Processo n.º 379/2019 Data do acórdão: 2020-7-30 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
Há erro notório na apreciação da prova, como vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 379/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrentes:
– demandada Companhia de Seguros da XXXX (Macau), S.A.
– demandante A (A)
Não recorrente:
– arguido demandado B (B)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformadas com a decisão civil tomada no acórdão final proferido a fls. 183 a 199 do Processo Comum Colectivo n.o CR4-18-0214-PCC (com enxertado pedido cível de indemnização emergente de acidente de viação) do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, vieram recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI) a demandada Companhia de Seguros da XXXX (Macau), S.A., e a ofendida demandante A, aquela através de recurso principal, e esta em recurso subordinado.
Na motivação apresentada a fls. 218 a 228 dos presentes autos correspondentes, a seguradora recorrente começou por assacar ao Tribunal recorrido erro notório na apreciação da prova, como vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), e gerador da errada decisão judicial de atribuição, ao arguido condutor de autocarro B, de 70% de culpa pela produção do acidente de viação dos autos, e apenas de 30% de culpa à ofendida demandante A, visto que, no entender da própria seguradora recorrente, quem teve culpa exclusiva pela ocorrência do acidente foi essa ofendida (sobretudo por seguintes razões: no visionamento do vídeo junto aos autos, então captado a partir do interior do autocarro dos autos, se comprova que o arguido conduzia o referido autocarro com a necessária prudência, sendo notório que a travagem efectuada não foi brusca, bastando para isso ter em atenção às pegas existentes no autocarro, que quase não mexeram aquando da travagem, e de todos os passageiros que circulavam dentro do autocarro, a demandante foi a única a cair, sendo que, nenhum outro passageiro, quer sentado quer em pé caiu ou sofreu qualquer dano, pois iam devidamente agarrados aos varões ou às pegas existentes no autocarro para esse efeito, daí que fosse como fosse sempre seria de atribuir maior percentagem de culpa à demandante), para além de questionar a justeza e a adequação do montante de MOP150.000,00 fixado no acórdão recorrido para efeitos de indemnização da incapacidade parcial permanente (IPP) de 15% da demandante, rogando, à luz do art.o 560.o do Código Civil (CC), que esse montante não devesse ser superior a MOP50.000,00 (dado que essa ofendida não ficou com graves sequelas decorrentes do acidente, para além das dores naturalmente sofridas com o acidente, e ficou com uma incapacidade permanente para o trabalho reduzida, de apenas 15%, o que ainda lhe permitiria ter uma vida activa na sociedade, sendo que não era ela uma jovem aquando do acidente, tendo então já a idade de 67 anos, pelo que a incapacidade não iria afectar o desempenho do trabalho, pois a idade da reforma em Macau seria aos 65 anos).
Ao recurso, respondeu o Ministério Público a fls. 237 a 239 dos autos na questão da culpa do arguido pela produção do acidente (com entendida relevância para a alicerce da condenação penal do arguido), pugnando pela manutenção do julgado nesta parte.
Respondeu também a lesada demandante a fls. 240 a 245v, defendendo a improcedência total do recurso da seguradora.
Outrossim, na motivação do seu recurso subordinado, constante de fls. 252 a 258v, alegou a mesma demandante que em face dos elementos probatórios dos autos, o condutor do autocarro devia passar a ser julgado como o único culpado pela produção do acidente (sendo certo que a decisão tomada pelo Tribunal recorrido acerca da graduação da culpa desse condutor ficou com os vícios de erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável da fundamentação, respectivamente referidos nas alíneas c) e b) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP), e que, fosse como fosse, a culpa dela pela ocorrência do acidente nunca poderia ultrapassar 10%, e que, por outro lado, o montante de MOP150.000,00 fixado no acórdão recorrido para indemnização da IPP deveria ser aumentado para não menos do que MOP250.000,00.
A esse recurso subordinado, não respondeu a seguradora demandada.
Subidos os recursos, a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista dada a fl. 271, opinou que não tinha legitimidade para emitir parecer, por estar em causa matéria meramente civil.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte, com pertinência à solução dos dois recursos sub judice:
1. No pedido de indemnização cível, apresentado a fls. 91 a 98v dos autos, a lesada demandante A alegou que o condutor do autocarro dos autos B teve culpa exclusiva pela produção do acidente de viação em causa (cfr. o art.o 70.o desse petitório), e reclamou ela, de entre as outras, a indemnização, pelo valor total de MOP307.800,00, da perda parcial da sua capacidade de ganho no período dos seus 67 anos até 86 anos (por ser a idade de 86 anos a esperança média da vida de pessoas femininas em Macau) (como trabalhadora doméstica remunerada com rendimento mensal total de MOP9.000,00) por causa da sua IPP de 15% (MOP9.000,00 x 12 meses x 19 anos x 15% = MOP307.800,00) (cfr. os art.os 20.o e 27.o a 29.o do mesmo petitório), e pediu também uma quantia não inferior a meio milhão de patacas para efeitos de reparação dos seus danos não patrimoniais (cfr. mormente o art.o 69.o do mesmo pedido cível).
2. O acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 183 a 199 dos autos, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
3. Nesse acórdão, o Tribunal recorrido afirmou dar por integralmente reproduzido o teor do relatório médico pericial da fl. 37 dos autos (cfr. mormente o facto provado civil 6), e considerou provado que a ofendida demandante tem sequelas de dores permanentes e repetidas na parte lesada do seu corpo (cfr. o mesmo facto provado civil 6).
4. Nesse relatório da fl. 37, o Senhor Perito Médico-Legal fez constar a possibilidade de a lesada A ter sequelas de dores permanentes e repetidas na parte lesada do seu corpo.
5. No mesmo acórdão recorrido, o Tribunal recorrido afirmou ficar provado, no facto (penal) provado 1, que a ofendida A, em 18 de Agosto de 2017, às 10:10 horas, subiu ao autocarro então conduzido pelo arguido B, e quando ela estava a andar para a parte traseira desse autocarro, o arguido, estando a conduzir esse autocarro aproximando-se de uma passadeira para peões, não reduziu previamente a velocidade do autocarro para poder fazer parar o autocarro em sítio adequado, e violou o seu dever de condução previsto no art.o 32.o, n.o 1, alínea 1), da Lei do Trânsito Rodoviário (LTR), o que fez com que a ofendida tenha perdido o equilíbrio e caído dentro do autocarro, com lesão.
6. O Tribunal recorrido afirmou na fundamentação fáctica da sua decisão que ficou mais provado que a ofendida, depois de subir ao autocarro, avançou para a parte traseira do autocarro sem que tenha agarrado bem aos varões, com passos, aquando da subida do degrau, que se mostravam não estáveis, e quando ficava de pé na parte traseira do autocarro apenas tinha uma mão na pega de mão, o que fez com que ela, no momento de ocorrência do acidente, não tenha conseguido pegar seguramente na pega de mão, com caída por perda do equilíbrio (cfr. o teor das linhas 14 a 17 da página 5 do texto do acórdão recorrido, a fl. 185 dos autos).
7. No acórdão recorrido, foi dado por provado que antes da ocorrência do acidente de viação, a ofendida demandante recebeu mensalmente, da sua filha e dos seus dois filhos, um total de MOP9.000,00 como remuneração das suas tarefas de doméstica em tempo integral (cfr. o facto provado civil 8), e também dado por provado que depois do acidente de viação, os três filhos deixaram de pagar à ofendida demandante a remuneração de trabalho doméstico em tempo inteiro, e cada um deles só pagava à demandante MOP1.500,00 a título de alimentos.
8. O Tribuna recorrido acabou por atribuir 70% de culpa ao condutor do autocarro pela produção do acidente de viação dos autos, e 30% de culpa à ofendida demandante (cfr. os fundamentos expostos por esse Tribunal nos últimos dois parágrafos da página 21 e nos três primeiros parágrafos da página 22, ambas do texto do acórdão recorrido, a fls. 193 a 193v). Quanto aos danos não patrimoniais da demandante, fixou a respectiva quantia indemnizatória em MOP250.000,00 (cfr. o teor da página 27 e das primeiras duas linhas da página imediatamente seguinte, do mesmo texto decisório, a fls. 196 a 196v), e no tocante à indemnização da IPP de 15% da ofendida, fixou-a em MOP150.000,00 (cfr. o teor da página 28 (a partir sobretudo da sua linha 6) e da página 29 (até ao seu segundo parágrafo) do mesmo texto decisório, a fls. 196v a 197).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas ao mesmo tempo nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Começa-se por abordar o vício de erro notório na apreciação da prova, imputado ao Tribunal recorrido pelas duas recorrentes, acerca dos factos com pertinência à aferição da culpa pela produção do acidente de viação.
Pois bem, sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova, como vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, o Tribunal recorrido já expôs, sobretudo a partir do terceiro parágrafo da página 14 até ao primeiro parágrafo da página 15 do texto do seu acórdão, a fls. 189v a 190, a fundamentação probatória da sua livre convicção sobre o tema probando do presente processo na parte tangente à culpa pela produção do acidente de viação, fundamentação probatória essa que não se apresenta como incompatível com quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal das provas, nem com quaisquer regras da experiência da vida humana quotidiana, nem com quaisquer leges artis vigentes no campo de julgamento de factos, pelo que improcede o vício de erro notório na apreciação da prova esgrimido pelas duas recorrentes.
Outrossim, não deixa de improceder o vício de contradição insanável da fundamentação assacado à decisão civil recorrida pela demandante civil na sua motivação de recurso subordinado.
É que o sentido e alcance do facto penal provado 1 (segundo o qual a própria ofendida, em 18 de Agosto de 2017, às 10:10 horas, subiu ao autocarro então conduzido pelo arguido, e quando ela estava a andar para a parte traseira desse autocarro, o arguido, estando a conduzir esse autocarro aproximando-se de uma passadeira para peões, não reduziu previamente a velocidade do autocarro para poder fazer parar o autocarro em sítio adequado, e violou o seu dever de condução previsto no art.o 32.o, n.o 1, alínea 1), da LTR, o que fez com que a ofendida tenha perdido o equilíbrio e caído dentro do autocarro, com lesão) não entram em contradição irredutível, nem sequer simples contradição, com o seguinte facto também descrito como provado no acórdão recorrido: a ofendida, depois de subir ao autocarro, avançou para a parte traseira do autocarro sem que tenha agarrado bem aos varões, com passos, aquando da subida do degrau, que se mostravam não estáveis, e quando ficava de pé na parte traseira do autocarro apenas tinha uma mão na pega de mão, o que fez com que ela, no momento de ocorrência do acidente, não tenha conseguido pegar seguramente na pega de mão, com caída por perda do equilíbrio.
Basta interpretar estes dois factos provados à luz da repartição da culpa entre o arguido e a lesada demandante pela produção do acidente dos autos, para se concluir que os mesmos dois factos não estão em contradição lógica alguma.
Não pode, pois, ter havido o vício previsto na alínea b) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
E agora sobre a justeza da repartição concreta da culpa decidida pelo Tribunal recorrido: é de louvar o acórdão recorrido nesta parte, sem mais indagação por desnecessária.
No tocante ao montante indemnizatório da IPP de 15% da lesada demandante, fixado no acórdão recorrido em MOP150.000,00, a seguradora pede a sua redução, enquanto a demandante roga o seu aumento.
Entende-se que esse montante indemnizatório não violou patentemente o padrão equitativo de razoabilidade, em face da matéria de facto já dada por provada em primeira instância, pelo que não é de alterar essa quantia indemnizatória.
Em conclusão de todo o acima visto e analisado, improcedem os dois recursos (com a nota de que os juros legais de todo o quantum indemnizatório atribuído no acórdão recorrido, até o seu integral e efectivo pagamento, já começaram a contar da data do acórdão recorrido, nos termos do douto Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 2 de Março de 2011 do Processo n.o 69/2010 do Venerando Tribunal de Última Instância).
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar improcedentes o recurso principal da demandada seguradora e o recurso subordinado da ofendida demandante.
Custas dos recursos pelas respectivas recorrentes.
Macau, 30 de Julho de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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