta ou erro de declaração do seu estado civil perante o conservador, relativamente a terceiros;
46. Em conclusão, o artigo 5.° do CRC não justifica seguramente a aplicação do art. 1644.°, n.° 3, do CC, o qual é perfeitamente alheio a situações deste tipo, pois as mesmas não se enquadram na especificidade do seu escopo legal.
47. Por outro lado, deve também ser clarificado que o proémio do artigo 1644.°, n.° 3 do CC refere apenas os efeitos patrimoniais relativos ao divórcio, i.e., relativamente às dívidas e/ou bens comuns do casal, assim como a própria epígrafe de tal disposição, "data em que se produzem os efeitos do divórcio", não confere justificação fundada para aplicação da norma em situações nas quais o divórcio não tem qualquer nexo de causalidade com os efeitos patrimoniais que a norma pretende efectivamente proteger;
48. No caso dos autos está documentalmente provado pela certidão de divórcio (reconhecido por sentença em Macau) e pela escritura pública de compra e venda que a Recorrente comprou o imóvel objectos dos presentes autos no estado civil de divorciada;
49. Consequentemente, o imóvel jamais chegou a integrar o património comum (decorrente do casamento) do 1.° Réu e da Autora, pelo que aquele sempre teria de se considerar excluído da comunhão conjugal (cfr. artigo 1587.° al. c), aplicável ex vi o artigo 1604.° n.° 2, ambos do CC).
50. Isto, repita-se, porquanto a Autora, ora Recorrente, adquiriu o imóvel no estado civil de divorciada, tendo o seu estado civil sido registado e produzido os seus efeitos, desde logo, na República Popular da China ("RPC"), local da sua residência habitual;
51. Neste sentido, a aplicabilidade do n.° 3 do 1644.° do CC teria necessariamente que claudicar, porquanto às relações entre cônjuges, incluindo o divórcio, é-lhes aplicável a lei da sua residência habitual comum (vide os artigos 50.°, 53.°, e 30.° do CC). Portanto, sendo aplicável a lei da RPC, não poderia sequer ser invocada a referida norma, para este efeito;
52. Ainda que fosse o caso de este Tribunal vir defender a aplicação do artigo 1644.°, n.° 3 do CC - o que não se concede e por mero dever de patrocínio se equaciona - não se deixe de notar que o conceito de terceiro, para os efeitos pretendidos pelo tribunal recorrido, não tem ressonância plausível no caso sub judice;
53. É totalmente descabida a asserção do Tribunal recorrido em como a ora Recorrente, ainda que proprietária única do imóvel penhorado, não podia ver levantada a penhora efectuada no âmbito de execução movida contra o seu ex-cônjuge, por constar do registo predial o regime de bens da comunhão de adquiridos (e, como tal, pertencendo por essa via, ao executado, 1.° Réu, parte do mesmo) antes do registo da penhora e, vigorando a regra do 1644.°, n.° 3 do CC, teria a penhora que prevalecer sobre a propriedade da Autora, com fundamento na ideia da protecção de terceiros;
54. É que a tutela de terceiros que perpassa do instituto do registo predial não tem aplicação no presente caso nem, como se viu supra, pode o Tribunal a quo estender a presunção do artigo 7.° do CRPredial ao estado civil e ao regime de bens, sob pena de se sacrificar a realidade substantiva perante a registal;
55. O que está aqui em causa é a determinação da repercussão do instituto do registo sobre a situação substantiva a quo, com ramificações no princípio da fé pública do registo (alicerçada na ideia de que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos presentes termos em que o registo define);
56. Ora, face ao sistema jurídico vigente em Macau, a opção consagrada é a de que a inscrição do registo tem efeitos declarativos, não se confundindo com esta ideia, o registo constitutivo e com o registo obrigatório, como acima se fez questão de distinguir;
57. Aqui chegados, pergunta-se: será de tomar, no caso vertente, a menção ao regime de bens na escritura pública de compra e venda e extractada para o registo predial em termos absolutos? A legalidade registal substituir-se-á de tal modo à legalidade substancial que faça perecer, sem remédio, a situação anterior? Claro que não;
58. A ser verdade, também a Autora, ora Recorrente, na hipótese de se encontrar solteira e de ter registado o imóvel em nome de um qualquer pretenso marido, haveria criado, por força e obra desse registo, uma situação jurídica ex novo, constitutiva de direitos, que não só é inaudita como sobretudo perigosa, através da qual qualquer pessoa teria o poder de afectar o seu direito de propriedade e o de outrem através da sua identificação para efeitos do registo predial;
59. Por outro lado, o facto de a Autora, ora Recorrente, ter declarado na altura da outorga da escritura de compra e venda do imóvel (em 04.06.2013) que era casada, não converte o seu estado civil de divorciada para casada ipso facto, uma vez que tais declarações não têm pendor constitutivo, mas meramente declarativo, da identificação do sujeito activo;
60. O douto acórdão recorrido, ao sustentar esta tese, contraria um dos alicerces do sistema registal de Macau, sustentado na doutrina e jurisprudência pacificamente, nos termos do qual os efeitos do registo são nada mais que declarativos, instrumentais e adjectivos, e por isso não criam nem retiram direitos, apenas se limitam a estabelecer a prioridade relativamente a direitos existentes;
61. Do exposto resulta que nem o estado civil, nem o regime de bens, nem a indirecta propriedade do 1.° Réu se poderia ter por definida em função do estado civil e regime de bens declarado pela Recorrente e que foi levado a registo, mas antes em face da situação real existente, ou seja, da realidade substantiva;
62. No caso vertente, apesar de o 1.° Réu aí constar como casado no regime da comunhão de adquiridos com a proprietária, a Recorrente, a verdade é que aquele não era nem nunca chegou a ser também proprietário do imóvel em causa, pois a aquisição da fracção, por ter ocorrido quando a Recorrente já era divorciada, fez desta a única proprietária e apenas esta, por efeito do contrato - artigo 869.°, alínea a), do CC -, não podendo o registo predial atribuir essa propriedade ao seu ex-cônjuge pelo simples facto de ele ali constar como marido da adquirente;
63. Ora, a presunção do registo, mesmo que dele constasse como proprietário o 2.° Réu - o que não sucede in casu - não lhe atribui esse direito, porquanto o registo predial apenas garante que quem consta como dono e alguma vez o foi, então ainda o é - é que, no caso vertente, o 1.° Réu jamais foi titular da fracção ou de parte dela;
64. O bem em causa foi adquirido pela Recorrente já no estado de divorciado e, como está bem de ver, não se pode concluir que pelo facto de ter sido declarado que a Autora, ora Recorrente, e o 1.° Réu estavam casados no regime de comunhão de bens, o bem passou a pertencer também a este;
65. Tal como afirma doutrina avisada, "(…). Quando o facto jurídico subjacente ao registo não-confere direitos, não será o registo que os dá (negrito nosso)", isto é, registo só produziria uma aparência jurídica a favor de quem fosse o verdadeiro titular do direito e seria "pressuposto da proteção conferida pelo registo que os direitos nele inscritos alguma vez tivessem existido verdadeiramente", ou seja, "o registo predial "protege" os direitos nele inscritos apenas no pressuposto de que os mesmos verdadeiramente chegaram a existir" (negrito nosso). (HEINRICH EWALD HÖRSTER);
66. Em sentido similar, MARIA CLARA PEREIRA DE SOUSA DE SANTIAGO SOTTOMAYOR, refere que só se pode genuinamente afirmar a existência de presunções registais em relação a direitos que efetivamente existem no plano substantivo: "O registo apenas dá publicidade a direitos existentes, não estabelecendo presunções a favor de direitos que nunca existiram. A ser assim, tratar-se-ia de uma ficção e não de presunções e o registo teria efeitos constitutivos."
67. A solução para esta questão em particular passa também pela consideração do conceito de terceiros para efeitos de registo predial, para cuja dilucidação assume relevo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal de 11/06/2012: "Ora, como no caso vertente o direito de garantia do AA que conflitua com o direito de propriedade da recorrente/embargante, posteriormente levado ao registo, deriva de diligência judicial (a penhora), situação não enquadrável no conceito restrito de terceiros, não goza o mesmo da protecção registal de que se arroga, não obstante a respectiva inscrição ser anterior" (…) No caso, ao invés do que se entendeu e decidiu, no acórdão recorrido, a realidade substantiva prevalece sobre a realidade registal, o que implica o total êxito dos embargos, com o consequente levantamento da penhora e cancelamento do respectivo registo";
68. Perpassa em todo o acórdão a ideia de que o registo predial, com sacrifício da verdade tabular, sobrepõe sem a menor hesitação o interesse da verdade material - esta ideia, intimamente ligada com a natureza declarativa do registo, acolhida na legislação e pensamento jurídico-legislativo da RAEM, tem igualmente implicações directas na definição do conceito de terceiros para efeitos de registo. Conclusão, de resto, facilmente subsumível ao caso concreto;
69. Mutatis mutandis, à semelhança do que prescreve o aresto luso, o direito de garantia do 2.° Réu que conflitua com o direito de propriedade exclusivo da Recorrente, posteriormente averbado no registo, deriva de diligência judicial (a penhora), situação não enquadrável no conceito restrito de terceiros que se propugna, pelo não goza o 2.° Réu, ora Recorrente, da protecção registal de que se arroga (a erroneamente admitida pelo Tribunal a quo), não obstante a respectiva inscrição ser anterior.
70. Pelo que, e em linha com o que se vem assinalando, o facto de o 2.° Réu, ora Recorrido, vir também socorrer-se do art. 1644.°, n.° 3 do CC em nada lhe adianta, porquanto a colisão do direito de propriedade com a diligência da penhora - a qual não confere qualquer direito, não constitui direito a favor do exequente, constituindo um mero ónus – faz soçobrar o manto da protecção registal a que se arroga o 2.° Réu, ora Recorrido, relativamente à propriedade da Recorrente, não obstante a respectiva inscrição ser anterior à desta;
71. Por outro lado, o acórdão recorrido não deixa de referir, en passant, como face ao circunstancialismo apurado, que não tem dúvidas de que a Autora falsamente se declarou como sendo casada, de forma livre e consciente, daqui retirando consequências jurídicas contraditórias: pois considera que a Recorrente declarou falsamente o seu estado civil na escritura (facto que, tal como se declarou é totalmente irrelevante para efeitos de registo e comprovação do estado civil da Recorrente), donde decorre, concomitantemente, que o estado civil correcto era o de divorciada mas, contraditoriamente, retira dessa declaração que para todos os efeitos, incluindo os de registo, se deveria considerar a Recorrente casada, atribuindo assim, de forma totalmente ajurídica e inaceitável, àqueloutra declaração efeitos constitutivos que, como se deixou provado à saciedade, não tem assento legal no sistema jurídico-registal de Macau;
72. Note-se, por outro lado, que, ainda que tais declarações (especulatórias) fossem apuradas como sendo verdadeiras - o que não se concebe mas apenas por mero dever de patrocínio se equaciona - simplesmente não importa apurar se a declarante, ora Recorrente, agiu de boa ou má fé ao declarar o estado civil em causa. É que a eficácia do registo é independente da boa ou má fé de quem regista;
73. De todo o modo, haverá sempre que tomar em conta que a Recorrida jamais suscitou este facto em sede autónoma, isto é, nunca lançou mão de qualquer expediente jurídico para pôr em causa a escritura de compra e venda ou sequer a sua rectificação, relativamente ao estado civil da Autora, ora Recorrente, pelo que não pode vir agora por tal facto em causa, muito menos nesta sede, quando se conformou com tais actos jurídicos - conclusão, aliás, sufragada pelo Tribunal Judicial de Base;
74. Ora bem, não havendo qualquer actuação processual do ora Recorrido nesta sede - nem poderia haver, acrescente-se no entanto, porque não houve qualquer actuação com intuito de o prejudicar - não poderá seguramente serem-lhe reconhecidos direitos sobre bens relativamente aos quais o seu credor (o 1.° Réu, também executado) jamais teve na sua esfera jurídico-patrimonial - entendimento diferente seria desvirtuar as regras jurídico-legais aplicáveis à aquisição da propriedade e ao registo.
75. Em conclusão, deverá -e douto Tribunal ad quem julgar procedente o presente recurso e, em consequência, revogar a sentença recorrida e reconhecer que a fracção autónoma objecto dos presentes autos pertence exclusivamente à Autora, ora Recorrente, por a ter adquirida no estado de divorciada”; (cfr., fls. 400 a 424).
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Admitido que foi o recurso com efeito e modo de subida adequadamente fixados, (cfr., fls. 387), e após contra-alegações do (2°) R. C, (cfr., fls. 431 a 448), vieram os autos a esta Instância.
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Nada obstando, cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Pelo Tribunal Judicial de Base foram dados como provados os factos seguintes:
“a) A fracção autónoma designada por “IID4”, para habitação, do prédio denominado “[Edifício(1)]” sito em Macau, [Endereço(1)], está descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXXXX e inscrito a favor da Autora sob o nº XXXXXXG; (alínea a) dos factos assentes)
b) A Autora adquiriu a “IID4” mediante escritura pública de aquisição outorgada em 04.06.2013; (alínea b) dos factos assentes)
c) Na referida escritura pública de aquisição, a Autora declarou-se casada com o 1º Réu, no regime de comunhão de adquiridos, factos esse que veio a constar do respectivo registo predial, nomeadamente na referida inscrição nº XXXXXXG; (alínea c) dos factos assentes)
d) Antes da celebração da referida escritura pública referida em c), a Autora a título de promitente compradora celebrou em 15 de Agosto de 2007 com [Empresa(1)] o contrato promessa que incide a fracção autónoma em causa; (alínea c-1) dos factos assentes)
e) A Autora casou-se com o 1º Réu em 24.05.1988 no Interior da China; (alínea c-2) dos factos assentes)
f) O 2º Réu é exequente dos autos CV2-13-0099-CEO; (alínea c-3) dos factos assentes)
g) O imóvel em causa foi penhorado naqueles autos; (alínea c-4) dos factos assentes)
h) A Autora e o 1º Réu divorciam-se na República Popular da China em 08.05.2012; (alínea d) dos factos assentes)
i) Em 19.11.2015 por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, proferido no âmbito do proc. nº 770/2014, e transitado em julgado a 07.12.2015 a sentença do divórcio foi revista e confirmado na RAEM; (alínea e) dos factos assentes)
j) Relativamente à fracção autónoma referida em a) em 12.02.2015 foi inscrito no Registo Predial ter sido adquirido como bem próprio de A, aqui Autora;
k) Relativamente à fracção autónoma referida em a) em 30.05.2014 foi inscrito no Registo Predial ter sido penhorada nos autos de execução em que é Exequente o aqui 2º Réu”; (cfr., fls. 366 a 367).
Do direito
3. Vem a A. recorrer do Acórdão pelo Tribunal de Segunda Instância prolatado e que decidiu nos termos atrás já explicitados.
E, como resulta das – extensas – conclusões que extrai da sua alegação de recurso, coloca – em síntese – duas questões.
A primeira, quanto ao segmento decisório do Tribunal de Segunda Instância que decretou a “ampliação da matéria de facto”; (cfr., conclusões 1ª a 12ª).
A segunda, considerando haver “erro de direito quanto aos efeitos do registo civil e predial relativamente ao 2° R., ora recorrido”; (cfr., conclusões 13ª a 75ª).
Dito isto, vejamos.
–– O Tribunal de Segunda Instância, ponderando nas questões que no recurso (então) interposto lhe foram colocadas, na pretensão do (aí) recorrente – 2° R., agora recorrido, (cfr., as conclusões 6ª e 7ª) – no sentido da “ampliação da matéria de facto”, e considerando que a “matéria” em questão – art. 29° da contestação – não tinha sido objecto de contestação, e podia, eventualmente, influenciar a decisão de mérito, entendeu dar a mesma como “provada”.
Seguidamente, consignou ainda que:
“Além do facto acima em referência, achamos que, para uma melhor compreensão dos factos e boa decisão do mérito da causa, deveria também acrescentar alguns factos alegados/confessados pela Autora, ora Recorrida, nas contra-alegações do recurso, bem como alegado/confessado no artº 30º da petição do recurso contencioso que correu termos neste Tribunal sob o nº 581/2015, no qual o Relator e o 1º Adjunto dos presentes autos foram, respectivamente, 1º e 2º Adjuntos (facto conhecido no exercício de funções).
a saber:
- A aquisição, pela Autora, da fracção autónoma designada por “IID4”, para habitação, do prédio denominado “[Edifício(1)]”, sito em Macau, [Endereço(1)], descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX e inscrito a favor da autora sob o n.º XXXXXXG, tinha como fito único o investimento imobiliário.
- Tendo sido por força e virtude desse investimento que tanto a Autora, como, posteriormente, o 1.º Réu, obtiveram a autorização de residência da RAEM, que depois vieram a perder.
- A Autora e o 1º Réu obtiveram autorização para residir na RAEM, através do despacho de 15/08/2008 do Exmº Sr. Secretário para a Economia e Finanças, que teve como fundamento o investimento imobiliário por si realizado, ao abrigo do artº 3º do Regulamento Administrativo nº 3/2005”; (cfr., fls. 368-v a 369).
E, seguidamente, procedendo ao seu “enquadramento jurídico-legal”, assim ponderou:
“3. Do mérito da causa:
O Tribunal a quo entendeu que o nº 3 do artº 1644º do C.C. não se aplicava ao caso sub justice porque tanto a Autora como o 1º Réu não eram residentes da RAEM, pelo que não haveria lugar o registo do divórcio na RAEM.
Segundo a factualidade apurada, tanto a Autora como o 1º Réu, ex-marido da Autora, obtiverem o direito à residência na RAEM desde 15/08/2008, passando a ser assim residentes da RAEM, embora não permanentes.
Pergunta-se então, após adquirir o estatuto de residente da RAEM, apesar não permanente, e pretendendo beneficiar dos efeitos jurídicos do estado civil tanto casado como divorciado em relação a terceiros, não deverão transcrever o seu casamento lavrado no exterior, bem como averbar o posterior divórcio ocorrido no exterior no registo civil da RAEM?
A resposta, para nós, é afirmativa face ao disposto no artº 5º do Código do Registo Civil.
Assim, se conclui pela aplicabilidade do nº 3 do artº 1644º do C.C. ao caso em apreço, nos termos do qual “Os efeitos patrimoniais do divórcio só podem ser opostos a terceiros a partir da data do registo da sentença ou decisão.”
Não tendo a Autora registado/averbado o divórcio à data da penhora da fracção autónoma em referência, o reconhecimento da mesma como bem própria da Autora à data de aquisição é ineficaz em relação ao 2º Réu.
Aliás, tendo em conta todo o circunstancialismo apurado, não temos qualquer margem de dúvida de que a Autora, no momento da celebração da escritura pública da compra e venda, declarou, de forma intencional, casada com o 1º Réu no regime de comunhão adquirido.
Pois, tendo a aquisição da fracção autónoma em referência como fito único o investimento imobiliário para obter a autorização da residência na RAEM, a Autora, ao declarar falsamente o seu estado civil na escritura pública, pretende ajudar o ex-marido manter a autorização de residência já obtida, visto que se declarasse como divorciada, o ex-marido perderia a referida autorização.
Não é aceitável a posição de que Autora não podia declarar de outra maneira porque a decisão do divórcio ainda não foi revista/confirmada na altura, já que o nº 2 do artº 6º do Código do Registo Civil prevê expressamente que “… não é necessária a revisão quando a decisão seja invocada apenas como mera prova do estado civil perante os respectivos serviços” da RAEM.
Trata-se portanto duma situação fraudulenta criada pela livre vontade da própria Autora, de forma a ajudar o ex-marido obter um benefício ilegítimo”.
Nesta conformidade, e em sede do dispositivo, decretou a referida “ampliação da matéria de facto”, acabando por “conceder provimento ao presente recurso jurisdicional, revogando a sentença recorrida na parte que julgou improcedente a excepção de ineficácia invocada pelo 2º Réu, passando a julgar procedente a dita excepção, declarando consequentemente que o reconhecimento da propriedade exclusiva da Autora sobre a fracção autónoma em referência é ineficaz em relação ao 2º Réu. (…)”; (cfr., fls. 369 a 370).
Aqui chegados, e merecendo o recurso conhecimento, vejamos se merece provimento.
Desde já, cabe dizer que, em nossa opinião, em questão não está o “reconhecimento do direito de propriedade da A.”, ora recorrente, sobre a fracção já identificada nos autos.
Este direito, foi – expressamente – declarado pelo Tribunal Judicial de Base, e com o Acórdão ora recorrido do Tribunal de Segunda Instância, tão só se declarou a sua “ineficácia em relação ao 2° R.”, (ora recorrido); (cfr., a sentença e aresto recorrido).
Dest’arte, ponderada a “fundamentação” exposta na decisão agora recorrida, e nas razões pela recorrente apresentadas no presente recurso, cremos porém que muito não se mostra necessário consignar para se chegar à conclusão que o Acórdão recorrido – independentemente da dita “ampliação da matéria de facto”, “questão”, cujo conhecimento se apresenta inútil, e assim, “ilícito”; cfr., art. 87° do C.P.C.M. – não se pode manter.
Vejamos.
Em causa está “A fracção autónoma designada por “IID4”, para habitação, do prédio denominado “[Edifício(1)]” sito em Macau, (…) descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXXXX e inscrito a favor da Autora sob o nº XXXXXXG”; (cfr., alínea a) dos factos assentes).
E sem prejuízo do – muito – respeito pelo entendimento assumido no Acórdão recorrido, cremos que no mesmo se terá dado indevida relevância a determinada matéria de facto (considerada como) provada, em especial, na que consta na “alínea c)”, que nos dá conta que aquando da outorga da escritura pública de aquisição da dita fracção, (em 04.06.2013), “a Autora declarou-se casada com o 1º Réu, no regime de comunhão de adquiridos, factos esse que veio a constar do respectivo registo predial, nomeadamente na referida inscrição nº XXXXXXG”.
Na verdade, e não obstante ser tal “declaração”, (com o aludido teor), um “facto (provado)”, em nossa opinião, o relevo para a decisão a proferir devia era ser atribuído à factualidade constante das “alíneas h) e i)”, onde se diz que “A Autora e o 1º Réu divorciaram-se na República Popular da China em 08.05.2012”, e que, “Em 19.11.2015 por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, proferido no âmbito do proc. nº 770/2014, e transitado em julgado a 07.12.2015 a sentença do divórcio foi revista e confirmada na RAEM”.
Com efeito, nos termos do art. 1643° do C.C.M.:
“O divórcio dissolve o casamento e tem juridicamente os mesmos efeitos da dissolução por morte, salvas as excepções consagradas na lei”.
E, sob a epígrafe “Data em que se produzem os efeitos do divórcio”, preceitua, também, o art. 1644° do mesmo código que:
“1. Os efeitos do divórcio produzem-se a partir da data em que a respectiva sentença transita em julgado ou a decisão se torna definitiva, mas retrotraem-se à data da proposição do processo quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges.
2. Se a falta de coabitação entre os cônjuges estiver provada no processo, qualquer deles pode requerer que os efeitos do divórcio se retrotraiam à data, que a sentença deve fixar, em que a coabitação tenha cessado por culpa exclusiva ou predominante do outro.
3. Os efeitos patrimoniais do divórcio só podem ser opostos a terceiros a partir da data do registo da sentença ou decisão”.
E, nessa conformidade, reconhecido estando na R.A.E.M. o dito “divórcio”, e, com tal reconhecimento, declarada estando, por assim dizer, a sua “eficácia” perante o ordenamento jurídico local, (cfr., art. 1199° do C.P.C.M.), impõe-se concluir que, “entre os cônjuges”, os seus efeitos retroagem à data em que foi “decretado”, ou seja, 08.05.2012, relevo não se mostrando desta forma de se atribuir – para os presentes autos – à “declaração” que a A. (recorrente) fez aquando da outorga da escritura pública, em 04.06.2013 quanto ao seu “estado de casada com o 1° R.”, declaração esta, aliás, pelo Tribunal a quo (acertadamente) considerada “falsa”.
Por sua vez, cabe atentar que o estatuído no n.° 3 do transcrito art. 1644° do C.C.M., destina-se a regular “os efeitos patrimoniais do divórcio em relação a terceiros”, (como é o caso do ora recorrido), mas tão só em relação a “situações (que lhe são) anteriores”, e não, em relação àquelas que apenas ocorreram “depois do divórcio”, como no caso sucede.
Com efeito, provado estando que a A. já estava (efectivamente) divorciada – em 08.05.2012 – quando adquiriu a fracção autónoma em causa – em 04.06.2013 – a mesma não integra o “património (comum) do casal”, motivos não havendo para se falar em “protecção de 3os”, pois que o normativo em questão apenas actua em relação a “bens comuns do casal” e (já) não em relação a “bens (próprios) adquiridos depois do divórcio”; (cfr., v.g., A. Varela in, “Direito da Família”, Vol. I, pág. 530).
Por fim, cabe notar também que o (provado) “registo” da aquisição da fracção na “constância do matrimónio” por (indevida) declaração da ora recorrente – cfr., factos das alíneas b) e c) – em nada nos parece impedir a solução que se deixou adiantada.
Importa pois atentar que nos termos do art. 7° do Código do Registo Predial, “O registo definitivo” – apenas – “constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”, e, “provado” estando que o que aí consta não corresponde à verdade, e que a ora recorrente já estava “divorciada” aquando da registada aquisição, motivos não existem para, mesmo assim se manter a referida “presunção”, e da mesma se extrair – para os presentes autos – qualquer efeito para a decisão a proferir.
Dest’arte, impõe-se a revogação da decisão recorrida.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso.
Custas pelo recorrido com a taxa que se fica em 10 UCs.
Notifique.
Macau, aos 26 de Junho de 2020
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
Proc. 5/2020 Pág. 32
Proc. 5/2020 Pág. 31