Processo n.º 780/2019 Data do acórdão: 2020-9-10 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– interpretação dos factos provados
– verificação da circunstância da prática do crime como modo de vida
– art.o 198.o, n.o 1, alínea h), do Código Penal
S U M Á R I O
O tribunal de recurso pode interpretar as circunstâncias fácticas já apuradas em primeira instância, para efeitos de verificação, a nível de Direito, da circunstância da prática do crime como “modo de vida” de que se fala na norma incriminadora do art.o 198.o, n.o 1, alínea h), do Código Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 780/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
Recorridos: 1.a arguida B (B)
2.º arguido C (C)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 185 a 190 do Processo Comum Colectivo n.° CR1-18-0088-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficaram condenados a 1.a arguida B e o 2.o arguido C (então acusados pelo Ministério Público como co-autores materiais de três crimes consumados de furto como modo de vida, p. e p. pelo art.o 198.o, n.o 1, alínea h), do Código Penal (CP)) pela prática, em co-autoria material, de dois crimes consumados de furto simples, p. e p. pelo art.o 197.o, n.o 1, do CP (convolados de dois daqueles três crimes acusados), igualmente em sete meses de prisão por cada, e, em cúmulo jurídico, identicamente em dez meses de prisão única, suspensa na execução por um ano, e ficou declarado extinto (devido à desistência da queixa por quem de direito) o procedimento criminal contra os mesmos dois arguidos no respeitante a um outro crime de furto simples (convolado de um dos três crimes inicialmente acusados).
Veio a Digna Delegada do Procurador recorrer para este Tribunal de Segunda Instância, para pedir a condenação dos dois arguidos nos termos inicialmente acusados, alegando, para o efeito, e na sua essência, na motivação apresentada a fls. 197 a 202v dos presentes autos correspondentes, que as circunstâncias fácticas já apuradas em primeira instância bastam para se ter por provada a prática pelos dois arguidos dos três delitos de furto como modo de vida.
Ao recurso, responderam o 2.o arguido a fls. 205 a 208 e a 1.a arguida a fls. 209 a 213, igualmente no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 224 a 225, pugnando pelo provimento do recurso, com consequente condenação dos dois arguidos pela prática, em co-autoria material, de três crimes consumados de furto como modo de vida, com nova medida da pena correspondente.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido consta de fls. 185 a 190 dos autos, cuja fundamentação fáctica se dá por aqui integralmente reproduzida.
Segundo a factualidade já dada por provada nesse acórdão: os dois arguidos, sem emprego (cfr. o facto provado 7) e como delinquentes primários, furtaram, em 2 de Outubro de 2017, um telemóvel contra uma vítima, e à tarde do mesmo dia furtaram um telemóvel contra uma outra vítima, e em 4 de Outubro de 2017 furtaram um telemóvel a uma outra vítima (cfr. os factos provados 2, 3 e 4), para além de terem furtado outros dez telemóveis no período de 30 de Setembro a 4 de Outubro de 2017 (cfr. o facto provado 5).
Na fundamentação probatória do mesmo acórdão, o Tribunal Colectivo recorrido afirmou que como os dois arguidos praticaram os crimes apenas por dois dias, por, segundo declararam, terem perdido antes o dinheiro nos jogos, não estava assim excluída a possibilidade de se ter tratado de um caso isolado, pelo que não podia dar por provado, sem dúvida alguma, que eles praticaram os crimes de furto como modo de vida (cfr. o último parágrafo da página 5 e a primeira linha da página 6, ambas do texto do acórdão recorrido, a fl. 187 a 187v).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Entende a Digna Delegada do Procurador ora recorrente que os dois arguidos devem ser condenados nos termos legais pelos quais vinham acusados inicialmente, sob a égide da norma incriminadora do art.o 198.o, n.o 1, alínea h), do CP, que prevê a punibilidade da conduta de furto como modo de vida.
Desde já, é de seguir aqui o acórdão do TSI, de 29 de Janeiro de 2015, do Processo n.o 797/2014, segundo o qual o tribunal pode interpretar as circunstâncias fácticas já apuradas para efeitos de verificação, a nível de Direito, da circunstância da prática do crime como “modo de vida” de que se fala nessa norma incriminadora.
No caso dos autos, mesmo só se olhando às três vítimas concretamente identificadas nos factos provados 2 a 4, com abstracção de outros dez telemóveis referidos no facto provado 5, já se sabe que os dois arguidos chegaram a praticar três crimes de furto contra essas três vítimas, respectivamente, no espaço de tempo a menos de três dias.
Realiza o presente Tribunal de recurso que a prática desses três crimes concretos de furto a menos de três dias pelos dois arguidos não é um caso isolado, mas sim dá para integrar a circunstância da prática, por eles, da conduta de furto como modo de vida.
Assim, é de passar a condenar, efectivamente, os dois arguidos como co-autores materiais desses três crimes consumados, respectivos, de furto como modo de vida, p. e p. pelo art.o 198.o, n.o 1, alínea h), do CP.
Dadas as prementes necessidades da prevenção geral deste tipo de delito, não é de optar pela pena de multa, em detrimento da de prisão (cfr. o critério material plasmado no art.o 64.o do CP para a questão da escolha da espécie da pena).
Sendo de um mês a cinco anos a moldura penal de prisão correspondente (cfr. inclusivamente o art.o 41.o, n.o 1, do CP), e ponderando tudo (com consideração de todas as circunstâncias fácticas já apuradas pelo Tribunal a quo e descritas como provadas no texto da decisão recorrida) à luz dos padrões da medida da pena vertidos nos art.os 40.º, n.os 1 e 2, e 65.º, n.os 1 e 2, do CP, entende-se por justo e equilibrado aplicar a cada um dos dois co-arguidos dez meses de prisão para cada um dos três crimes consumados de furto como modo de vida, e, em cúmulo jurídico operado nos termos do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do CP, a pena única de um ano e três meses de prisão efectiva.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso do Ministério Público, passando a condenar os dois arguidos recorridos B e C como co-autores materiais de três crimes consumados de furto como modo de vida, p. e p. pelo art.o 198.o, n.o 1, alínea h), do Código Penal, igualmente em dez meses de prisão para cada um desses três crimes, e identicamente na pena única de um ano e três meses de prisão efectiva.
Custas do recurso a meias pelos dois arguidos, com uma UC de taxa de justiça individual, devendo ainda pagar, cada um deles, mil patacas de honorários a favor das respectivas Ex.mas Defensoras Oficiosas.
Macau, 10 de Setembro de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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