Processo nº 729/2020
(Autos de Recurso Cível e Laboral)
Data do Acórdão: 10 de Setembro de 2020
ASSUNTO:
- Posse
- Corpus e Animus
- Prova
SUMÁRIO:
- Para que se possa concluir que alguém tem a posse de determinada coisa é necessária a prova do “corpus” expressa nos actos materiais em que se traduz a apreensão material da coisa ou a possibilidade de a continuar a todo o tempo e do “animus” elementos subjectivo, ou intenção, com base na qual se possui por referência a um determinado direito real.
- Sendo alegado factos relativos ao “animus”, isto é, intenção com base na qual se praticam os actos de apreensão material da coisa, não se dando como provados nenhum deles e concluindo-se pela existência de posse, há contradição entre os fundamentos de facto e de direito da decisão, impondo-se a anulação da mesma e a remessa dos autos para repetição do julgamento quanto àqueles factos – os relativos ao “animus” -.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 729/2020
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 10 de Setembro de 2020
Recorrente: A
Recorridos: B e outros
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
B, C, D, F e G, todos com os demais sinais dos autos,
Vieram instaurar providência cautelar não especificada, contra,
A, também, com os demais sinais dos autos,
alegando que o marido e pai dos Requerentes desde 1969 está na posse do imóvel a que respeitam os autos, a qual após o óbito daquele passou a ser exercida pelos Requerentes, na convicção de serem os seus proprietários e que em Janeiro de 2019 tiveram conhecimento de que a fechadura do portão do prédio havia sido arrombada e substituída por um cadeado sem autorização dos mesmos, impedindo-os de exercer a posse sobre o mesmo, pedindo a restituição da posse sobre o prédio.
Foi proferida decisão julgando-se a restituição da posse parcialmente procedente, determinando que, seja restituída a posse do R/c do prédio indicado e o Requerido obrigado a entregar em 5 dias um duplicado das chaves do portão e da fechadura dourada a fim de permitir o acesso ao jardim do prédio.
Não se conformando com a decisão proferida veio o Requerido recorrer da mesma, apresentando as seguintes conclusões:
1ª Vem o presente recurso da douta sentença explicitada em 15 de Julho de 2019, que julgou, parcialmente, procedente por provada a restituição da posse intentada pelos Requerentes B e outros, Autores/Reconvindos na Acção Principal, contra si, A (A), 2.º Réu/Reconvinte na Acção Principal e, em consequência, determinou que: a) fosse restituída a posse do R/c do prédio n.º ... da Rua ...... aos requerentes e b) o requerido proporcionasse, no prazo de 5 dias, um duplicado das chaves do portão e da fechadura dourada a fim de permitir o acesso ao jardim do prédio.
2ª O Recorrente imputa à douta decisão recorrida o erro de julgamento, uma vez que o Meritíssimo Juiz a quo não fez a aplicação do direito com base na factualidade por si dada por provada, antes desviando-se da realidade factual.
3ª Imputa o Recorrente à decisão recorrida um vício de violação da lei substantiva consistente em erro de interpretação, na medida em que o Meritíssimo Juiz a quo, para decidir, interpretou a norma do art.º 326.º do Código de Processo Civil com um sentido que o respectivo texto não comporta por não ter correspondência com o pensamento legislativo.
4ª O Meritíssimo Juiz a quo não se pronunciou sobre questões de direito que tinha que apreciar, designadamente, sobre o conceito de “lesão grave e dificilmente reparável” a que alude o art.º 326.º do CPC já citado.
5ª Os Requerentes, Autores/Reconvindos na acção principal e ora Recorridos, intentaram a providência cautelar nominada “Restituição Provisória da Posse”, prevista no art.º 338.º do Código de Processo Civil e, subsidiariamente, a providência “Defesa da posse mediante providência não especificada”, nos termos conjugados dos art.ºs 340.º e 326.º do mesmo código.
6ª Porque o Meritíssimo Juiz da causa julgou não estarem reunidos os requisitos para decretar a providência nominada prevista no citado art.º 338.º, foi esta liminarmente indeferida, tendo, porém, admitido, o procedimento cautelar comum para defesa da posse dos Requerentes, ora Recorridos.
7ª O douto Tribunal a quo, a partir desta factualidade, entendeu estarem verificados os requisitos dos procedimentos comuns, quais sejam, (a) adequação da providência à situação de lesão iminente; (b) não existência de providência específica que acautele o direito”; (c) probabilidade séria da existência do direito invocado e (d) fundado receio de outrem, na pendência da acção principal, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito.
8ª Como resulta da lei, tais requisitos têm que ser cumulativos e, no caso, no modesto entendimento do Recorrente, falham dois pressupostos para que a providência tivesse sido decretada: (i) a probabilidade séria do direito invocado e (ii) o fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao direito invocado.
9ª No que se refere ao requisito probabilidade séria da existência do direito invocado, no caso, trata-se de saber se os Requerentes detêm ou detiveram a posse do imóvel, desde 1970 e até ao dia 8 de Janeiro de 2019 - data em que afirmaram ter tomado conhecimento de que fora mudado o portão e o cadeado e, consequentemente, foram desapossados do mesmo -, em circunstâncias tais que tenham o direito a usucapir e, consequentemente, a serem reconhecidos como proprietários do prédio identificado nos autos, como decorre do pedido formulado na petição inicial da acção principal, da qual este procedimento corre por apenso.
10ª Sobre a posse do imóvel que os Requerentes, ora Recorridos, invocam deter desde 1970 - uma situação de facto que está a ser discutida no âmbito da Acção Declarativa, isto é, da acção principal de que este procedimento é um incidente - e até 8 de Janeiro de 2019, em circunstâncias tais que possam vir a usucapir e, consequentemente, o direito a serem reconhecidos como proprietários, não resulta da matéria fáctica assente e provada qualquer facto que permite concluir pela existência da alegada posse por parte do marido e pai dos Requerentes e, muito menos, da alegada posse por parte dos próprios Requerentes.
11ª Os factos dados por provados no sentido de que H (marido e pai dos Requerentes) começou a viver, em 1968, no prédio com a sua família, “em virtude das funções que desempenhava na referida loja”, e “desde 1970, H sempre ter disposto do R/C do Prédio como melhor entendeu; “Ali preparando e tomando refeições”; “Descansando e pernoitando”; “Recebendo correspondência”; “Procedendo ao pagamento das contribuições e impostos inerentes à sua propriedade”, “Pagando todas as despesas relativas ao fornecimento de água e energia do R/C; “Nunca tendo pago rendas por tal utilização do Prédio, nem tais rendas lhes tendo solicitadas por quem quer que fosse” (…) e “Por razões de saúde, H e a Requerente B mudaram-se para Hong Kong, em 2003 e “Contudo, continuaram a manter R/C do Prédio como o da sua casa em Macau”, “Ali ficando periodicamente com a sua família”, não significa que H o tenha feito como proprietário e, sem a demonstração do animus de agir com a intenção de proprietário, cai por terra a usucapião.
12ª O facto de H ter pago as despesas de consumo ordinário de electricidade, água, etc. não é, por si só, revelador do animus aquisitivo, uma vez que a utilização do rés-do-chão do prédio identificado nos autos pelo marido e pai dos Requerentes, ora Recorridos, foi feita na base da relação laboral entre si e o “dono” do imóvel e da autorização por este dada àquele, sendo assim, o mais normal é que a pessoa, que ocupava parcialmente um prédio em tais condições de tolerância, suportasse os correspondentes custos mensais das despesas correntes que o uso dela implicava e aí praticasse os actos quotidianos da vida comum de qualquer pessoa, tais como, “preparar e tomar refeições”, “descansar e pernoitar” e “receber a sua correspondência”.
13ª Tais factos significam que a ocupação pelo marido e pai dos Requerentes (seus familiares próximos) era feita a título de simples detenção e sem o animus possidendi necessário à aquisição originária.
14ª Se nada consta da factualidade apurada pelo douto Tribunal a quo sobre a posse e o animus possi dendi por parte de H, já falecido, nenhum facto consta sobre a posse e o animus possidendi do prédio por parte dos Requerentes da Providência Cautelar, ora Recorridos.
15ª Na fundamentação da douta sentença recorrida, também, não constam factos que provem a alegada posse em termos de terem, primeiro o H e depois os seus herdeiros, o direito a usucapir e, em consequência, serem reconhecidos como proprietários do prédio a que se reportam os autos.
16ª O douto Tribunal a quo, desviando-se da matéria dada por provada, afirmou na sua sentença: “Dos factos indiciariamente provados, verifica-se que a família ###, ora requerentes, já viviam no R/C do prédio há muitos anos, pelo menos, até 2003/2004 e que a partir dessa data os filhos de H deslocavam-se para Macau algumas vezes por ano e, de vez em quando, vigiavam a casa”.
17ª O facto “a partir de 2003/2004, os filhos de H deslocavam-se para Macau algumas vezes por ano e, de vez em quando, vigiavam a casa”, não só não consta da matéria dada por provada, como não pode ser demonstrativo de que os filhos de H detêm ou detiveram a posse do prédio desde 2003/2004 até 8 de Janeiro de 2019, pois por si só, não consubstancia um acto próprio de um proprietário.
18ª O douto Tribunal a quo, ao referir-se à posse que pode determinar o direito a usucapir, faz uma correcta interpretação da lei, pois considera que a posse é integrada por dois elementos: o corpus, que consiste no domínio de facto sobre a coisa, e o animus, que é a intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente aquele domínio de facto, subscrevendo o entendimento unânime de que o corpus traduz-se no exercício de poderes de facto que supõe uma vontade de domínio, de poder jurídico-real e o animus mais não é que essa intenção jurídico-real.
19ª E embora, também, subscreva que a intenção de domínio há-de traduzir-se no próprio modo de actuação ou de utilização da coisa, na fundamentação da sua decisão final, ora em impugnação, o Tribunal a quo refere que são, também, factos demonstrativos da probabilidade séria de que os Requerentes detinham a posse do R/c do prédio, factos que não consubstanciam actos próprios de um proprietário, afirmando, textualmente: “Tudo isso demonstra, pelo menos, nesta sede, indiciariamente que viviam lá a família ###, ora requerentes, no R/C do prédio, e a família @@@, ora requerido, no 1.º andar”.
20ª O facto de determinada família viver num prédio ou numa parte de um prédio não demonstra que detém a posse que determina o direito a usucapir, isto é, o direito de ser reconhecida como proprietária desse prédio ou de “parte” desse prédio.
21ª Não ficou provado que, quer H, primeiro, quer os seus herdeiros, depois, exerceu e exercem a sua posse, relativamente ao prédio identificado nos autos, desde 1970 até hoje (ou pelo menos até terem sido trocadas as fechaduras dos portões, isto é, até 8 de Janeiro de 2019), revestindo aquela posse as características de não titulada, de boa-fé, pacífica e pública, elementos estes que são necessariamente ponderados na apreciação do pedido de usucapião, pelo que não se pode dar por verificado o requisito da “probabilidade séria” do direito invocado pelos Requerentes, razão por que não podia ter sido decretada a providência cautelar.
22ª Importa determinar se os requisitos do procedimento comum se encontram preenchidos e por referência aos factos apurados em sede de audiência de discussão e julgamento, tendo sempre em consideração que faltando qualquer um dos requisitos enunciados, terá de improceder a providência requerida, pelo facto de tais requisitos serem cumulativos e, pese o facto de o Recorrente considerar que não se verifica o requisito da “probabilidade séria do direito”, não pode deixar de se pronunciar sobre a inexistência de um segundo requisito para que uma providência cautelar comum possa ser decretada, qual seja, “o fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao direito invocado”.
23ª Tal como vem sendo decidido por essa Instância Superior, ora Tribunal ad quem, não é toda e qualquer consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva que pode justificar o decretamento de uma medida provisória; apenas as lesões ainda não consumadas ou continuadas que sejam graves e de difícil reparação têm a virtualidade de imporem ao Tribunal, a solicitação do interessado, a tomada de uma decisão que coloque os seus interesses a coberto da previsível lesão.
24ª No caso dos autos, constata-se que não se verifica o requisito do “'periculum mora”, porque, tal como afirma o Meritíssimo Juiz a quo, “(...) O motivo que levou os requerentes a pedir a presente providencia cautelar - a restituição da posse - foi porque alguém mudou a fechadura do portão principal, impedindo os requerentes de entrar para, pelo menos, o R/C do prédio”, de onde decorre que os Requerentes fundaram o seu receio (de que o seu direito fosse lesado de forma grave e dificilmente reparável ou mesmo irreparável) na impossibilidade de utilizar o prédio enquanto não for decidida a acção principal.
25ª Da matéria de facto provada, não poderá, minimamente, concluir-se que os prejuízos dos requerentes, que decorrem da privação temporária do R/c do prédio não possam ser reparados, ou só dificilmente o possam ser, pelo mecanismo da responsabilidade civil e no que se refere ao “perigo de lesão grave e de difícil reparação”, apenas, consta da factualidade dada por provada um facto: “Em virtude da colocação do novo cadeado, os Requerentes estão impossibilitados de aceder ao Prédio”.
26ª O douto Tribunal a quo, fazendo descaso absoluto da natureza das lesões que justificam a intervenção judicial, decidiu, de forma simples, considerando que o facto de os Requerentes estarem impedidos de ter acesso ao R/c do prédio identificado nos autos até à prolação da sentença na acção principal - que, curiosamente, já se encontra numa fase muito avançada, tenho já sido explicitado o despacho saneador - consubstancia uma lesão grave.
27ª Os Requerentes nada alegaram quanto ao prejuízo que poderiam sofrer, se se mantivessem na situação de impedidos de aceder ao prédio ou, pelo menos ao R/c do prédio, como afirma o Meritíssimo Juiz a quo, até à prolação da sentença na acção principal, nem a sua quantificação, menos ainda quanto à dificuldade em obter a sua reparação; obviamente, na ausência da alegação de factos, o douto Tribunal a quo não deu por provados factos relativos a este requisito, impondo-se concluir pela inverificação do requisito de lesões graves e irreparáveis ou dificilmente reparáveis e, consequentemente, a providência cautelar requerida pelos Requerentes, ora Recorridos, não pode deixar de ser julgada improcedente, por falta de verificação da condição de “periculum in mora”.
28ª Pese o facto de não poder ser mantida a douta Sentença recorrida por não estarem verificados dois dos requisitos para o decretamento da providência cautelar comum, tem o Recorrente legitimidade para crer que a única forma de os Requerentes poderem provar o exercício da posse no âmbito da acção principal foi lançar mão a uma providência cautelar, começando por invocar o esbulho para obter a restituição da posse, mas, desde logo, apresentando subsidiariamente o procedimento cautelar comum, pois, desde 2003, data em que o marido e pai dos Requerentes, H, transferiu a sua morada para Hong Kong, não mais voltou a Macau e os seus familiares nunca exerceram a posse do edifício.
29ª Conforme se verifica dos factos dados por provados, nesta sede, os Requerentes, ora Recorridos, não exerceram a posse do prédio, a qualquer título, após 2003, data em que H, marido e pai dos mesmos, transferiu a sua morada para Hong Kong, certo sendo que este apenas fora mero detentor de uma parte do prédio identificado nos autos, pelo que lançaram mão a esta providência cautelar.
30ª Ao ser decretada a providência cautelar, os Requerentes, depois de terem a chave de acesso ao rés-do-chão, apressaram-se a iniciar obras de remodelação no prédio, actos que nunca foram praticados, causando estranheza que durante 15 anos se tenham limitado a “vigiar” a casa, nas deslocações feitas a Macau e quando está em discussão a titularidade da posse numa acção principal - que, como se disse, está numa fase adiantada pois já terminou a fase dos articulados e foi explicitado o despacho saneador -, os Requerentes começaram obras para que possam ser consideradas como um acto próprio de proprietários.
Contra-alegando vieram os Requerentes, ora Recorridos, apresentar as seguintes conclusões:
A. A douta sentença recorrida julgou parcialmente procedente a restituição da posse do prédio urbano situado na Rua ......, n.º ..., em Macau aos Requerentes ora Recorridos;
B. O Recorrente imputa dois vícios à douta sentença recorrida, assim fixando o objecto do presente recurso. São eles (i) erro de julgamento e (ii) vício de violação da lei;
C. Alega o Recorrente que a sentença recorrida padece do erro de julgamento, na medida em que não se encontrava verificada a probabilidade séria do direito invocado.
D. Contrariamente ao que se sustenta nas alegações do Recorrente, encontra-se plenamente provado, pelo menos de uma forma sumária - que é o que é exigido na providência cautelar -, o pressuposto do fumus boni iuris.
E. No que concerne ao requisito de fumus boni iuris, atentos os factos indiciários que vieram a ser provar-se nos presentes autos, verifica-se, desde logo, que se mostra provada a existência de posse por parte dos Recorridos da providência relativamente ao imóvel objecto da mesma;
F. De resto, sempre se dirá que o decretamento de providência depende apenas da prova sumária do direto ameaçado, não exigindo esta prova o mesmo grau de convicção que a prova dos fundamentos da acção impõe;
G. Em segundo lugar, refere ainda o Recorrente nas suas alegações que não se encontrava verificado o pressuposto relativamente ao periculum in mora;
H. Sucede que, ao contrário do alegado pelo Recorrente, encontra-se quer alegado quer provado, pelo menos de uma forma sumária - que é o que é exigido na providência cautelar -, o pressuposto de periculum in mora;
I. Com efeito, por um lado, os Recorridos trouxeram ao conhecimento do tribunal os factos que justificavam o seu receio de que, se a presente providência fosse recusada, se tornaria depois impossível, no caso de o processo principal vir a ser julgado procedente, proceder a uma eficaz e plena reparação dos danos;
J. Por outro lado, os factos acima mencionados se consideram provados pelo Tribunal a quo, o qual se pronunciou sobre eles, e tendo julgado os mesmos factos provados;
K. Acresce que, in casu, não existe qualquer dúvida sobre a inverificação do requisito de natureza negativa ou facto impeditivo previsto no artigo 332.º, n.º 2, do CPC;
L. Como refere a decisão recorrida, os Recorridos encontravam-se impedidos de exercer a posse do Prédio;
M. A limitação do acesso dos Recorridos ao Prédio em causa reconduz-se ou concretiza uma situação de grave violação da posse dos Recorridos, geradora de graves e incontornáveis prejuízos materiais e morais para os mesmos, os quais que são irreparáveis, na sua plenitude, como sucede com a privação do pleno gozo e fruição do Prédio, nos termos em que desde sempre o vinham a fazer;
N. Da materialidade provada, apenas se constata que o Recorrente “apenas entrava no R/C pela escada interior para fazer a leitura do contador de electricidade”;
O. Dúvidas não restam de que, consistindo numa privação ou limitação do gozo e fruição do prédio da sua posse, que, a não ser decretada a providência, poderia arrastar-se por vários anos, sem que os Recorridos pudessem gozar e usufruir de modo pleno do Prédio, provocando, assim, avultadíssimos prejuízos, se está na presença de danos de difícil reparação ou até mesmo irreparáveis, na sua plenitude, razão pela qual se deve entender resultar também verificado este pressuposto necessário ao decretamento da providência em questão;
P. Tendo em consideração, por um lado, que se não demonstrou qualquer factualidade passível de integrar a verificação do requisito de natureza negativa ou facto impeditivo, previsto no artigo 332, n.º 2, do CPC, e, por outro que, como resulta do exposto, resultaram verificados todos os demais pressupostos, o Tribunal a quo andou bem ao julgar procedente a providência requerida pelos Recorridos;
Q. Pelo exposto, a sentença recorrida não padece do vício de violação de lei por erro de julgamento, devendo ser integralmente mantida a decisão recorrida.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos Factos
Na decisão sob recurso foi dada por assente a seguinte factualidade:
1) Na Rua ......, n.º ..., em Macau, situa-se um prédio urbano composto por dois andares, o qual se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º 1****, a fls. 99 do Livro B31.
2) O Prédio foi desanexado do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º ****4, a fls. 153 vº do Livro B29.
3) Por sua vez, o prédio descrito sob o n.º ****4 foi desanexado do prédio descrito na mesma Conservatória sob o n.º ****9, a fls. 120 do Livro B29.
4) O domínio directo sobre o Prédio encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Predial de Macau a favor do Território de Macau, conforme inscrição n.º 2***, a fls. 187 do Livro F3.
5) Tal inscrição foi requerida por I, que para o efeito apresentou um requerimento no dia 8 de Maio de 1928, no qual pode ler-se o seguinte:
“I, maior, casado, empreiteiro, residente em Macau, tendo aforado à Fazenda Nacional, conforme o alvará junto, um terreno com a área de 2.177 m2,86 situado na antiga Colina ......, com as confrontações constantes do mesmo alvará, requer a V. Exa. se digne descrever primeiramente o referido terreno e inscrever a favor de Fazendo Nacional o domínio directo e em favor do Supte. o domínio útil.”
6) A inscrição n.º 2*** foi lavrada pelo Conservador do Registo Predial, que na mesma fez constar o seguinte:
“Inscrevo a favor de Fazenda Nacional o domínio directo do terreno descrito sob o n.º ****9 a fls. 120 do Livro B29, por a mesma Fazenda Nacional o haver sido concedido, em aforamento, a I, casado, empreiteiro, residente em Macau, mediante o foro anual de $43,56.”
7) O domínio útil sobre o Prédio encontrava-se inscrito a favor do Senhor I, conforme inscrição n.º ***6, a fls. 187 do Livro F3, onde se pode ler o seguinte:
“Inscrevo a favor de I, maior, casado, empreiteiro, residente em Macau, o domínio útil do terreno descrito sob o n.º ****9 a fls. 120 do Livro B29, por a Fazenda Nacional o haver sido concedido, em aforamento, mediante o foro anual de $43,56.”
8) Posteriormente, ocorreram diversas transmissões da titularidade do domínio útil do Prédio.
9) O titular inscrito do domínio útil do prédio dos autos é J, conforme inscrição n.º **3**, a fls. 13 do Livro G20, e inscrição n.º **7**, a fls. 76v do Livro G20.
10) O titular inscrito do domínio útil do Prédio, J, era empregado da sociedade XX煙公司, com sede em Guangzhou.
11) H, marido e pai dos Requerentes, era, nos anos 70, gerente da loja da Tabaqueria Filipina em Macau, sita na Avenida ......, n.º ...-....
12) Em virtude das funções que desempenhava na referida loja, em 1968 H começou a viver no Prédio com a sua família, os Requerentes.
13) Nos finais dos ano 60, H e os Requerentes se mudaram para o R/C do Prédio.
14) Desde 1970, H sempre dispôs do R/C do Prédio como melhor entendeu.
15) Ali preparando e tomando refeições.
16) Descansando e pernoitando.
17) Recebendo correspondência.
18) Procedendo ao pagamento das contribuições e impostos inerentes à sua propriedade.
19) Pagando todas as despesas relativas ao fornecimento de água e energia do R/C.
20) Nunca tendo pago rendas por tal utilização do Prédio, nem tais rendas lhes tendo sido solicitadas por quem quer que fosse.
21) A era parente de um membro da gerência da sociedade YY煙草公司, de Xangai, cidade em que a tal sociedade e a XX煙公司 mantinham uma relação de negócios.
22) Nos finais de 1980, A começou a trabalhar na loja da Tabaqueria Filipina em Macau, sob a supervisão de H.
23) A partir do final de 1980, A começou a viver no 1.º andar do Prédio.
24) Em 1981 vieram a esposa de A e o seu filho, passando a família @@@ a viver no 1.º andar do Prédio.
25) A permaneceu no 1.º andar do Prédio até 2002.
26) A partir de 2002, A continuou a usar o 1.º andar do Prédio como seu endereço de correspondência desde essa data.
27) Por razões de saúde, H e a Requerente B mudaram-se para Hong Kong em 2003.
28) Contudo, continuaram a manter o R/C do Prédio como a sua casa em Macau.
29) Ali ficando periodicamente com a sua família.
30) H faleceu em 2 de Dezembro de 2013, no estado de casado com a Requerente B.
31) Do casamento entre H e a Requerente B nasceram quatro filhos: os Requerentes C, D, F e G.
32) Em 19 de Dezembro de 2018, os Requerentes tomaram conhecimento de que o portão de entrada do Prédio, que se encontrava sempre fechado, tinha sido removido do respectivo local.
33) Tendo as dobradiças do referido portão sido destruídas.
34) Os Requerentes não deram qualquer tipo de autorização ou consentimento a qualquer pessoa ou entidade para remover o portão de entrada do Prédio.
35) As dobradiças do portão em causa tinham sido removidas por ordem do Sr. K.
36) Em 12 de Dezembro de 2018, a empresa Ferragens ZZ removeu, a fechadura do Prédio.
37) Em 27 de Dezembro de 2018, os Requerentes solicitaram à empresa “WW工程” para instalar um novo portão no Prédio.
38) No mesmo dia, os Requerentes mandaram colocar no novo portão e na entrada do Prédio dois avisos com o teor que consta de fls. 38 do Doc. n.º 1 que ora se junta e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
39) Quando foi instalado em 27 de Dezembro de 2018, por ordem dos Requerentes, o novo portão do Prédio tinha uma fechadura e um cadeado prateado.
40) Em 8 de Janeiro de 2019, os Requerentes tomaram conhecimento de que a fechadura do novo portão do Prédio tinha sido arrombada.
41) O cadeado que fechava no trinco do portão tinha sido removido e substituído por um cadeado dourado.
42) Os Requerentes não deram qualquer tipo de autorização ou consentimento a qualquer pessoa ou entidade para colocar tal novo cadeado no portão do Prédio.
43) Em virtude da colocação do novo cadeado, os Requerentes estão impossibilitados de aceder ao Prédio.
44) Existe um motociclo estacionado no interior do pátio do Prédio.
45) Foi instalada uma câmara de vigilância no primeiro piso do Prédio.
b) Do Direito
Nas suas alegações e conclusões de recurso imputa o Recorrente à decisão recorrida o vício de erro de julgamento porquanto concluiu pela probabilidade séria da existência do direito sem que se tenha demonstrado o animus de agir de H (marido e pai dos Requerentes, ora Recorridos) nem o destes (dos Recorridos) – conclusões 2 a 21 - e por não estar demonstrada a lesão grave e de difícil reparação – conclusões 22 a 30 -.
Vejamos então.
Relativamente ao exercício da posse os factos apurados constam de 1) a 31).
Da descrição daqueles factos constam os relativos ao histórico do imóvel em termos de Registo Predial e os que respeitam ao “corpus”, isto é, os actos materiais em que consiste o domínio da coisa e de onde resulta a apreensão física do imóvel e o uso que dele é feito.
Contudo, e como se refere na decisão sob recurso e alegações de recurso a posse é composta por dois elementos – o corpus e o animus -.
O “animus”1 consiste na intenção com que se exerce o poder de facto e que na letra do artº 1175º do C.Civ. corresponde ao exercício do direito real relativamente ao qual se possui.
A prova do animus em termos de factos é normalmente traduzida na frase em que se reconduz a actuação material exercida à intenção de ser de acordo com o direito real correspondente, isto é, o que tudo fazia como se dono da coisa fosse (embora haja também quem use como se fosse o proprietário), ou como se fosse o titular do domínio útil, ou o usufrutuário, etc..
No requerimento inicial da providência cautelar sobre a intenção versam os artigos 25º, 27º a 31º, 39º, 50º, 51º, 79º, 80º, 88º e 89º.
Ora, na decisão sob recurso conclui-se pela posse dos Requerentes sobre o R/c do prédio a que se reportam os autos sem que nada se diga quanto ao “animus”, isto é, sem que se tenha provado facto algum quanto à intenção com base na qual (o direito real) se exercem os factos materiais.
Ou seja, embora se reconheça que a posse é constituída pelo “corpus” e pelo “animus”, nada se dizendo quanto a este conclui-se pela existência da posse.
Nesta parte assiste razão ao Recorrente quando alega que sem se saber a intenção com que se praticam os factos materiais de apreensão da coisa, não sabemos se os Requerentes têm a posse ou se são meros detentores da coisa.
No entanto os factos relativos ao animus foram alegados.
É certo que se fala como dono/proprietário quando o prédio a que se reportam os autos é um “prazo”, um prédio sujeito ao regime enfitêutico, pertencendo o domínio directo à RAEM e o domínio útil a um particular. Mas esta questão pode ser resolvida por um convite a um aperfeiçoamento ou esclarecimento.
Na decisão sob recurso apenas se indicam discriminadamente quais os factos provados, não se discriminando os factos não provados, fazendo-se apenas uma referência de que os demais factos do requerimento inicial não se provaram.
Porém, nada se dizendo em sede de factos quanto à intenção/animus e concluindo-se pela existência de posse e consequentemente pela probabilidade séria do direito, enferma a decisão sob recurso de contradição, impondo-se que se esclareça se os factos alegados quanto ao “animus” se provaram ou não.
Assim sendo, nos termos do nº 4 do artº 629º do CPC impõe-se anular a decisão da 1ª instância quanto à matéria dos artigos 25º, 27º a 31º, 39º, 50º, 51º, 79º, 80º, 88º e 89º do requerimento inicial a qual deve ser substituída por outra onde se pronunciar no sentido de estes se terem provado ou não, decidindo-se depois em conformidade.
Relativamente ao segundo argumento do recurso – não estar demonstrado a lesão grave e de difícil reparação do direito – sendo este elemento de apreciação posterior à existência daquele outro para cuja apreciação agora se ordena a baixa dos autos à primeira instância e não resultando evidente que também aqui houve omissão ou contradição na apreciação da prova, sem prejuízo do que de futuro vier a ser decidido em primeira instância, fica prejudicada a apreciação desta questão.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide-se anular a decisão recorrida ordenando a remessa dos autos à primeira instância para apreciação da matéria de facto constante dos artigos 25º, 27º a 31º, 39º, 50º, 51º, 79º, 80º, 88º e 89º do requerimento inicial e subsequente decisão em conformidade com o que vier a ser apurado.
Custas a final pela parte vencida.
Registe e Notifique.
RAEM, 10 de Setembro de 2020
Relator
Rui Carlos dos Santos Pereira Ribeiro
Primeiro Juiz-Adjunto
Lai Kin Hong
Segundo Juiz-Adjunto
Fong Man Chong
1Veja-se José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais pág. 90 a 94, Coimbra Editora, 1987.
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729/2020 CÍVEL 1