Processo n.º 627/2020 Data do acórdão: 2020-7-30
Assuntos:
– Canabis em forma de planta em pedaços
– detenção ilícita de estupefacientes para mais do que um fim
– art.o 14.o, n.o 3, parte final, da Lei n.o 17/2009 (na redacção da Lei
n.o 10/2016)
– crime de tráfico de menor gravidade
– crime de tráfico ilícito de estupefacientes
– atenuação especial da pena
– art.o 18.o da Lei n.o 17/2009
– identificação de um indivíduo para efeitos da sua captura
– desmantelamento de grupos ou organizações de tráfico de droga
S U M Á R I O
1. No caso dos autos, o arguido recorrente deteve, de modo ilícito, dentro de um carro, dois embrulhos de Canabis (em forma de planta em pedaços, contentores, ao total, de 15,448 gramas de quantidade líquida dessa substância) para o seu consumo pessoal, e 17 embrulhos de Canabis (na mesma forma em pedaços, contentores, ao total, de 131,063 gramas de quantidade líquida dessa substância) previamente fornecidos por um indivíduo para o recorrente os guardar e entregar a outrem.
2. Estando já provados dois fins na conduta ilícita do recorrente de detenção desses 19 embrulhos de Canabis, é de considerar judicialmente, por comando da parte final do n.o 3 do art.o 14.o da Lei n.o 17/2009 (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016), que o recorrente acabou por deter ilicitamente, ao total, 146,511 gramas de quantidade líquida de Canabis (em forma planta), o que já ultrapassa muito o quíntuplo da quantidade de referência de uso diário dessa substância (nesta forma) fixada legalmente em um grama, de maneira que, manifestamente, à conduta dele dessa detenção total de 146,511 gramas não é aplicável a moldura penal correspondente à do crime de tráfico de menor gravidade previsto na alínea 1) do n.o 1 do art.o 11.o da mesma Lei (na dita nova redacção, vigente à data dos factos), mas sim a moldura correspondente à do crime de tráfico ilícito de estupefacientes do seu art.o 8.o. Portanto, o recorrente passa a ser condenado apenas como autor material de um crime de detenção ilícita de estupefacientes, previsto pelo art.o 14.o, n.os 2 e 3, e punível com a moldura penal correspondente à do crime de tráfico de estupefacientes do n.o 1 do art.o 8.o.
3. Quanto à medida da pena, a atenuação especial da pena prevista no art.o 18.o da mesma Lei deve ser aferida de modo cauteloso, por causa das elevadas exigências da prevenção geral, pelo que só é de considerar a activação dessa cláusula especial de atenuação da pena quando tiver havido desmantelamento de grupos ou organizações de tráfico de droga, o que não é o caso dos autos, já que a identificação concreta de um só indivíduo para efeitos da sua captura não atinge ao grau de desmantelamento de grupos ou organizações de tráfico de droga.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 627/2020
(Autos de recurso penal)
Recorrente: A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 325 a 333 do Processo Comum Colectivo n.° CR3-19-0428-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou condenado o arguido A, aí já melhor identificado, como autor material, na forma consumada, de um crime de consumo ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 14.o, n.o 2, em conjugação com o art.o 8.o, n.o 1, ambos da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto (na sua redacção vigente, dada pela Lei n.o 10/2016, de 28 de Dezembro), na pena de cinco anos e seis meses de prisão, e de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009, na redacção dada pela Lei n.o 10/2016, na pena de sete anos e seis meses de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas duas penas parcelares, finalmente na pena única de oito anos e três meses de prisão.
Inconformado, veio esse arguido recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando (no seu essencial) e rogando, na sua motivação de recurso apresentada a fls. 387 a 422 dos autos, o seguinte:
– ele não deveria ter sido condenado na qualidade de traficante de estupefacientes, mas sim somente por um crime de consumo ilícito de estupefacientes, nos termos do art.o 14.o, n.o 2, da Lei n.o 17/2009 (na sua redacção nova), devendo a respectiva pena fixada, consoante as circunstâncias verificadas, dentro da moldura penal abstracta prevista no n.o 1 do art.o 11.o (e não no n.o 1 do art.o 8.o) da dita Lei (na redacção nova), concretamente entre dois anos e dois anos e meio de prisão;
– e no caso de se entender haver crime de tráfico de estupefacientes, deveria ser especialmente atenuada a respectiva pena, nos termos do art.o 18.o da mesma Lei, para passar a ser aplicada uma pena não superior a seis anos de prisão ao crime de tráfico, isto porque o próprio recorrente chegou a colaborar efectivamente com a Polícia na identificação e investigação do indivíduo que lhe forneceu droga;
– e mesmo que assim não se entendesse, sempre seria de reduzir a pena do crime de tráfico, nos termos gerais do art.o 65.o do Código Penal (CP), atenta mormente a circunstância de o próprio recorrente não ter recebido qualquer recompensa por guardar os estupefacientes daquele indivíduo, para passar a ser de cinco anos e meio a seis anos e meio de prisão.
Ao recurso respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 431 a 435 dos presentes autos, no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 451 a 453, opinando, a final, pelo carácter não excessivo das penas parcelares e única aplicadas no acórdão recorrido.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Não sendo impugnada a matéria de facto dada por provada no texto do acórdão recorrido, é de tomar essa factualidade (como tal descrita nas páginas 5 a 8 desse texto decisório, a fls. 327 a 328v dos autos) como fundamentação fáctica do presente acórdão de recurso.
Segundo essa factualidade, o arguido ora recorrente, um delinquente primário, deteve, dentro de um carro, um total de 15,448 gramas de quantidade líquida de Canabis (em forma de planta em pedaços, em dois embrulhos), para o seu consumo pessoal, e um total de 131,063 gramas de quantidade líquida de Canabis (em forma de planta em pedaços, em 17 embrulhos), previamente fornecido por um indivíduo chamado B para o próprio recorrente o guardar e entregar a outrem (cfr. sobretudo os factos provados 6, 7, 10, 11 e 12).
Por outro lado, o Tribunal recorrido afirmou, no acórdão recorrido, que não ficou provado que o arguido, ao adquirir e deter os 17 embrulhos acima referidos, estava com o intuito de os vender a outrem, para obter interesse ilegítimo para ele próprio (cfr. o segundo facto especificado como não provado nas linhas 12 a 13 da página 8 do texto do aresto recorrido, a fl. 328v dos autos).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
O arguido ora recorrente começou por assacar à decisão condenatória penal recorrida erro de qualificação jurídico-penal dos factos.
Pois bem, o art.o 14.o da Lei n.o 17/2009, na redacção dada pela Lei n.o 10/2016, prevê o seguinte:
– <<1. Quem consumir ilicitamente ou, para seu exclusivo consumo pessoal, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, adquirir ou detiver ilicitamente plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV, é punido com pena de prisão de 3 meses a 1 ano ou com pena de multa de 60 a 240 dias, salvo o disposto no número seguinte.
2. Caso as plantas, substâncias ou preparados que o agente referido no número anterior cultiva, produz, fabrica, extrai, prepara, adquire ou detém constem do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à presente lei, da qual faz parte integrante, e a sua quantidade exceder cinco vezes a quantidade deste mapa, aplicam-se, consoante os casos, as disposições dos artigos 7.º, 8.º ou 11.º
3. Para determinar se a quantidade de plantas, substâncias ou preparados que o agente cultiva, produz, fabrica, extrai, prepara, adquire ou detém excede ou não cinco vezes a quantidade a que se refere o número anterior, são contabilizadas as plantas, substâncias ou preparados que se destinem a consumo pessoal na sua totalidade, ou aquelas que, em parte, sejam para consumo pessoal e, em parte, se destinem a outros fins ilegais.>> (com sublinhado só agora posto).
No caso dos autos, o arguido deteve, de modo ilícito, dentro de um carro, dois embrulhos de Canabis (em forma de planta em pedaços, contentores, ao total, de 15,448 gramas de quantidade líquida dessa substância) para o seu consumo pessoal, e 17 embrulhos de Canabis (em forma de planta em pedaços, contentores, ao total, de 131,063 gramas de quantidade líquida dessa substância) previamente fornecidos por um indivíduo chamado B para o próprio recorrente os guardar e entregar a outrem.
Assim sendo, já estão provados dois fins (e não apenas um) na conduta ilícita do recorrente de detenção desses 19 embrulhos de Canabis, em forma de planta em pedaços: (dois embrulhos) para consumo exclusivo do próprio recorrente, e (17 embrulhos) para fins de entrega a outrem (embora não fosse para obter vantagem ilegítima para ele próprio – cfr. o segundo facto não provado).
Por isso, por comando da parte final do n.o 3 do acima transcrito art.o 14.o, é de considerar que o recorrente acabou por deter ilicitamente, ao total, 146,511 gramas de quantidade líquida de Canabis (em forma de planta em pedaços), o que já ultrapassa muito o quíntuplo da quantidade de referência de uso diário dessa substância (em forma de planta), fixada legalmente em um grama, de maneira que, manifestamente, à conduta dele dessa detenção total de 146,511 gramas de quantidade líquida de Canabis (em forma de planta em pedaços) não é aplicável a moldura correspondente à do crime de tráfico de menor gravidade previsto na alínea 1) do n.o 1 do art.o 11.o da mesma Lei (na redacção vigente à data dos factos), mas sim a moldura de cinco a 15 anos de prisão correspondente à do crime de tráfico ilícito de estupefacientes do seu art.o 8.o.
Entretanto, o Tribunal recorrido condenou o recorrente em dois crimes, o que não é adequado à luz da parte final do n.o 3 do art.o 14.o acima transcrito, pelo que é de passar a condenar o recorrente apenas como autor material de um crime de detenção ilícita de estupefacientes, previsto pelo art.o 14.o, n.os 2 e 3, e punível com a moldura penal correspondente à do crime de tráfico de estupefacientes do n.o 1 do art.o 8.o.
Quanto à medida da pena, frisa-se desde logo que no entender do presente Tribunal, a atenuação especial da pena prevista no art.o 18.o da mesma Lei deve ser aferida de modo cauteloso, por causa das elevadas exigências da prevenção geral, pelo que só é de considerar a activação dessa cláusula especial de atenuação da pena quando tiver havido desmantelamento de grupos ou organizações de tráfico de droga, o que não é o caso dos autos, já que a identificação concreta de um só indivíduo para efeitos da sua captura não atinge ao grau de desmantelamento de grupos ou organizações de tráfico de droga.
Resta decidir de qual a pena concreta a aplicar ao único crime, acima constatado, de detenção ilícita de estupefacientes do arguido recorrente, dentro da moldura, aplicável, de cinco a 15 anos de prisão.
Vistas todas as circunstâncias já apuradas em primeira instância com pertinência à medida da pena aos padrões vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, e tendo em conta as prementes exigências da prevenção geral, seria de aplicar ao recorrente oito anos e meio de prisão. Contudo, para afastar a reforma, para pior, da espécie e do quantum da pena finalmente aplicada no acórdão recorrido (cfr. o art.o 399.o, n.o 1, do Código de Processo Penal), essa pena de oito anos e meio de prisão tem que ser reduzida aos oito anos e três meses de prisão, já imposta finalmente pelo Tribunal recorrido ao recorrente (embora com diferente qualificação jurídico-penal dos factos provados).
Em suma, procede o recurso apenas parcialmente na questão de erro de qualificação jurídica dos factos, sem mais indagação, por estar prejudicada pela análise acima feita.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar parcialmente provido o recurso, passando a condenar o arguido como autor material, na forma consumada, de um só crime (de detenção ilícita de estupefacientes), previsto pelo art.o 14.o, n.os 2 e 3, da Lei n.o 17/2009 (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016), e punível com a moldura penal correspondente à do crime de tráfico ilícito de estupefacientes do n.o 1 do seu art.o 8.o, em oito anos e três meses de prisão.
Pagará ele um terço das custas do recurso, e duas UC de taxa de justiça.
Comunique a presente decisão ao Ministério Público (com referência ao seu Ofício de fl. 466).
Macau, 30 de Julho de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
Processo n.º 627/2020 Pág. 11/11