Processo n.º 310/2019 Data do acórdão: 2020-7-16 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
Há erro notório na apreciação da prova aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 310/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão proferido a fls. 481 a 490 do Processo Comum Colectivo n.º CR3-17-0312-PCC do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), absolutório dos 1.o arguido B (B) e 2.o arguido C (C) da acusada prática, em co-autoria material, na forma consumada, de dois crimes de burla em valor consideravelmente elevado, p. e p. pelo art.o 211.o, n.os 1 e 4, alínea a), do Código Penal, veio a Digna Delegada do Procurador recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), imputando a essa decisão, na sua motivação apresentada a fls. 493 a 500v dos presentes autos correspondentes, os vícios de erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável da fundamentação, para pedir o reenvio do processo para novo julgamento dos factos dados por não provados nesse acórdão.
Ao recurso, responderam os dois arguidos unamente a fls. 509 a 513 dos autos, no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer a fls. 536 a 537v, pugnando pela procedência do recurso, por entendida constatação efectiva dos assacados vícios aludidos nas alíneas c) e b) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP).
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. A acusação então deduzida pelo Ministério Público contra os dois arguidos consta de fls. 387 a 389v dos autos, cujo teor se dá por aqui inteiramente reproduzido.
2. O acórdão ora recorrido consta de fls. 481 a 490 dos autos, cujo teor (incluindo a sua fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui integralmente reproduzido.
3. Nesse acórdão, foi dado por provado (como facto provado 2, em correspondência ao facto acusado 2) que em Agosto de 2014 o 1.o arguido combinou com o 2.o arguido, por ele conhecido antes em Zhuhai, para burlar dinheiro a outrem através do aliciamento de depósitos com elevados juros, mas também foi dado simultaneamente por não provado (cfr. o primeiro parágrafo da matéria de facto concretamente especificada como não provada) que em Agosto de 2014 o 1.o arguido combinou com o 2.o arguido, por ele conhecido antes em Zhuhai, para burlar dinheiro a outrem através do aliciamento de depósitos com elevados juros.
4. Nesse acórdão, o Tribunal recorrido considerou insuficientes as provas, e como tal julgou que a prova não bastava para comprovar que os dois arguidos, em conluio, inventaram a existência de bónus, a fim de burlar dinheiro aos dois ofendidos, tendo julgado, pois, inclusivamente por não provados os factos acusados 21 e 22 – cfr. mormente a primeira metade do teor da página 16 do texto do acórdão recorrido, a fl. 488v dos autos, onde o mesmo Tribunal referiu que:
– os dois arguidos negaram a prática dos factos;
– o 1.o arguido declarou que foi do seu patrão de apelido Chan que ele tomou conhecimento de plano de bonificação, e que depois de receber o dinheiro da parte ofendida, depositou ele o dinheiro em causa na conta do 2.o arguido como parceiro do seu patrão;
– o 2.o arguido declarou que o 1.o arguido trocou renminbis com ele próprio, e foi por isso que o 1.o arguido depositou dinheiro em dólares de Hong Kong na sua conta;
– falta prova a demonstrar se as declarações dos dois arguidos são verdadeiras;
– o ofendido disse que ouviu, por meio próprio dele, que os clubes de VIP tinham bónus;
– o trabalhador de clube de VIP de apelido Lam disse que tinha ouvido do assunto de depósito de dinheiro com atribuição de juros elevados, mas os pormenores concretos disso só eram sabidos pelo patrão.
5. No mesmo acórdão, foi inclusivamente dado por provado que: a partir de determinada data, não foram pagos os elevados juros de depósito de dinheiro ditos pelo 1.o arguido aos 1.o e 2.a ofendidos, depois de estes terem feito entregar ou depositar avultados montantes de dinheiro ao próprio 1.o arguido segundo as instruções deste (cfr. os factos provados 3, 4, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 16 e 18); o 1.o ofendido, após o não recebimento de juros em causa, não conseguiu entrar em contacto com o 1.o arguido (cfr. o facto provado 18); os dois arguidos nunca transferiram qualquer dinheiro para um senhor de apelido Chan (cfr. o último parágrafo do facto provado 19); o 1.o arguido levantou, no mesmo dia 23 de Dezembro de 2014 em que foi depositado pelo 1.o ofendido segundo as instruções dele, o montante total de três milhões de dólares de Hong Kong (cfr. os factos provados 16 e 17).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, apreciando.
A Digna Delegada do Procurador recorrente começou por preconizar a verificação do vício de erro notório na apreciação da prova (referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP) no respeitante ao julgamento feito pelo Tribunal recorrido sobre os factos acusados na parte finalmente dada por não provada.
Pois bem, sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, o Tribunal recorrido considerou insuficientes as provas, e como tal julgou que a prova não bastava para comprovar que os dois arguidos, em conluio, inventaram a existência de bónus, a fim de burlar dinheiro aos dois ofendidos, tendo julgado, pois, inclusivamente por não provados os factos acusados 21 e 22 – cfr. mormente a primeira metade do teor da página 16 do texto do acórdão recorrido, a fl. 488v dos autos, onde o mesmo Tribunal referiu que:
– os dois arguidos negaram a prática dos factos;
– o 1.o arguido declarou que foi do seu patrão de apelido Chan que ele tomou conhecimento de plano de bonificação, e que depois de receber o dinheiro da parte ofendida, depositou ele o dinheiro em causa na conta do 2.o arguido como parceiro do seu patrão;
– o 2.o arguido declarou que o 1.o arguido trocou renminbis com ele próprio, e foi por isso que o 1.o arguido depositou dinheiro em dólares de Hong Kong na sua conta;
– falta prova a demonstrar se as declarações dos dois arguidos são verdadeiras;
– o ofendido disse que ouviu, por meio próprio dele, que os clubes de VIP tinham bónus;
– o trabalhador de clube de VIP de apelido Lam disse que tinha ouvido do assunto de depósito de dinheiro com atribuição de juros elevados, mas os pormenores concretos disso só eram sabidos pelo patrão.
Para este Tribunal de recurso, violou o Tribunal recorrido manifestamente leges artis, ao fundar a sua livre convicção na parte ora sindicada pelo Ministério Público recorrente sobretudo na alegada falta de prova da invenção, pelos dois arguidos, de planos de bonificação de depósitos de dinheiro em clubes de VIP de casinos.
É que mesmo que houvesse planos de bonificação de depósitos de dinheiro em algum clube de VIP de casino, isto não implicaria necessariamente que o 1.o arguido não tivesse inventado outros planos de bonificação para burlar dinheiro a outrem. E o facto de não serem pagos, a partir de determinada data, os elevados juros de depósito de dinheiro ditos pelo 1.o arguido aos 1.o e 2.a ofendidos, depois de estes terem feito entregar ou depositar avultados montantes de dinheiro ao próprio 1.o arguido segundo as instruções deste (cfr. os factos provados 3, 4, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 16 e 18), o facto de o 1.o ofendido, após o não recebimento de juros em causa, não ter conseguido entrar em contacto com o 1.o arguido (cfr. o facto provado 18), o facto de os dois arguidos nunca terem transferido qualquer dinheiro para tal senhor de apelido Chan (cfr. o último parágrafo do facto provado 19), e o facto de o 1.o arguido ter levantado, no mesmo dia 23 de Dezembro de 2014 em que foi depositado pelo 1.o ofendido segundo as instruções dele, o montante total de três milhões de dólares de Hong Kong (cfr. os factos provados 16 e 17), tudo em conjugação, já contrariam obviamente a razoabilidade da decisão do Tribunal recorrido que julgou não provados os factos acusados 21 e 22.
Há, de facto, erro notório na apreciação da prova dos factos acusados 21 e 22, para além de haver contradição insanável, subsumível ao vício referido na alínea b) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, entre o facto provado 2 (que deu por provado o facto acusado 2) e o primeiro parágrafo da matéria de facto concretamente especificada como não provada, em face da qual a gente fica sem saber se em Agosto de 2014 o 1.o arguido combinou com o 2.o arguido, por ele conhecido antes em Zhuhai, para burlar dinheiro a outrem através do aliciamento de depósitos com elevados juros.
Com o que é de reenviar, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 3, do CPP, o processo para novo julgamento, por um novo Tribunal Colectivo, a quem caberá julgar os factos acusados 2, 21 e 22, e depois decidir juridicamente da causa, em função dos factos provados 1, 3 e 21 já descritos no acórdão ora recorrido, e do resultado do novo julgamento dos ditos factos acusados 2, 21 e 22.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso do Ministério Público, reenviando o processo para novo julgamento no Tribunal Judicial de Base, por um novo Tribunal Colectivo, a quem caberá julgar os factos acusados 2, 21 e 22, e depois decidir juridicamente da causa, em função dos factos provados 1, 3 e 21 já descritos no acórdão ora recorrido, e do resultado do novo julgamento dos ditos factos acusados 2, 21 e 22.
Custas do recurso pelos dois arguidos (por terem defendido a improcedência do mesmo), com quatro UC de taxa de justiça individual, devendo cada um deles pagar ainda mil patacas ao seu Ex.mo Defensor Oficioso, a título de honorários.
Macau, 16 de Julho de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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