Processo n.º 716/2019 Data do acórdão: 2020-9-10 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– regras da experiência da vida humana
– reenvio do processo para novo julgamento
S U M Á R I O
Há que reenviar o processo para novo julgamento por vício de erro notório na apreciação da prova, quando o resultado do julgamento dos factos feito pelo tribunal recorrido violou as regras da experiência da vida humana.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 716/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida a fls. 148 a 152 do Processo Comum Singular n.º CR5-18-0354-PCS do 5.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), que o condenou como autor material de um crime tentado de furto, p. e p. pelos art.os 197.o, n.os 1 e 2, e 21.o e 22.o do Código Penal, na pena de três meses de prisão, suspensa na execução por um ano e seis meses, veio o arguido A, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, na motivação apresentada a fls. 157 a 164 dos presentes autos correspondentes, que essa decisão recorrida padecia do vício de erro notório na apreciação da prova, aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), para rogar a sua absolvição penal, porquanto, em suma, só com base nos depoimentos das testemunhas, no objecto apreendido, nos documentos constantes dos autos, e no conteúdo da gravação visual, não se poderia dar por suficientemente provado o intuito de apropriação das fichas de jogo em causa.
Ao recurso, respondeu o Digno Delegado do Procurador a fls. 166 a 167v dos autos, no sentido de improcedência da argumentação do recorrente.
Subidos os autos, a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, emitiu parecer a fls. 179 a 180, pugnando pela improcedência do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que a sentença ora recorrida ficou proferida a fls. 148 a 152, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, apreciando:
Ao invocar unicamente o vício de erro notório na apreciação da prova, defende o recorrente que não agiu com o intuito de furtar as fichas de jogo em causa nos autos.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as regras da experiência.
Para o presente Tribunal ad quem, das fotografias extraídas da gravação visual referida na fundamentação probatória da sentença recorrida, com legenda detalhada feita pelo pessoal investigador da Polícia Judiciária, a que se referem as fls. 36 a 37 dos autos, vê-se com nitidez que o recorrente estava em discussão com outrem (cfr. a fotografia 1), e estendeu, à vista de diversas pessoas à volta da mesa de jogo em questão, a sua mão às fichas de jogo em causa (cfr. a fotografia 2), e depois de retirar as fichas de jogo para si, não as quis devolver à mesa (cfr. a fotografia 3).
Por outro lado, dos depoimentos das testemunhas referidos na mesma fundamentação probatória da sentença, sabe-se que houve discussão entre vários jogadores da mesa de jogo em questão com a pessoa croupier da mesma mesa, por causa da maneira, tida por aqueles como não adequada, de distribuição de cartas de jogo.
Assim, em face do conteúdo da gravação visual em causa, através do qual se vê o modo como foram retiradas pelo recorrente as fichas de jogo em questão, e atendendo ao facto provado 2 (alusivo à já feitura da queixa pelo recorrente, então em estado emocional exaltado, sobre o modo de distribuição de cartas de jogo pela pessoa croupier daquela mesa de jogo) e ao facto provado 1 (segundo o qual as fichas de jogo retiradas pelo recorrente foram previamente por ele colocadas na mesa de jogo para fins de aposta no jogo), as regras da experiência da vida humana em normalidade de situações ditam que ao retirar tais fichas de jogo, à vista de toda a gente à volta da mesma mesa, o recorrente não tenha estado a querer furtar as mesmas, mas sim a manifestar o seu inconformismo, daí que há que reenviar, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 2, do CPP, o processo para novo julgamento no Tribunal Judicial de Base, para, por um Tribunal Colectivo, serem julgados, de novo, os factos acusados 4, 6 e 7 (referentes à forma de subtracção das fichas de jogo pelo recorrente, e aos elementos constitutivos do dolo dele de furtar as fichas de jogo).
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso, reenviando o processo para novo julgamento por um Tribunal Colectivo, mas apenas em relação aos factos acusados 4, 6 e 7, cabendo a esse Tribunal, em função do resultado desse julgamento e dos factos provados 1 a 3 e 5 já descritos na sentença ora recorrida, decidir do mérito da acusação pública.
Sem custas no presente recurso, fixando em duas mil e oitocentas patacas de honorários do Ex.mo Defensor Oficioso do recorrente, a serem pagos pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 10 de Setembro de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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