打印全文
Processo nº 137/2019 Data: 29.04.2020
(Autos de recurso civil e laboral)

Assuntos : Embargos de terceiro.
Regime de bens.
Bem próprio.
Direito internacional privado.
Convenção pós-nupcial celebrada no Interior da R.P. da China.
Lei competente.
Lei da família da R.P. da China.
Ordem pública.



SUMÁRIO

1. O “direito internacional privado” pode ser definido como o ramo do direito que disciplina, com técnica própria, os pressupostos do direito privado que o tráfego de cidadãos de uns países (ou locais) para outros e o tráfego internacional jurídico privado apresenta, procurando formular os princípios e regras conducentes à determinação da lei ou leis aplicáveis às questões emergentes das “relações jurídico-privadas plurilocalizadas”.

2. As duas acepções mais comuns da expressão “ordem pública” referem-se às normas internas que limitam a “autonomia privada”, (cfr., v.g., o art. 273°, n.° 2, art. 274° e 399° do C.C.M.), e ao “instituto de direito internacional privado” que permite o afastamento do “direito estrangeiro” pelo aplicador do direito, (cfr., art. 20° do C.C.M.), ou a negação da homologação de sentenças ou da concessão de exequatur a cartas rogatórias provenientes do exterior; (cfr., o art. 1200°, n.° 1, al. f) do C.P.C.M.).

3. Nesta conformidade, preceitua o art. 20°, n.° 1 do C.C.M. que “Não são aplicáveis os preceitos da lei exterior a Macau indicados pela norma de conflitos, quando essa aplicação for manifestamente incompatível com a ordem pública”.

4. Entende-se como “ordem pública”, o conjunto de normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos, que formam quadros fundamentais do sistema, sobre eles se alicerçando a ordem económico-social, sendo, como tais, inderrogáveis pela vontade dos indivíduos.

5. É ao Tribunal que compete, em face de cada caso concreto, e socorrendo-se do seu senso jurídico, apurar se a aplicação da “lei estrangeira”, (ou do “exterior”), considerada competente, importa um “resultado intolerável”.

6. Atento o estatuído nas “normas de conflitos” do C.C.M. – cfr., art. 20°, 50° e 52° – a (quiçá) formalmente menos exigente Lei da Família da R.P. da China (aprovada pela 21ª Reunião do Comité Permanente do 9° Congresso Nacional do Povo em 28.04.2001), que permite a celebração de uma convenção pós-nupcial desde que escrita e com a (mera) intervenção de um advogado – não se apresenta “manifestamente incompatível com a ordem pública” ou com o “valor ético-social dos princípios fundamentais do sistema jurídico de Macau”.

O relator,

José Maria Dias Azedo




Processo nº 137/2019
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Nos autos de embargos de terceiro em apenso aos de execução no Tribunal Judicial de Base registados com o n.° CV1-09-0079-CEO, em que é exequente, (embargada), “A”, (“甲”), e executado B (乙), (cônjuge da embargante C, 丙), proferiu-se a seguinte sentença:

“C, cônjuge do executado B, e com os demais sinais dos autos, vem deduzir oposição mediante embargos de terceiro à execução em que é exequente A, também esta com os demais sinais dos autos.
Para tanto alega a embargante a nulidade do título porquanto se trata de empréstimo para jogo e a embargada/exequente não está licenciada para o efeito, bem como, ser casada com o executado segundo o regime de separação de bens e que as fracções autónomas a que se reportam os autos são apenas propriedade da embargante tendo sido adquiridas com dinheiro dos pais da embargante pelo que ainda que não fossem casados no regime de separação de bens, de acordo com a legislação da RPC sempre aqueles bens seriam bens próprios do cônjuge embargante.
Concluindo pede que se ordene o levantamento da penhora.
O embargado contestou invocando a ilegitimidade da embargante para invocar a nulidade do título e a inexistência de nulidade por estar ao tempo licenciada para o efeito.
Foi elaborado despacho saneador onde se entendeu que não pode ser apreciada nesta sede processual a invocada nulidade do título uma vez que não cabe no objecto da oposição mediante embargos de terceiro, prosseguindo os autos apenas para conhecer qual é o regime de bens do casamento celebrado entre embargante e executado, tendo sido seleccionada a matéria de facto assente e a base instrutória.
Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal.

A questão a decidir nesta sede processual consiste em saber se entre embargante e executado foi celebrada convenção pós-nupcial de separação de bens, se as fracções autónomas objecto destes autos são bens próprios da embargante e se essa convenção é oponível à exequente.

Dos elementos existentes nos autos apurou-se que:
a) A embargante C (丙) casou-se com o executado B (乙) na República Popular da China em 22 de Dezembro de 1998;
b) A embargante C (丙) adquiriu em 25 de Julho de 2005 a fracção autónoma “GXX” descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX a fls. 34V Livro BXXXA com a inscrição nº XXXXXXG;
c) A embargante C (丙) adquiriu em 28 de Abril de 2005 a quota 23/100 da fracção autónoma “JX” descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX a fls. 34V Livro BXXXA e com a inscrição nº XXXXXXG;
d) Foi ordenada a penhora dos imóveis mencionados em b) e c) nos autos de execução CV1-09-0079-CEO, em que é executado B (乙);
e) Damos aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais do documento a fls. 176 e 177;
f) A aquisição pela embargante do direito à concessão por arrendamento e propriedade de construção da fracção autónoma indicada em b), apresentação nº 70 de 03.08.2005, inscrição nº XXXXXXG foi inscrita fazendo-se constar que C é casada com B no regime de separação1;
g) A aquisição pela embargante de parte do direito à concessão por arrendamento e propriedade de construção da fracção autónoma indicada em c), apresentação nº 49 de 13.05.2005, inscrição nº XXXXXXG foi inscrita fazendo-se constar que C é casada com B no regime de separação2;
h) Por averbamento de 19.09.2011 foi a inscrição referidas em f) rectificada nela se fazendo constar que o regime de bens é o de comunhão de adquiridos e não o de separação de bens, o qual foi feito com base num averbamento datado de 12.09.2011 feito na escritura de 25.07.2005 pelo Notário Privado D tudo conforme consta de fls. 257 a 263 e fls. 267 a 280 dos autos principais que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais3;
i) A penhora da fracção autónoma referida em b) e f) foi feita em 03.06.2011 conforme consta a fls. 144 dos autos principais e a carta expedida para notificação da penhora ao comproprietário da fracção autónoma referida em c) e g) foi expedida em 07.06.2011 conforme consta de fls. 145 dos autos principais4;

Da factualidade apurada o que resulta é que embargante e executado casaram um com o outro em 22.12.1998 e em 15.11.2002 celebraram convenção pós-nupcial fixando que entre si vigorava o regime de separação de bens.
A convenção pós-nupcial foi celebrada por escrito e perante advogado, pelo que, é valida nos termos do artº 19º da Lei da Família da República Popular da China aprovada na 21ª reunião do Comité Permanente do 9º Congresso Nacional do Povo em 28 de Abril de 2001.
Na República Popular da China não há, à semelhança de Macau, um regime de registos de casamento centralizado nem a exigência de registo das convenções pós-nupciais.
Aquando da aquisição dos bens imóveis objecto destes autos, foi declarado e bem nas respectivas escrituras públicas que a adquirente C e aqui embargante era casada com o executado B no regime de separação de bens, uma vez que a convenção pós-nupcial é anterior a essas escrituras, pelo que, estava correcta a menção feita nas escrituras publicas de aquisição e o registo das aquisições em que fazia constar ser a adquirente aqui embargante casada no regime de separação de bens.
Enferma de erro o averbamento feito - nos termos da al. e) do nº 2 do artº 142º do Código do Notariado - na escritura pública de compra pela embargante da fracção autónoma referida na al. b) e f) e a que se alude na al. h) da factualidade apurada segundo o qual a compradora não era casada no regime de separação de bens mas no de comunhão de adquiridos, com base no qual depois se fez oficiosamente o averbamento da correcção do regime de bens no registo predial na inscrição da aquisição feita pela embargante.
Não cabendo aqui apurar a pedido ou a impulso de quem foram tais averbamentos feitos – sendo certo que o registo da penhora feito e bem provisoriamente por dúvidas foi convertido em definitivo -, o certo é que os mesmos foram feitos sem se ter em consideração que na RPC não há um regime de registos centralizado de casamentos e não consta do certificado matrimonial que é emitido pelas autoridades aquando do registo do casamento - como aliás não podia constar por lhe ser posterior – o registo de convenções pós-nupciais, as quais devendo ser feitas por escrito não têm de ser levadas a registo.
Poder-se-ia colocar a questão, segundo a legislação de Macau, se a convenção pós-nupcial celebrada pela embargante e executado seria eficaz relativamente aos credores face ao disposto no artº 1575º do C.Civ., contudo, no caso em apreço o regime de bens – separação de bens – pós convencionado entre embargante e executado era no caso dos autos público, tendo sido esse o declarado na escritura pública de compra e venda e esse o inscrito no registo predial aquando da aquisição das fracções autónomas objecto destes actos em nada se induzindo em erro terceiros e/ou credores.
O registo predial com o regime de separação de bens estava bem feito, sendo depois erradamente corrigido para poder converter em definitivo o registo provisório e por dúvidas da penhora, quando no caso em apreço estes bens nunca foram adquiridos pela embargante quando ainda se encontrava casada em regime de comunhão de adquiridos.
Destarte, seja porque se demonstra que a embargante adquiriu as fracções autónomas objecto destes autos quando estava casada com o executado segundo o regime de separação de bens por força da convenção pós-nupcial que lhe é anterior (à aquisição), seja porque do registo predial antes e aquando da realização da penhora constava e bem ser a embargante e executado casados no regime de separação de bens5, seja porque as correcções averbamentos realizados, não tiveram em consideração a situação real existente quanto ao regime de bens que vigora no casamento da embargante e executado, impõe-se concluir que os bens em causa não pertencem ao executado.
Considerando que os bens objecto destes autos e penhorados na execução de que estes são apenso são bens próprios do cônjuge do executado aqui embargante, de acordo com o disposto no artº 293º do CPC, impõe-se julgar a acção procedente e ordenar que seja levantada a penhora.
(…)”; (cfr., fls. 298 a 304 dos autos de embargos, que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformada com o decidido, a embargada (exequente), recorreu para o Tribunal de Segunda Instância que, por Acórdão de 18.07.2019, (Proc. n.° 156/2018), negou provimento ao recurso; (cfr., fls. 422 a 431-v).

*

Ainda não conformada, traz agora o presente recurso, pedindo a revogação do referido Acórdão (e sentença do Tribunal Judicial de Base) com a consequente improcedência dos deduzidos embargos; (cfr., fls. 441 a 460).

*

Adequadamente processados os autos, e com as contra-alegações da embargante (recorrida), (cfr., fls. 466 a 478), vieram os autos a esta Instância.

*

Nada obstando, cumpre apreciar e decidir.

Fundamentação

2. Tem o presente recurso como objecto o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que confirmou a sentença do Tribunal Judicial de Base onde, reconhecendo-se razão à embargante, ora recorrida, julgaram-se procedentes os (por esta) deduzidos embargos de terceiro.

Merecendo o recurso conhecimento, vejamos se merece provimento.

Pois bem, a sentença do Tribunal Judicial de Base julgou procedentes os aludidos embargos, dado que, em face da factualidade que em audiência de julgamento realizada se provou, concluiu que os “bens objecto destes autos e penhorados na execução de que estes são apenso são bens próprios do cônjuge do executado aqui embargante”; (cfr., fls. 298 a 304).

Perante o recurso que do assim decidido interpôs a embargada (exequente), e apreciando as questões aí colocadas quanto à “matéria de facto” e seu “enquadramento jurídico”, entendeu o Tribunal de Segunda Instância que correcta tinha sido a decisão de procedência dos ditos embargos.

No presente recurso coloca – essencialmente – a recorrente as mesmas questões antes suscitadas, e que, em abreviada súmula que se nos apresenta adequada, se identificam com a “nulidade da decisão por omissão de pronúncia” e “errada aplicação do direito”.

Sem demoras, vejamos se lhe assiste razão.

–– Comecemos pela assacada “nulidade”.

Como repetidamente temos entendido, a imputada “nulidade por omissão de pronúncia”, (cfr., art. 571°, n.° 1, al. d) do C.P.C.M.), tão só ocorre quando, o Tribunal, em inobservância ao estatuído no art. 563°, n.° 2 do mesmo código – que preceitua que “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras” – deixe de apreciar e conhecer questão (validamente) colocada pelas partes; (cfr., v.g., o Ac. de 22.01.2020, Proc. n.° 58/2017(I)).

No caso, em relação a esta questão, e para justificar o seu ponto de vista, diz a recorrente que o Tribunal de Segunda Instância não apreciou da sua alegada “insuficiência da matéria de facto” em que incorreu o Tribunal Judicial de Base na decisão que proferiu quanto à “residência habitual dos cônjuges”, (o executado e a embargante).

Há (evidente) equívoco.

Com efeito, clara e expressa foi a pronúncia do Tribunal de Segunda Instância sobre a “questão”, valendo a pena aqui transcrever o que em relação à mesma consignou e cujo segmento decisório tem o teor seguinte:

“A exequente mais invoca a insuficiência da matéria de facto provada para se verificar onde se situa a residência habitual comum dos cônjuges (embargante e executado) ou o lugar com o qual a sua vida familiar se ache mais estreitamente conexa, argumentando, deste modo, que não se pode determinar que a legislação do interior da China é a lei competente aplicável ao presente caso.
Dispõe o artigo 52.º, n.º 1 do CC que, a admissibilidade, substância e efeitos das convenções pós-nupciais e das modificações feitas pelos cônjuges ao regime de bens, legal ou convencional, são reguladas pela lei competente nos termos do artigo 50.º
E estatui o artigo 50.º do mesmo Código que,
1. Salvo o disposto no artigo seguinte, as relações entre os cônjuges são reguladas pela lei da sua residência habitual comum.
2. Não tendo os cônjuges a mesma residência habitual, é aplicável a lei do lugar com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa.
Os factos dos autos mostram que os cônjuges casaram-se no interior da China em 1998, onde celebraram, no dia 15 de Novembro de 2002, uma convenção de bens do casamento, efectivamente adoptando o regime da separação de bens.
Segundo mostra a referida convenção de bens, as residências declaradas pelo executado e embargante situam-se, respectivamente, na Cidade de Zhongshan da Província de Guangdong e Cidade de Xi’an da Província de Shaanxi.
Daí se vislumbra que, no momento da celebração do referido documento, tanto o executado como a embargante residiram no interior da China. Pese embora as residências diferentes declaradas, os cônjuges podem habitar em lugares diversos do país por várias razões.
Além disso, apesar de os mesmos ter declarado respectivamente, em 2003, junto da DSI de Macau, que tinham como residência habitual a mesma fracção habitacional sita na [Rua(1)] de Macau, tal facto não tem utilidade prática em termos da escolha da lei competente, por as declarações ter sido feitas depois da celebração da referida convenção.
Nestes termos e ao abrigo do disposto no artigo 50.º, n.º 1 do CC, afigura-se-nos que deve ser aplicada a legislação da residência habitual comum, isto é, a lei da RPC respeitante às convenções pós-nupciais. O recurso é, portanto, improcedente nesta parte”; (cfr., fls. 30 a 32).

Perante isto, mais não é preciso dizer para se constatar que (totalmente) inexistente é a arguida “nulidade”, pois que – ainda que se possa não concordar com o que decidiu o Tribunal de Segunda Instância, sendo, então, outra questão, mas que, como adiante se verá, também não merece censura – manifesto é que não deixou de apreciar e de emitir (expressa) pronúncia sobre a alegada “insuficiência”.

Continuemos.

–– Da alegada “errada aplicação do direito”.

Aqui, (e em bom rigor), tudo se resume em saber se correcta é a decisão no sentido de que os “bens penhorados são bens próprios da embargante”, (e, como tal, indevidamente penhorados).

E, em face da factualidade dada como “provada”, (e atrás retratada), adequado foi o decidido.

Na verdade, está assente que as “fracções autónomas penhoradas”, (e a que se refere a alínea i) da matéria de facto), foram pela embargante adquiridas no ano de 2005, quando, embora casada com o executado, já se encontrava(m) em “regime de separação de bens”, por força da convenção pós-nupcial em 15.11.2002 celebrada no Interior da República Popular da China; (cfr., fls. 176 e 177, e alínea e) da matéria de facto dada como provada).

Nesta conformidade, como – bem – entenderam o Tribunal Judicial de Base e o Tribunal de Segunda Instância, válida sendo tal “convenção pós-nupcial” atento o art. 19° da Lei da Família da República Popular da China (aprovada pela 21ª Reunião do Comité Permanente do 9° Congresso Nacional do Povo em 28.04.2001), e constatando-se também que aquando da dita aquisição assim foi declarado em sede própria – que o executado e a embargante se encontravam casados em regime de “separação de bens” – manifesto se nos apresenta que nenhuma censura merece o decidido.

Questiona, a recorrente, a validade de tal “convenção pós-nupcial”.

Porém, sem razão.

De facto – como de forma clara já o explicitou o Tribunal de Segunda Instância no segmento decisório que se deixou transcrito e que, porque se nos apresenta correcto aqui se dá como reproduzido – a dita convenção é “válida” porque, atento o estatuído no art. 50° do C.C.M., foi celebrada de acordo com a “lei aplicável”, o aludido art. 19° da Lei da Família da R.P. da China, visto ser a lei do local de residência habitual do casal ao tempo da sua celebração.

Vejamos.

Como resulta do que até aqui se deixou relatado, a solução a dar à questão dos autos implica a resolução de uma questão de “direito internacional privado”, ramo do direito que disciplina, com técnica própria, os pressupostos do direito privado que o tráfego de cidadãos de uns países (ou locais) para outros e o tráfego internacional jurídico privado apresenta.

Como citando Ferrer Correia nota Pilar Blanco-Morales, (in “Direito Internacional Privado”, pág. 34), o D.I.P. procura formular os princípios e regras conducentes à determinação da lei ou leis aplicáveis às questões emergentes das relações jurídico-privadas de caracter internacional, melhor dizendo, de “relações jurídicas plurilocalizadas”; (sobre o tema, cfr., v.g., o trabalho de J. Nuno Riquito e Teresa Leong in, “Direito Internacional Privado”, F.D.U.M.).

É o que sucede nos presentes autos, onde, para além do demais, temos “imóveis” localizados em Macau penhorados em sede de uma execução a correr os seus termos, e em que a decisão da sua “titularidade” implica o conhecimento do regime de bens resultante de uma convenção pós-nupcial celebrada na R.P. da China.

In casu, e como se viu, entendeu o Tribunal de Segunda Instância que à já referida “convenção pós-nupcial” (celebrada em 15.11.2002) aplicável é a “lei do local da residência habitual dos cônjuges”, sendo em consequência, de se lhe reconhecer eficácia em Macau.

E, como se disse, acertada é a solução.

Com efeito, em matéria da “lei reguladora das relações de família” estatui o n.° 1 do art. 52° do C.C.M. que “A admissibilidade, substância e efeitos das convenções pós-nupciais e das modificações feitas pelos cônjuges ao regime de bens, legal ou convencional, são reguladas pela lei competente nos termos do artigo 50.º”, remetendo assim para este art. 50° do mesmo código onde se preceitua que:

“1. Salvo o disposto no artigo seguinte, as relações entre os cônjuges são reguladas pela lei da sua residência habitual comum.
2. Não tendo os cônjuges a mesma residência habitual, é aplicável a lei do lugar com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa”.

Nesta conformidade, e em face do que já se deixou exposto, visto cremos estar que correcta e adequada foi a decisão do Tribunal de Segunda Instância na matéria em questão.

Diz, (finalmente), a recorrente, que a aplicação da legislação do Interior da R.P. da China a tal “convenção” viola a “ordem pública”.

Também não tem razão.

As duas acepções mais comuns da expressão “ordem pública” referem-se às normas internas que limitam a “autonomia privada”, (cfr., v.g., o art. 273°, n.° 2, art. 274° e 399° do C.C.M.), e ao “instituto de direito internacional privado” que permite o afastamento do “direito estrangeiro” pelo aplicador do direito, (cfr., art. 20° do C.C.M.), ou a negação da homologação de sentenças ou da concessão de exequatur a cartas rogatórias provenientes do exterior; (cfr., o art. 1200°, n.° 1, al. f) do C.P.C.M.).

Nestes autos, e em causa estando a segunda situação, vejamos.

Nos termos do art. 20° do C.C.M.:

“1. Não são aplicáveis os preceitos da lei exterior a Macau indicados pela norma de conflitos, quando essa aplicação for manifestamente incompatível com a ordem pública.
2. São aplicáveis, neste caso, as normas mais apropriadas da legislação externa competente ou, subsidiariamente, as regras do direito interno de Macau”.

Em sintonia com o que atrás se disse, in casu, à já aludida “convenção” é aplicável o art. 19° da Lei da Família da R.P. da China.

E, nos termos do n.° 1 do transcrito art. 20° do C.C.M., será tal “regime legal” de afastar, caso a sua aplicação for “manifestamente incompatível com a ordem pública” da R.A.E.M..

Porém, não é o caso dos autos.

Numa tentativa de definir o conceito de “ordem pública”, considerava Mota Pinto – in “Teoria Geral do Direito Civil”, pág. 434 – que o mesmo devia ser entendido como “o conjunto dos princípios fundamentais, subjacentes ao sistema jurídico, que o Estado e a sociedade estão substancialmente interessados em que prevaleçam e que tem uma acuidade tão forte que devem prevalecer sobre as convenções privadas”.

Manuel de Andrade refere que pela dificuldade em definir a noção de ordem pública se deve fazer apelo aos “interesses fundamentais que o sistema jurídico procura tutelar e aos princípios correspondentes que constituem como que um substrato desse sistema”; (in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, pág. 334).

Vaz Serra, (também) salienta que “é sempre muito difícil definir o conceito de ordem pública, uma vez que o mesmo varia com os tempos…”; (in B.M.J., n.° 74, pág. 127).

Por sua vez, para Ferrer Correia, a vaguidade e imprecisão da noção de ordem pública como “limite à aplicação do direito estrangeiro”, no caso, do “exterior de Macau”, é um “mal sem remédio”, sendo “alguma coisa que joga essencialmente com avaliações subjectivas do juiz, com a representação que na mente deste se forma acerca do sentimento jurídico dominante na colectividade e das reacções desse sentimento à constituição ou reconhecimento do efeito jurídico que se tem em vista”, e, acentuando a característica da “actualidade” da ordem pública, refere que “é função de concepções que hão-de vigorar na própria ocasião do julgamento”; (in “Direito Internacional Privado”, I, pág. 405 e segs.).

Como no Acórdão deste Tribunal de 24.07.2019, (Proc. n.° 66/2015 e citando e mesmo Professor) se ponderou, “(…). Cada Estado tem naturalmente os seus valores jurídicos fundamentais, de que entende não dever abdicar, e interesses de toda a ordem, que reputa essenciais e que em qualquer caso lhe incumbe proteger. A preservação desses valores e a tutela desses interesses exigem que a todo o acto de atribuição de competência a um ordenamento jurídico estrangeiro vá anexa uma ressalva: a lei definida por competente não será aplicada na medida em que essa aplicação venha lesar algum princípio ou valor básico do ordenamento nacional, tido por inderrogável, ou algum interesse de precípua grandeza da comunidade local. É justamente isto a ressalva, reserva ou excepção de ordem pública internacional.
(…)
O efeito característico da ordem pública consiste, portanto, no afastamento do regime legal normalmente aplicável aos factos sub judice, em razão da natureza do resultado a que em concreto a sua aplicação daria lugar: isto é, por se verificar que esse resultado seria inadmissível para o sentimento jurídico dominante, ou negaria pressupostos essenciais do sistema jurídico nacional. É esta a concepção aposteriorística da ordem pública”; (neste mesmo sentido, e considerando que “o problema que se põe é o de saber se, através da ordem pública, aquilo que o juiz do foro faz é controlar o conteúdo do direito material estrangeiro confrontando-o com princípios fundamentais de justiça, nomeadamente constitucionalmente apurados no Estado do foro ou se, diferentemente, aquilo que o juiz faz é controlar os efeitos da aplicação do direito estrangeiro”, concluem, igualmente, N. Riquito e T. Leong que, a “concepção à posterioristica” da ordem pública se apresenta como a mais adequada, cfr., ob. cit., pág. 328 e segs.).

Nota também Baptista Machado, que a ordem pública interna se identifica com o “conjunto de normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos, que formam quadros fundamentais do sistema, sobre eles se alicerçando a ordem económico-social, sendo, como tais inderrogáveis pela vontade dos indivíduos”, e, após afirmar que o “perigo inerente à excepção de ordem pública reside na sua indeterminação e na consequente possibilidade de se dela fazer um uso excessivo”, salienta que “é ao juiz que compete em face de cada caso concreto e socorrendo-se do seu senso jurídico, apurar se a aplicação da lei estrangeira considerada competente importaria na hipótese um resultado intolerável, quer do ponto de vista do comum sentimento ético-jurídico, quer do ponto de vista dos princípios fundamentais…”, “de molde a chocar a consciência e a provocar uma exclamação”; (in “Lições de Direito Internacional Privado”, pág. 254 e segs.).

Vê-se assim que constituem características essenciais da ordem pública: a “excepcionalidade”, no sentido de que esta “claúsula” só intervem como limite à aplicação do “Direito estrangeiro” quando a solução dada ao caso for não apenas divergente da que resultaria da aplicação do Direito local, mas sim “manifestamente intolerável”; “imprecisão”, cabendo ao interprete concluir; “actualidade”, havendo que se ter em conta que a normatividade da cláusula geral da ordem pública não deve ser compreendida como um fenómeno estático, passível de ser completamente definido e preenchido aprioristicamente, sendo de ponderar a evolução social e as concepções vigentes numa determinada sociedade, e, por fim, o “carácter relativo” de todo e qualquer sistema jurídico, (já que cada sociedade tem as suas referências éticas), dependendo a actuação da claúsula da intensidade dos laços da situação com o ordenamento do foro.

In casu, a – quiçá – formalmente menos exigente Lei da Família da R.P. da China ao caso aplicável – que permite a celebração (válida) de uma convenção pós-nupcial desde que escrita e com a (mera) intervenção de um advogado, (portanto, sem a necessidade de um notário) – de forma alguma nos parece que seja o seu reconhecimento local “manifestamente incompatível com a ordem pública” ou com o “valor ético-social dos princípios fundamentais do sistema jurídico de Macau”.

A se entender de outra maneira, (muito) mal estariam as coisas, sendo então caso para se dizer que possível seria também sindicar-se a validade do (próprio) “casamento” entre o executado e a embargante, o que, para além de em nada parecer razoável, cremos que não será solução com a qual concordará a recorrente …

Há – acima de tudo – que atentar que, em causa não está a “genuinidade” da celebrada convenção, (que, neste ponto, não foi sequer questionada), sendo de se ter igualmente presente que, o C.C.M. não deixa de consagrar o princípio da “Liberdade de convenção”, assegurando-se aos esposos a faculdade de fixar, livremente, o regime de bens do casamento, (cfr., art. 1567°), em causa não estando nenhuma das “restrições ao dito princípio, (cfr., art. 1569°), notando-se, ainda, que a ”convenção” aqui em questão foi, oportuna e regularmente “invocada” e “respeitada”, (aceite), aquando da “aquisição dos imóveis”, assim se tendo feito constar em sede própria, não se mostrando de se considerar que em “resultado” da sua validade em Macau possam ter sido prejudicados quaisquer legítimos direitos ou interesses de terceiros, nem de se ter como adequada, (ou razoável), qualquer alegação no sentido do (eventual) desconhecimento do “regime de bens” em vigor entre o executado e a embargante.

Dest’arte, e nos termos e fundamentos que se deixam expendidos, censura não merece o Acórdão recorrido que, por isso, se confirma na sua íntegra.

Decisão

3. Em face do exposto, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente, com a taxa de justiça de 10 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 29 de Abril de 2020


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

1 Facto aditado nos termos do nº 3 do artº 562º do CPC com base em documentos existentes nos autos e não impugnados.
2 Facto aditado nos termos do nº 3 do artº 562º do CPC com base em documentos existentes nos autos e não impugnados.
3 Facto aditado nos termos do nº 3 do artº 562º do CPC com base em documentos existentes nos autos e não impugnados.
4 Facto aditado nos termos do nº 3 do artº 562º do CPC com base em documentos existentes nos autos e não impugnados.
5 Veja-se aliás de fls. 75 a 125 do processo principal todo o esforço que é feito pelo exequente para convencer que o executado estava casado no regime de comunhão de adquiridos e que os bens haviam sido adquiridos segundo aquele regime e não o que constava do registo predial.
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------

Proc. 137/2019 Pág. 24

Proc. 137/2019 Pág. 1