Processo n.º 680/2019 Data do acórdão: 2020-7-16 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– art.o 15.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004
– crime de acolhimento
– pagar dinheiro a imigrante ilegal para a subsistência dele em Macau
S U M Á R I O
1. O art.o 15.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004 prevê, sob a epígrafe de “acolhimento”, que “Quem dolosamente acolher, abrigar, alojar ou instalar aquele que se encontre em situação de imigração ilegal, ainda que temporariamente, é punido com pena de prisão até 2 anos”.
2. O acto livre, voluntário e consciente do arguido de pagar a uma pessoa imigrante ilegal em Macau despesas de subsistência (incluindo despesas de alojamento) desta em Macau não deixa de preencher o tipo legal de acolhimento descrito nessa norma jurídica.
3. Com efeito, na descrição do tipo-de-ilícito em causa, o Legislador empregou também o termo “abrigar”. Este verbo significa “dar protecção a”, daí que, por exemplo falando, o acto de um condutor residente de Macau de dar boleia a uma pessoa imigrante ilegal que já se encontra em Macau é susceptível de punição a título de crime de acolhimento, porque através desse acto de transportação, acaba esse condutor por dar protecção a uma pessoa imigrante ilegal.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 680/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida a fls. 88 a 90v do Processo Comum Singular n.º CR3-19-0057-PCS do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), absolutório do arguido B (B), aí já melhor identificado, da acusada prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de acolhimento, p. e p. pelo art.o 15.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004, veio o Ministério Público recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir, a título principal, a condenação do arguido nesse crime acusado, em três meses de prisão, suspensa na execução por um ano, porquanto o facto de ele ter pago à pessoa imigrante ilegal dos autos cinco a seis mil patacas por mês como despesas de subsistência (incluindo as de alojamento) dela em Macau, depois de ter sabido a situação de clandestinidade desta em Macau, integra a conduta de abrigar ou acolher essa imigrante ilegal para efeitos de incriminação do crime de acolhimento tipificado naquela norma jurídica, mesmo que o local de alojamento em questão tenha sido procurado previamente pela mesma imigrante ilegal.
Ao recurso, respondeu o arguido a fls. 108 a 114 dos autos, defendendo a improcedência do recurso, por entender que o pagamento, por ele próprio, de despesas mensais de subsistência à imigrante ilegal dos autos não é subsumível ao tipo-de-ilícito de acolhimento.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer a fls. 123 a 124, pugnando pela procedência do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. A sentença ora recorrida consta de fls. 88 a 90v dos autos, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. Nessa sentença, foi dado por provado o seguinte:
– à data dos factos, o arguido já era casado, e desenvolveu relação íntima de namoro com C, e esta ficou grávida;
– antes de Abril de 2018 (em data concreta não apurada), C entrou, de algures da costa de Zhuhai, a nado, em Macau, para procurar o arguido e para fins de parto;
– depois de chegar a Macau, C telefonou para o arguido, informando-o de que ela já tinha entrado ilegalmente em Macau e estava grávida. E após, ela foi sozinha tomar de arrendamento um quarto numa casa de madeira sita em Taipa;
– o arguido, depois de tomar conhecimento da chegada de C a Macau, pagou a esta cinco a seis mil patacas mensais como despesas de subsistência dela, incluindo as despesas com a renda daquele quarto;
– em 13 de Dezembro do mesmo ano, C, no Centro Hospitalar Conde de São Januário, após o parto, foi descoberta pela Polícia como sendo uma pessoa que tinha entrado ilegalmente em Macau;
– o arguido praticou a conduta acima referida com intenção de a praticar, de modo livre, voluntário e consciente;
– o arguido não tem antecedente criminal;
– o arguido declarou possuir o 1.o ano do ensino secundário elementar como habilitações académicas, trabalhar como operário de construção civil, com vinte e três mil e quatrocentas patacas de rendimento mensal, e ter a esposa e um filho a seu cargo.
3. Ao mesmo tempo, o Tribunal recorrido deu por não provado o seguinte:
– C pagava a renda mensal de mil patacas para tomar de arrendamento um dos quartos da casa de madeira em causa;
– o arguido sabia claramente que a sua conduta não era permitida por lei, e era susceptível de punição por lei.
4. O Tribunal recorrido, por achar que o crime de acolhimento pressupõe o fornecimento de um local para habitação ou descanso de imigrante ilegal, acabou por absolver o arguido do crime de acolhimento, posto que ficou provado que este se tinha limitado a pagar despesas de subsistência à imigrante ilegal em causa, e que o quarto de casa de madeira não pertencia a ele, nem tinha sido dominado por ele, nem tinha sido arranjado ou tomado de arrendamento por ele para a imigrante ilegal.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
O art.o 15.o da Lei n.o 6/2004 prevê o seguinte, sob a epígrafe de “acolhimento”:
1. Quem dolosamente acolher, abrigar, alojar ou instalar aquele que se encontre em situação de imigração ilegal, ainda que temporariamente, é punido com pena de prisão até 2 anos.
2. Se o agente obtiver, directamente ou por interposta pessoa, vantagem patrimonial ou benefício material, para si ou para terceiro, como recompensa ou pagamento pela prática do crime referido no número anterior, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
Trata-se de saber, no presente recurso, se o acto livre, voluntário e consciente de pagar a uma pessoa imigrante ilegal em Macau, despesas de subsistência (incluindo despesas de alojamento) desta em Macau preenche o tipo de crime de acolhimento descrito nesse artigo.
Na descrição do tipo-de-ilícito em causa, o Legislador empregou também o termo “abrigar”. Este verbo significa “dar protecção a”, daí que, por exemplo falando, o acto de um condutor residente de Macau de dar boleia a uma pessoa imigrante ilegal que já se encontra em Macau é susceptível de punição a título de crime de acolhimento, porque através desse acto de transportação, acaba esse condutor por dar protecção a uma pessoa imigrante ilegal.
No caso, o arguido, através do seu acto de pagar à sua nomorada, que era uma imigrante ilegal em Macau, despesas mensais para a subsistência desta em Macau, incluindo as despesas da renda do quarto tomado de arrendamento por ela em Macau, acabou por dar protecção a ela em Macau, pelo que esta conduta do arguido não deixa de integrar a prática de um crime de acolhimento, p. e p. pelo art.o 15.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004.
Da leitura da fundamentação da sentença recorrida, sabe-se que o facto de o Tribunal recorrido ter dado por não provado que “o arguido sabia claramente que a sua conduta não era permitida por lei, e era susceptível de punição por lei” se justifica pelo seu entendimento jurídico sobre as coisas, pelo que o presente Tribunal de recurso pode passar a condenar directamente o arguido, com base na matéria de facto já dada por provada na sentença recorrida, factualidade provada essa, interpretada no seu conjunto, dá para se julgar verificado o dolo dele na prática da conduta de abrigar a imigrante ilegal em causa em Macau.
Cabe, agora, medir a pena do arguido, pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de acolhimento do art.o 15.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004, dentro da moldura penal aplicável. Sendo ele um delinquente primário, e atentas todas as outras circunstâncias fácticas já apuradas em primeira instância com pertinência à medida da pena aos padrões dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do Código Penal, entende-se por adequado aplicar-lhe três meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano, nos termos do art.o 48.o, n.os 1 e 5, do mesmo Código (por se acreditar que a simples censura dos factos e a ameaça da aplicação da pena de prisão no caso bastam para salvaguardar a realização, de modo suficiente, das finalidades da punição).
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso do Ministério Público, passando, por conseguinte, a condenar o arguido B como autor material, na forma consumada, de um crime de acolhimento, p. e p. pelo art.o 15.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004, na pena de três meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano.
Custas do recurso pelo arguido (por ter defendido ele a improcedência do mesmo), com duas UC de taxa de justiça e mil patacas de honorários à sua Ex.ma Defensora Oficiosa.
Macau, 16 de Julho de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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