Processo nº 352/2020
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 23 de Julho de 2020
ASSUNTO:
- Impugnação da decisão da matéria de facto
SUMÁRIO:
- Para impugnar a decisão da matéria de facto, é necessário cumprir as exigências estabelecidas no artº 599º do CPC, não o tendo feito, é de rejeitar o recurso nesta parte.
O Relator
Ho Wai Neng
Processo nº 352/2020
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 23 de Julho de 2020
Recorrente: A (Embargante)
Recorrido: B (Embargado)
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – Relatório
Por sentença de 10/10/2019, decidiu-se:
1) julgou improcedentes os embargos deduzidos pelo Embargante A contra o Embargado B;
2) julgou improcedente o pedido de litigância de má fé formulado pelo Embargante contra o Embargado.
Da decisão que julgou improcedentes os embargos vem recorrer o Embargante, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
a) Vem o presente recurso interposto da sentença supra referida que julgou improcedentes os embargos deduzidos pelo embargante, A, à execução que lhe foi movida pelo embargado, B.
b) Não se conforma o embargante, ora recorrente, com a decisão do Tribunal "a quo", porquanto a matéria de facto assente em acórdão de 23/09/2019, foi, com o máximo respeito, incorrectamente julgada, tendo em conta os meios probatórios produzidos, antes e depois da audiência.
O recorrente, portanto, impugna a matéria de facto, nos termos previstos no art.º 599º, do C.P.C..
Vejamos, então,
c) A execução a que o embargante se opôs, deu entrada no T.J.B. no dia 19/01/2018. Nela invocava-se uma dívida do executado, embargante e ora recorrente, de HKD$2,000,000.00 (dois milhões de dólares de Hong Kong) e peticionava-se o pagamento da mesma e dos respectivos juros, desde o momento da citação.
O título executivo era uma declaração de dívida datada de "2013/09/17" e assinada pelo executado, mediante o qual este se comprometia a pagar aquele valor até "2014/02/16".
d) O embargante opôs-se à execução mediante embargos que atempadamente daram entrada no TJB, em 08/05/2018.
Basicamente, o embargante, confessando o empréstimo e o título, impugnou a falta de pagamento da dívida contraída, declarando expressamente que "a dívida assumida foi integralmente paga".
E ali disse como é que a mesma foi paga, terminando a pedir a extinção da execução.
e) Contestando os embargos, em 11/06/2018, o embargado limitou-se a impugnar o pagamento feito, afirmando expressamente "tout court" que "a realidade dos factos é que este montante reclamado pelo Exequente nunca foi pago ao mesmo e por isso instaurou contra o Executado a presente acção executiva."
f) Procedeu-se à determinação da matéria assente e à base instrutória, que aqui se dá por integralmente reproduzida.
Essencialmente, quesitava-se o pagamento, nos termos referidos pelo embargante,
g) Foi agendada dia para a realização da audiência de discussão e julgamento da causa (12/09/2019).
h) Em 19/07/2019, o embargante juntou aos autos documentos claramente comprovativos do pagamento da quantia exequenda tal como referido no seu articulada de oposição à execução.
i) O embargado não impugnou estes documentos, nem sobre os mesmos se pronunciou.
j) No início da audiência - a cuja gravação se procedeu, tendo sido gravados seis (6) períodos da audiência, cada um com início no minuto 0 (zero) - o embargante juntou aos autos, quatro (4) documentos, alegadamente para contraprova de todos os quesitos favoráveis ao embargante na base instrutória, referindo expressamente a existência de uma "conta corrente" entre embargante e embargado e que "os documentos juntos pelo embargante não fazem prova do pagamento da dívida" (minutos 3:50 a 7:20 do 1º período de gravação da audiência).
k) Estes documentos juntos pelo embargado, e admitidos pelo Tribunal, tratam-se de comprovativos de transferências bancárias efectuadas do embargado para o embargante - para as quais não foi dada qualquer justificação pelo embargado - datadas, por ordem cronológica, de 28/12/2012, 22/02/2013, 13/09/2013 e 30/01/2014, ou seja, à excepção desta última, todas com uma data anterior àquela em que foi emitido o título executivo (17/09/2013).
l) Os factos alegados pelo embargante que, na sua óptica, extinguiam o crédito invocado pelo embargado, receberam por parte do Colectivo de Juízes a menção de "não provado".
m) O Tribunal "a quo" fundamentou por isso a decisão da matéria de facto em situações, com o devido respeito, erradamente ajuizadas, o que se tentará evidenciar com o recurso aos depoimentos das testemunhas, à lógica e à experiência de vida.
Vejamos, então,
n) Fundamentação da decisão:
"Transferências feitas para a conta do embargado e da mãe do embargado no valor de HKD$2.599.800,00; o que excede em cerca de HKD$600.000,00 o valor constante do título executivo; a falta de emissão das quitações; e a falta de comprovativo da finalidade das transferências."
o) Entende, no entanto, o embargante que, pela prova produzida, (i) à data em que procedeu às transferências para pagamento da quantia exequenda, a única dívida que subsistia entre as partes era aquela que se refere no título executivo; que (ii) foi acordado entre ambos um pagamento faseado da mesma; que (iii) o pagamento feito à mãe do embargado (C) foi a pedido do embargado, que, à data, não se encontrava em Macau; que (iv) as transferências feitas pelo embargante - e aqueloutras feitas pela testemunha, D, a pedido do embargante - se destinavam, todas elas, ao pagamento da única dívida existente entre ambos; que (v) foram estipulados entre ambos juros, por acordo verbal; que (vi) ambos eram amigos; que (vii) apenas existia, entre eles, a dívida do título; que (viii) estava saldada; e que (ix) o embargante e a mãe do embargado não tinham relações negociais, razão pela qual o pagamento da quantia de HKD$1.973.000,00, a esta feita, era para pagamento da única quantia em dívida.
p) É o que resulta da depoimento da testemunha D, minutos 11:00 a 22:26; 23:05 a 24:00; e 24:48 a 31:29, do 1º período de gravação; 00:31 do curto 2º período de gravação; e 00:19 a 00:30 do 3º período de gravação; da testemunha E, minutos 28:30 a 31:00 e 36:34 a 38:20 do 4º período de gravação; da testemunha C; minutos 4:49 a 5:39; minutos 7:02 a 7:40; minutos 9:15 a 10:35 do 5º período de gravação; minutos 1:45 a 13:47 do 6º período de gravação.
q) Fundamentação da decisão:
"Empréstimo do embargado ao embargante que atingem HKD$4.000.000,00, mas apenas HKD$2.000.000,00 teve declaração de dívida e de acordo com os talões das transferências bancárias de fls. 65 a 68, de facto foi transferido para a conta bancária do embargante o valor total de HKD$4.005.000,00, o que nunca foi explicado."
r) Entende o embargante que a alegação do empréstimo de HKD$4.000.000,00 é uma ficção do embargado, que apenas surgiu em audiência de julgamento.
Nunca o embargado alguma vez fez alusão a uma tal dívida, na fase dos articulados.
E poderia tê-lo feito, porquanto, logo na petição de embargos, o embargante referiu que a dívida estava paga e como havia sido paga.
Por outro lado, o título de crédito da execução data de 17/09/2013 e, daquelas transferências feitas para a conta do embargante (fls. 65 a 68), apenas uma, a de menor valor (HKD$315.000,00), foi feita em data posterior à do título executivo.
Lógico seria, com o devido respeito, que o valor daquelas transferências fosse incluído no valor do título executivo.
Obviamente se, como se diz, a totalidade ou parte do mesmo não tivesse sido pago.
s) É, pois, impensável, ao contrário do que disse a testemunha C (minutos 1:45 a 3:40 do 6º período de gravação) que, tendo ela sugerido ao filho que este solicitasse uma declaração de dívida ao embargante, esta declaração - o título dos autos - não englobasse o montante total da dívida. Tanto mais que, também referido pelas testemunhas, C e E, o embargado e a mulher, alegadamente, até hipotecaram um andar (pasme-se!), para emprestar dinheiro ao embargante (respectivamente, minutos 3:41 a 4:38 do 6º período de gravação; e minutos 27:30 a 30:00 do 4º período de gravação).
Só que, ninguém sabe de que hipoteca se trata; quanto foi o valor do crédito hipotecário; e quando foi - se antes ou depois da data do título executivo - ...
t) Fundamentação da decisão:
"Não bastam as meras transferências bancárias para a conta bancária do embargado e da sua mãe sem explicar a sua causa."
u) Aqui, com o devido respeito, o que está em causa é exactamente o contrário.
Nunca até à audiência de julgamento, se mencionou nos autos uma "conta corrente" entre embargado e embargante; como nunca se mencionou a que era devido essa alegada "conta corrente"; quando se iniciou e quando findou.
Na óptica do recorrente, afigura-se-lhe óbvio que o titulo executivo é o termo de uma relação negocial tipificada num crédito a favor do embargado.
v) Mºs Juízes, a experiência e o senso comum e a prova documental e testemunhal dos autos dizem-nos exactamente o contrário do que se decidiu.
O embargado, então exequente, peticionou judicialmente a quantia de HKD$2.000.000,00, que o embargante lhe devia desde 16/02/2014, por dívida constituída em 17/09/2013.
w) O embargante opôs-se, afirmando que já pagou e como pagou.
Nunca se falou nos autos de uma outra qualquer dívida, qual o valor, como e quando foi constituída.
Também nunca fez o embargado referência a um qualquer crédito hipotecário, alegadamente só para concretizar um empréstimo ao embargante.
E, de repente, "sai da cartola" uma "conta corrente" e um empréstimo de 4.000.000,00.
Sem que se refira em que circunstâncias.
x) Por outro lado, o embargante aceitou o título executivo, mas confirmou o pagamento em mora e de forma faseada.
Todos os pagamentos e transferências efectuados pelo embargante ocorreram após a data do vencimento da dívida.
Manifestamente, perdoe-se-nos o advérbio, há um nexo temporal e causal entre o título e os pagamentos efectuados pelo embargante.
y) O ónus da prova, é certo, incumbe ao embargante.
Mas ele provou os pagamentos.
Já, quanto ao embargado, ele beneficiou de factos que nunca alegou. Antes, de forma baralhada, foram referidos em audiência.
O Tribunal "a quo", com o devido respeito (nunca é demais referir) permitiu ao embargado a discussão em audiência de factos nunca alegados, em clara oposição ao disposto no artº 567º do C.P.C..
z) O embargante foi, em audiência, confrontado com uma situação nunca antes referida.
E o Tribunal "a quo" permitiu que se discutisse em audiência factos "não instrumentais", alegados pelo embargante em cima do acontecimento.
Se o embargado entende que tem outros créditos sobre a embargante, como alegadamente parece ser o caso, deveria reclamá-los em juízo.
Só reclamou o valor de HKD$2.000.000,00, e este valor está até sobejamente coberto pelos valores que a si - ou a quem foi "mandatado" para o efeito - foram pagos.
aa) Convenhamos que o depoimento da C, mãe do embargado, é claramente elucidativo de que o pagamento que lhe foi feito em 23/07/2014, no valor de HKD$1.973.000,00 destinava-se a quase a totalidade da dívida titulada pela declaração do embargante emitida em 17/09/2013:
(minutos 41:20 a 41:30 do 4º período de gravação);
(minutos 4:49 a 5:39 do 5º período da gravação),
(minutos 9:52 a 10:16 do 5º período da gravação)
(minutos 10:17 até ao fim do 5º período da gravação)
(minutos 4:38 a 7:12 do 6º período da gravação)
bb) Isto é, na óptica do embargante, o pagamento que, alegadamente, teria sido "feito antes" (?) foi feito depois (da constituição da dívida); e foi feito a pedido do embargado.
cc) Isto é, na óptica do embargante, não havia qualquer relação negocial do embargado com a C (...) e o pagamento foi feito, a pedido do embargado que, aliás, não estava em Macau (depoimento coincidente com o da testemunha D.
(minutos 17:29 do 1º período da gravação)
dd) Mºs Juízes, é verdade que "o tribunal aprecia livremente a prova, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção... " (art.º 558º do C.P.C.).
Só que, no caso, perdoe-se-nos a frontalidade, da prova documental e daqueloutra produzido em audiência, fica-se exactamente com a "convicção" oposta àquela do Tribunal "a quo".
ee) Esta convicção deu prevalência a uma "nova versão" dos factos em cima do acontecimento, quando as testemunhas, no que se inclui as testemunhas do embargado, apresentaram uma versão - "pela positiva", quando narraram factos coincidentes com aqueles que o embargante articulou; ou, "pela negativa", quando afirmaram desconhecer factos que tinham obrigação de conhecer - versão esta, claramente favorável ao embargante.
ff) O que se pede, pois, a V. Exas., Mºs Juízes do Tribunal "ad quem", é que, no presente recurso, que abrange matéria de facto, as provas produzidas em audiência de la Instância sejam minuciosamente reexaminadas, sem as limitações impostas pela fundamentação da convicção do Tribunal "a quo".
Só assim, com o devido respeito, se dará cabal cumprimento ao disposto no art.º 599º do C.P.C..
*
O Embargado respondeu à motivação do recurso acima em referência nos termos constante a fls. 112 a 115 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Factos
Vêm provados os seguintes factos pelo Tribunal a quo:
- No dia 17 de Setembro de 2013 o Executado pediu a Exequente um empréstimo de HKD$2.000.000,00, tudo conforme doc. 1 junto com a execução cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos. (alínea A) dos factos assentes)
- Foi acordada a devolução da referida quantia no dia 16 de Fevereiro de 2014. (resposta ao quesito 1º-A da base instrutória)
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III – Fundamentação
A) Da impugnação da decisão da matéria de facto:
Dispõe o artº 599º do CPCM que:
Artigo 599.º
(Ónus do recorrente que impugne a decisão de facto)
1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.
3. Na hipótese prevista no número anterior, e sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe à parte contrária indicar, na contra-alegação que apresente, as passagens da gravação que infirmem as conclusões do recorrente.
4. O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 590.º
No caso em apreço, o Embargante não especificou quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, ou seja, não cumpriu o ónus da impugnação específica prevista na al. a) do nº 1 do artº 599º, o que determina a rejeição do recurso nesta parte.
Na realidade, a base instrutória contém 6 quesitos, sendo 5 não provados e um provado.
Ora, sem a indicação específica dos concretos pontos da matéria de facto que o Embargante considera incorrectamente julgados, este TSI não pode adivinhar quais são deles.
B) Do mérito da causa:
Inalterada a factualidade assente e provada, o recurso do mérito da causa não resta alternativa senão de se julgar improvido, uma vez que não existe qualquer base factual que permite este TSI revogar a decisão a quo e julgar procedentes os embargos.
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IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar provimento ao recurso interposto, confirmando a sentença recorrida.
*
Custas do recurso pelo Embargante.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 23 de Julho de 2020.
Ho Wai Neng
Tong Hio Fong
Rui Ribeiro
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352/2020