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Processo nº 155/2020
(Autos de Recurso Cível e Laboral)

Data do Acórdão: 17 de Setembro de 2020

ASSUNTO:
- Inventário
- Força obrigatória do caso julgado
- Deserção da Instância
- Regime de casamento dos Chineses de Macau instituído em 1909

SUMÁRIO:
- Decidindo-se em processo de inventário sobre a natureza comum ou própria de determinados bens relativamente ao casamento dissolvido por óbito do “de cujus” e transitando em julgado essa decisão, a mesma tem força obrigatória dentro e fora do processo nos termos do artº 574º do CPC, ainda que posteriormente a instância onde foi proferida venha a extinguir-se por deserção;
- O Decreto de 17.06.1909 publicado no Boletim Oficial do Governo da Província de Macau de 31.07.1909 instituía o Código dos Usos e Costumes dos Chineses de Macau que não fossem católicos estabelecendo a validade do casamento celebrado segundo os seus usos e costumes e regras quanto à disposição e titularidade dos bens;
- O Decreto nº 36987 de 24.07.1948, com base na alteração legislativa ocorrida na China que reconheceu a igualdade de tratamento entre homens e mulheres, manda aplicar aos Chineses naturais de Macau que não forem Portugueses as leis civis Chineses em tudo o que se refere a direitos de família e sucessórios;
- A Portaria nº 22869 que torna extensível a Macau o Código Civil Português de 1966, no seu artº 12º manda aplicar aos casamentos celebrados antes da entrada em vigor do diploma, as regras relativas as efeitos do casamento quanto às pessoas e bens dos cônjuges, contidas nos artº 1671º a 1697º do código;
- As regras quanto à titularidade, administração e disposição dos bens consagradas no Código dos Usos e Costumes Chineses de 1909 aplicáveis aos casamentos celebrados durante a vigência deste diploma vêm a ser sucessivamente alteradas pelos diplomas que lhe sucederam e em função do princípio da igualdade dos cônjuges.

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Rui Pereira Ribeiro

Processo nº 155/2020
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 17 de Setembro de 2020
Recorrentes: A, B e C
Recorrido: D
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO

Nos autos de inventário para partilha das heranças abertas por óbito de K e XXX, em que são interessados A, B, C, D, E, F e G, foi proferido despacho a decidir que determinados bens imóveis eram bens próprios do 1º inventariado ou da 2ª inventariada, com o qual não se conformaram H, B e C, interpondo recurso do mesmo.
Para o efeito H apresentou as seguintes conclusões:
1. O 1º autor da herança e a 2ª autora da herança casaram-se em 1942 segundo os usos e costumes chineses. Quanto ao regime de bens do casamento, as leis vigentes em Macau em 1942 eram o “Código Civil Português” de 1867 que foi ordenado em 18 de Novembro de 1869 a ser aplicado em Macau e o “Código dos Usos e Costumes dos Chineses de Macau” de 1909 promulgado em 17 de Junho de 1909 e aplicado em Macau de então altura.
2. O Decreto de 18 de Novembro de 1869, no seu arto 8º, 1º que estendia o Código Civil Português de 1867 ao Ultramar, ressalva “(2) em Macau, os usos e costumes dos chineses nas causas da competência do procurador dos negócios sínicos”, pelo que, o “Código Civil Português” de 1867 não se aplicava aos chineses, o 1º autor da herança e a 2ª autora da herança eram também chineses e residiam em Macau, não sendo católicos, por isso, não era aplicável o “Código Civil Português” de 1867.
3. Em 1942, isto é, altura em que o 1º autor da herança e a 2ª autora da herança casaram-se segundo os usos e costumes chineses, o “Código dos Usos e Costumes dos Chineses de Macau” de 1909 era lei vigente em Macau. O “Código Civil Português” de 1867 não impedia o efeito jurídico do “Código dos Usos e Costumes dos Chineses de Macau” de 1909, ambos coexistiam, cada um tinha alvos aplicáveis diferentes, isso estava preenchido a política da dualidade do direito e das jurisdições utilizada por Portugal ao império colonial português.
4. Na altura em que o 1o autor da herança e a 2ª autora da herança se casaram, quer antes, quer depois do casamento não celebraram convenção antenupcial, pelo que, o seu regime de bens foi confirmado no momento de casamento, ou seja, antes de 1948, e, o Decreto no 36987 de 1948 admitia também o facto ocorrido nos termos do “Código dos Usos e Costumes dos Chineses de Macau”, portanto, o regime de bens do casamento deles gerido nos termos do “Código dos Usos e Costumes dos Chineses de Macau” continuou a ser válido.
5. O artigo 13º da Portaria no 22869 que tornou o “Código Civil Português” de 1966 extensivo a Macau era igual ao artigo 15º do Decreto no 47344 de 25 de Novembro de 1966 que aprovou o “Código Civil Português” de 1966, estabeleceram-se normas transitórias especializadas sobre o regime de bens do casamento, de acordo com essas normas, excepto o no 2 do artigo 1739º do “Código Civil Português” de 1966, as novas normas do regime de bens do casamento aludidas nos artigos 1717º a 1752º do “Código Civil Português” de 1966 não eram aplicáveis ao casamento celebrado em Macau antes de 31 de Dezembro de 1967, como o 1º autor da herança e a 2ª autora da herança casaram-se em 1942 segundo os usos e costumes chineses, não era aplicável o regime de bens do casamento estipulado no “Código Civil Português” de 1966, o regime de bens do casamento do 1º autor da herança e da 2ª autora inerente ao regime de bens do casamento do “Código dos Usos e Costumes dos Chineses de Macau” continuou a ressalvar até à dissolução do casamento quando faleceu o 1º autor da herança em 1989.
6. Face ao exposto, o regime de bens do casamento do 1º autor da herança e da 2ª autora da herança só podia ser o regime regulado pelos artigos 3º a 5º do “Código dos Usos e Costumes dos Chineses de Macau”.
7. Em relação aos imóveis “JR/C”, “KR/C”, “LR/C”, “OR/C”, “D1R/C”, D2R/C e “G2” adquiridos pela 2ª autora da herança após o casamento, de acordo com os artigos 3º a 5º do “Código dos Usos e Costumes dos Chineses de Macau” de 1909, pertenciam totalmente ao marido, ou seja, ao 1º autor da herança, uma vez que esses imóveis não eram os bens imóveis dotais (levados no momento do casamento), também não foram dados pelo pai da 2ª autora da herança como dote, também não foram adquiridos pela 2ª autora da herança antes do casamento, mas, sim, adquiridos após a casamento.
8. A decisão recorrida, por um lado, concordou com o ponto de vista do recorrente, “(…) determina rectificar nas declarações da cabeça-de-casal o regime de bens do casamento dos dois autores da herança para o regime de bens supletivo da lei da China.” (vide fls. 429 dos autos), por outro lado, ordenou enumerar os imóveis “JR/C”, “KR/C”, “LR/C”, “OR/C”, “D1R/C”, “D2R/C” e “G2” adquiridos, após o casamento, pela 2ª. autora da herança, na relação de bens da 2ª autora da herança, como bens próprios seus, havendo evidentemente contradições, aliás, violou os artigos 3º a 5º do “Código dos Usos e Costumes dos Chineses de Macau” de 1909, artigos 3º a 5º do Decreto no 36987 de 24 de Julho de 1948, artigo 13º da Portaria nº 22869 e artigo 15º do Decreto no 47344 de 25 de Novembro de 1966 que aprovou o “Código Civil Português” de 1966, devendo ser cancelada, e deve ser alterada para: enumerar os imóveis “JR/C”, “KR/C”, “LR/C”, “OR/C”, “D1R/C”, “D2R/C” e “G2” adquiridos, após o casamento, pela 2ª. autora da herança, na relação de bens do 1º autor da herança, como bens próprios seus.
9. Caso o Juiz assim não se entenda (trata-se simplesmente de uma hipótese, isso não significa que o recorrente concorde com isso), o recorrente entende também, com base na seguinte alegação, que a decisão recorrida deve ser cancelada.
10. Nos termos do artigo 3º do “Código dos Usos e Costumes dos Chineses de Macau”, excepto os bens imóveis dotais (artigo 1º), os bens próprios da mulher eram apenas os bens denominados “Tai Ki”, todos os mais bens são considerados próprios do marido (artigos 2º e 3º).
11. Em conjugação com os nos 2 e 4 do artigo 3º do “Código dos Usos e Costumes dos Chineses de Macau” de 1909, o “Tai Ki” da 2ª autora da herança apenas pode incluir os seguintes bens: (i) No momento de a 2ª autora da herança se casar, as jóias e vestuários que a 2ª autora da herança levava ou dados pelo pai em dote do casamento; (ii) Os bens adquiridos pela 2ª autora da herança antes do casamento.
12. Os imóveis “JR/C”, “KR/C”, “LR/C”, “OR/C” foram adquiridos em 1982 pela 2ª autora da herança; os imóveis “D1R/C” e “D2R/C” foram adquiridos em 1973 pela 2ª autora da herança; o imóvel “G2” foi adquirido em 1971 pela 2ª autora da herança, no entanto, o 1º autor da herança e a 2ª autora da herança casaram-se em 1942, por outras palavras, os supracitados imóveis foram também adquiridos pela 2ª autora da herança após o casamento, nos termos dos nos 2 e 4 do artigo 3º do “Código dos Usos e Costumes dos Chineses de Macau” de 1909, não faziam parte dos bens “Tai Ki” da 2ª autora da herança, nos termos do no 3 do artigo 3º do “Código dos Usos e Costumes dos Chineses de Macau” de 1909, tratava-se de bens próprios do 1º autor da herança, devendo ser enumerados na relação de bens do 1º autor da herança.
13. A decisão recorrida ordenou enumerar os imóveis “JR/C”, “KR/C”, “LR/C”, “OR/C”, “D1R/C”, “D2R/C” e “G2” adquiridos, após o casamento, pela 2ª autora da herança, na relação de bens da 2ª autora da herança, como bens próprios seus, violou os nos 2 a 4 do artigo 3º do “Código dos Usos e Costumes dos Chineses de Macau”, artigos 3º a 5º do Decreto no 36987 de 24 de Julho de 1948, artigo 13º da Portaria no 22869 e artigo 15º do Decreto no 47344 de 25 de Novembro de 1966 que aprovou o “Código Civil Português” de 1966, devendo ser cancelada, e deve ser alterada para: enumerar os imóveis “JR/C”, “KR/C”, “LR/C”, “OR/C”, “D1R/C”, “D2R/C” e “G2” adquiridos, após o casamento, pela 2ª autora da herança, na relação de bens do 1º autor da herança, como bens próprios seus.
14. Caso o Juiz assim não se entenda (trata-se simplesmente de uma hipótese, isso não significa que o recorrente concorde com isso), o recorrente entende também, com base na seguinte alegação, que a decisão recorrida deve ser cancelada.
15. O 1º autor da herança participou na assinatura das supracitadas escrituras públicas de compra e venda respectivamente em 1971, 1973 e 1982. Porém, como a questão de cerne indicada na decisão recorrida: com o consentimento do 1º autor da herança, vale ou não para atribuir aos supracitados imóveis a natureza de “si ki” ou “bens próprios” da 2ª autora da herança?
16. Quanto à questão de que, logo que o regime de bens seja confirmado, poderá ou não, na constância matrimonial, ser alterado através do acordo do casal, o artigo 1105º do “Código Civil Português” de 1867 e o artigo 1714º do “Código Civil Português” de 1966 estipularam também o princípio da imutabilidade do regime dos bens.
17. Salvo quando a lei o permite, desde o momento da celebração do casamento, o âmbito aplicável do princípio da imutabilidade referente ao regime de bens do casamento é muito abrangente, não só o regime de bens convencionado pelos esposos, mas também o regime supletivo, bem como a natureza do regime de bens do casamento específico. As situações da alteração ao regime de bens do casamento permitida por lei são muito poucas, a situação do 1º autor da herança e da 2ª autora da herança não pertencia a esta.
18. O “Código Civil Português” de 1966 estipulou o princípio da imutabilidade do regime de bens do casamento tão rigoroso visava proteger terceiros e as famílias dos nubentes, para além de cônjuges vulneráveis.
19. Pelo que, não podendo desprezar o regime de bens do casamento do 1º autor da herança e da 2ª autora da herança, apenas dependente do consentimento do 1o autor da herança, e ou assim dizer, apenas dependente da vontade do 1º autor da herança e da 2ª autora da herança, poderia definir os supracitados imóveis “JR/C”, “KR/C”, “LR/C”, “OR/C”, “D1R/C”, D2R/C e “G2” como “Tai Ki” ou “bens próprios” da 2ª autora da herança, esses imóveis eram ou não “Tai Ki” ou “bens próprios” da 2ª autora da herança, deveriam ser dispostos segundo o regime de bens do casamento do 1º autor da herança e da 2ª autora da herança aludido nos nos 2 e 4 do artigo 3º do “Código dos Usos e Costumes dos Chineses de Macau” de 1909. O consentimento do 1º autor da herença não alterou nem podia alterar o efeito do regime de bens do casamento do 1º autor da herança e da 2ª autora da herança.
20. Nos termos dos nos 2 e 4 do artigo 3º do “Código dos Usos e Costumes dos Chineses de Macau” de 1909, evidentemente, os supracitados imóveis adquiridos pela 2ª autora da herança após o casamento não faziam parte do âmbito dos bens “si ki” indicado no “Código dos Usos e Costumes dos Chineses de Macau” de 1909. A decisão recorrida que determinou esses imóveis serem os bens próprios da 2ª autora da herança, violou o artigo 1714º do “Código Civil Português” de 1966, devendo ser cancelada.
21. Caso o Juiz assim não se entenda (trata-se simplesmente de uma hipótese, isso não significa que o recorrente concorde com isso), o recorrente entende também, com base na seguinte alegação, que a decisão recorrida deve ser cancelada.
22. Apenas dependente da declaração da 2ª autora da herança na supracitada escritura pública sobre que o dinheiro para adquirir tais imóveis era o “si ki”, não podia justificar suficientemente que o dinheiro para pagar o preço dos supracitados 7 imóveis era o “si ki”.
23. Sinceramente, a escritura pública tem plena força probatória, isso não significa que qualquer conteúdo contido da escritura pública também possa ter a plena força probatória e que também não possa ser ilidido através de apresentação da prova. Neste processo, o facto de a 2ª autora da herança declarar ter adquirido os supracitados imóveis com o dinheiro “si ki”, nos termos do artigo 365º do “Código Civil” de 1999 (correspondente ao artigo 371º do “Código Civil” de 1966), pode ser ilidido através de apresentação da prova.
24. O dinheiro para pagar o preço dos supracitados sete imóveis era ou não o “si ki” da 2ª autora da herança não é um facto totalmente não impugnável, não podendo ser considerado justificado pelas respectivas escrituras públicas, o Juiz da decisão recorrida devia, nos termos do no 2 do artigo 981º e no 3 do artigo 986º do Código de Processo Civil, oficiosamente ordenar efectuar as diligências probatórias necessárias a fim de verificar a verdade dos factos, todavia, o Juiz da decisão recorrida não ordenou quaisquer diligências probatórias, fazendo com que os factos fossem julgados como factos provados, violou as disposições do artigo 365º do “Código Civil” de 1999 (correspondente ao artigo 371º do “Código Civil Português” de 1966) e no 2 do artigo 981º e no 3 do artigo 986º do Código de Processo Civil, devendo ser cancelada.
Para o efeito B e C apresentaram as seguintes conclusões:
a. O Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base (Tribunal “a quo”) proferiu em 02 de Julho de 2019 na CONCLUSÃO o seguinte despacho: 1) O regime de bens do casamento dos dois autores da herança é o regime de bens supletivo da lei da China; 2) Os imóveis “JR/C”, “KR/C”, “LR/C”, “OR/C”, “D1R/C”, “D2R/C” e “G2” são os bens próprios da 2ª autora da herança; e 3) Quanto ao imóvel “D2R/C” deve ser enumerado na relação de bens da 2ª autora da herança, como bens próprios seus.
b. Os recorrentes, no pressuposto de respeitar o Tribunal Judicial de Base (Tribunal “a quo”), não concordam com o teor do despacho.
c. Os recorrentes entendem existir no despacho recorrido erro de interpretação jurídica e vício de violação da lei.
d. Em primeiro lugar, o 1o. autor da herança e a 2ª. autora da herança casaram-se no sexto dia do décimo primeiro mês lunar do ano de trinta e um da República Chinesa, ou seja, no dia 22 de Janeiro de 1942, em Macau, segundo os usos e costumes chineses, as duas pessoas eram chineses que residiam habitualmente em Macau, ambas também não eram católicas.
e. Naquela altura, na região de Macau, para além de aplicação do Código Civil Português de 1867, também com o objectivo de regularizar os chineses de nacionalidade chinesa, estipularam-se as normas/regime excepcionais do “Código dos usos e Costumes Chineses” do Decreto de 17 de Junho de 1909.
f. E, o aparecimento do “Código dos usos e Costumes Chineses” foi com base no Decreto de 18 de Novembro de 1869 que estendia as normas do Código Civil Português de 01 de Julho de 1867 ao Ultramar, porém, quanto às causas referentes aos usos e costumes chineses tinham que dispor de forma especial. Pelo que, foram decretadas as normas que regularizavam especificamente os usos e costumes no que respeitavam à família, casamento e sucessão dos chineses em Macau segundo os direitos e deveres legais.
g. Nestes termos, o regime de bens do casamento do 1o autor da herança e da 2a autora da herança não era regularizado pelo “Código Civil” de 01 de Julho de 1867, mas, sim, regularizado pelo “Código dos usos e Costumes Chineses” do Decreto de 17 de Junho de 1909.
h. Os recorrentes entendem que o regime de bens do casamento dos dois autores da herança era o regime da separação de bens no regime de bens supletivo da lei da China, inerente ao “Código dos usos e Costumes Chineses” do Decreto de 17 de Junho de 1909, sendo regularizado pelo “Código dos usos e Costumes Chineses”.
i. Isto é, a mulher possuía o dinheiro “si ki” nos termos da lei, mas, para além do dinheiro “Si Ki” da mulher, todos os restantes bens eram considerados como bens do marido, aliás, o marido podia, sem outorga da mulher, dispor dos bens próprios, sendo semelhante às normas do regime de separação de bens.
j. Como por exemplo, o 1º autor da herança chegou a possuir o direito de propriedade de um imóvel (descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número XXXX, a fls. 87 do livro B25) sito em Macau, na Avenida de Almeida Ribeiro, no XXX, que era um prédio de três pisos e foi adquirido pelo 1º autor da herança em 1948 (ou seja, após o casamento dos dois autores da herança), aliás, em 1978, vendeu a I (sic.), filho menor do 3º irmão do 1º autor da herança, foi Chan In (ou seja, 3º irmão do 1º autor da herança), pai do filho menor J, que assinou, como representante, o respectivo contrato de compra e venda (Doc. 1 e Doc. 2, os recorrentes só tomaram conhecimento em Setembro de 2019 após efectuada a investigação.)
k. Em 1978, altura de venda do referido imóvel, a 2ª autora da herança ainda estava viva, como era uma alienação de propriedade dentro da família, segundo o raciocínio, a 2ª autora da herança devia saber disso, segundo a lógica, há duas hipóteses, (1) A 2ª autora da herança opôs-se a vender, ou, (2) A 2ª autora da herança concordou com a venda. Caso a 2ª autora da herança considerasse o seu regime de bens do casamento como “regime da comunhão de adquiridos”, aliás, a mesma não se opôs a vender, devia então intervir e assinar a referida escritura pública. Porém, na realidade, a 2ª autora da herança não só não se opôs a vender nem interveio na assinatura da referida escritura pública, portanto, a única conclusão lógica é que a 2ª autora da herança e o 1º autor da herança reconheceram que o seu regime de bens do casamento não era o “regime da comunhão” (sic.)
l. Apesar de o “Código dos Usos e Costumes Chineses” ser revogado pelo Decreto no 36978 (sic. – supõe-se que deve ler-se 36987) de 24 de Julho de 1945, nos termos dos artigos 3º e 4º do “Decreto no 36978 (sic. – supõe-se que deve ler-se 36987), produzam todos os efeitos civis os casamentos que se celebrem entre contraentes chineses com as formalidades próprias da sua religião. Ressalvam-se as situações criadas anteriormente à promulgação deste decreto, ao abrigo dos usos e costumes chineses codificados pelo Decreto de 17 de Junho de 1909.
m. O “Código Civil” de 1966 revogou o “Código Civil” que em 1867 Portugal estendeu a sua aplicação em Macau, mas, de acordo com o “Decreto no 47344” de 1966, o novo Código Civil ainda ressalvava os efeitos civis do regime de casamento e de bens do casamento existentes.
n. O regime de bens do casamento dos dois autores da herança era regularizado pelo “Código dos Usos e Costumes Chineses” do Decreto de 17 de Junho de 1909, aliás, não sendo aplicável o “Código Civil” de 01 de Julho de 1867, neste sentido, também não aplicável ao regime de bens do casamento explicado nos artigos atrás descritos.
o. Por último, o 1º autor da herança faleceu em 1989 e o casamento do 1º autor da herança e da 2ª autora da herança foi dissolvido, aliás, o regime de bens do casamento do 1º autor da herança e da 2ª autora da herança não era afectado pelo novo “Código Civil” de 1999.
p. Isso mostra que, quanto ao casamento celebrado durante a vigência do “Código dos Usos e Costumes Chineses de Macau” e o regime de bens do casamento estava sujeito à protecção da lei, aliás, mantendo a sua validade até ao presente, ou seja, apesar de ter cruzado o ano de 1999, ainda está valido, não vai perder a sua validade devido ao aparecimento de qualquer nova lei, aliás, a nova lei não vai afectar o teor do casamento e do regime de bens de casamento celebrado na vigência da lei velha (ou seja, “Código dos Usos e Costumes Chineses de Macau”).
q. Pelo que, a nova lei não alterou o teor do regime de bens do casamento do “Código dos Usos e Costumes Chineses de Macau”, o regime de bens do casamento dos dois autores da herança ainda está regularizado pelo “Código dos Usos e Costumes Chineses de Macau”.
r. Nestes termos, os recorrentes entendem que no despacho recorrido existe o vício de erro de explicação respeitante ao artigo 3º do “Código dos Usos e Costumes Chineses” do Decreto de 17 de Junho de 1909.
s. Entretanto, a sustentação do Mmo. Juiz do Tribunal Judicial de Base (Tribunal “a quo”) de que os imóveis “JR/C”, “KR/C”, “LR/C”, “OR/C”, “D1R/C”, “D2R/C” e “G2” são os bens próprios da 2ª. autora da herança; e o imóvel “D2R/C” deve ser enumerado na relação de bens da 2ª autora da herança, como bem próprio seu, existe o vício de violação da lei.
t. Como atrás descrito, o regime de bens dos dois autores da herança estava regularizado pelo “Código dos Usos e Costumes Chineses” do Decreto de 17 de Junho de 1909.
u. No termos dos artigos 3º e 5º do “Código dos Usos e Costumes Chineses” estipula-se claramente que o “SI KI” possuído pela mulher divide-se em dois tipos:
 1. Os bens dados pelo pai da mulher em dote do casamento;
 2. Os bens adquiridos pela mulher antes do casamento.
v. No entanto, a data de aquisição dos supracitados imóveis eram respectivamente: 1982, 1973 e 1971, os dois autores da herança casaram-se em Macau, em 22 de Janeiro de 1942, há diferença de trinta e quarenta anos respectivamente entre a data de aquisição dos imóveis e a do casamento! Não era possível que fossem os bens dados pelo pai da mulher em dote do casamento nem os adquiridos pela mulher antes do casamento!
w. Caso apenas dependesse da declaração do 1º autor da herança para consentir que a 2ª autora da herança adquirisse os supracitados imóveis por forma de “SI KI”, e na realidade, esses bens eram totalmente pertencentes ao 1º autor da herança, como bens próprios seus, assim vai prejudicar directamente os benefícios dos outros herdeiros.
x. Quanto aos bens levados pela mulher no momento do casamento e os por ela adquiridos por qualquer forma depois do casamento, caso a mulher pretendesse administra-los, precisaria de outorgar convenção antes do casamento.
y. Porém, a cabeça-de-casal nunca forneceu qualquer convenção antenupcial dos dois autores da herança e a cabeça-de-casal também declarou que os dois autores da herança não tinham convenção antenupcial.
z. Nestes termos, os supracitados bens não pertenciam aos bens levados pela mulher no momento do casamento e os por ela adquiridos por qualquer forma depois do casamento, também não pertenciam aos bens “SI KI” da 2ª autora da herança.
aa. Nestas circunstâncias, o despacho recorrido deve ser cancelado, por que violou os artigos 3º e 5º do “Código dos Usos e Costumes Chineses ”, devendo também ser enumerados os imóveis “JR/C”, “KR/C”, “LR/C”, “OR/C”, “D1R/C”, “D2R/C” e “G2” nos bens próprios do 1º autor da herança.
bb. Face ao exposto, por no despacho recorrido existir os vícios de erro de explicação e de violação da lei, deve ser cancelada e os imóveis “JR/C”, “KR/C”, “LR/C”, “OR/C”, “D1R/C”, “D2R/C” e “G2” devem ser enumerados nos bens próprios do 1º autor da herança.
Pela cabeça-de-casal D, foram apresentadas contra-alegações de onde constam as seguintes conclusões:
- Às alegações de recurso de A:
1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho de 2 de Julho de 2019 que decidiu da impugnação das declarações da Cabeça de Casal e da reclamação contra a relação de bens apresentada e consequentemente declarou que: “首先,就爭執的部份,本院認同利害關係人A、B及C的見解,在無婚前協定的情況下,兩名被繼承人的婚姻財產制度不應單純視作是取得共同財產制。然而,有關財產制度也不能單純被視作是分別財產制。基於此,本院決定將待分割財產管理人的聲明中,就兩名被繼承人的婚姻財產制度,更正為中國法律候補財產制度。(…) 然而,就“JR/C”,“KR/C”,“LR/C”,“OR/C”,“D1R/C”,“D2R/C”及 “G2”的應否屬第一被繼承人的個人財產的問題上,除應有尊重及更佳見解外,本院不認同利害關係人A、B、C及E的見解。(…)因此,被上訴判決雖然裁定待分割財產管理人須將遺漏了的“D2R/C”不動產重新列入財產目錄內,但卻決定將“D2R/C”不動產及上述“JR/C”,“KR/C”,“LR/C”,“OR/C”,“D1R/C”及“G2”羅列於第二被繼承人的財產清單當中,並作為其個人財產。”
2. Entende o Recorrente que o referido despacho do Tribunal “a quo” decidiu de forma errada relativamente aos factos e na aplicação do direito.
3. Contudo, a Cabeça de Casal não pode concordar com tal entendimento, considerando que o douto despacho está em completa consonância com os factos e elementos vertidos nos autos.
4. Os Inventariados casaram em Macau, em 1942.
5. Na data de celebração do casamento, vigorava em Macau o então o Código Civil de 1 de Julho de 1867. Nos termos deste Código, o regime supletivo de bens do casamento era o da comunhão geral que estipulava que na falta de estipulação em contrário, considerava-se na comunhão entre os cônjuges, todos os seus bens presentes e futuros.
6. Contudo, por Decreto promulgado em 17 de Junho de 1909, aos casamentos celebrados entre os cidadãos de nacionalidade chinesa e segundo os usos e costumes chineses era aplicável o regime previsto no Código dos Usos e Costumes Chineses.
7. Porém, em virtude do resultado do movimento revolucionário nacionalista e de se verificar uma evolução dos usos e costumes chineses, no sentido de uma maior igualdade de tratamento concedida pelas actuais leis aos homens e mulheres, considerou-se a necessidade de actualizar a legislação respeitante aos usos e costumes dos chineses, em Macau.
8. Tendo sido aliás apresentadas propostas de revogação do Código de Usos e Costumes Chineses, em virtude da sua aplicação poder advir graves prejuízos aos chineses residentes em Macau.
9. Pelo que, por Decreto nº 36987 de 14 de Agosto de 1948, ficou estabelecido no seu Artigo 2º que: “Os chineses naturais de Macau que não forem portugueses de nacionalidade, e bem assim os indivíduos de nacionalidade chinesa, ficam sujeitos às leis civis chinesas em tudo o que refere a direitos de família e sucessórios.”
10. Por essa razão, o Tribunal concluiu que o regime de bens de casamento dos dois inventariados é o regime de bens supletivo da Lei da China e não o Código dos Usos e Costumes Chineses.
11. O Código Civil chinês de 1931 era o «Código» vigente na altura do casamento dos Inventariados. Este «Código» previa um regime legal de bens, a aplicar na falta de contrato nupcial.
12. “O regime legal de bens encontrava-se regulado pelo artigo 1016º e seguintes do «Código».
13. O artigo 1016º, relativamente ao regime legal, dispunha que todos os bens que pertencessem aos esposos no momento do casamento, e bem assim os que fossem adquiridos na constância do matrimónio, constituíam os seus «bens matrimoniais», com excepção dos bens separados pertencentes à mulher mencionados no artigo 1013º do mesmo «Código».
14. Ora, de acordo com o referido artigo 1013º, os bens separados pertencentes à mulher incluíam os objectos exclusivamente destinados ao seu uso, os objectos indispensáveis à profissão da mulher, as doações recebidas pela mulher que o doador designou como bens separados, bem como as remunerações que a mulher adquiria pelo seu trabalho.”
15. Apesar de concluir pela não aplicação ao caso concreto do Código dos Usos e Costumes Chineses, cumpre referir quanto à questão levantada pelo Recorrente sobre o conceito de “Tai Ki” que, o artigo 3º do Código dos Usos e Costumes Chineses em Macau dispõe que são bens próprios da mulher os bens denominados Tai Ki, as jóias e vestuários dados pelo pai em dote do casamento, e deles pode ela dispor livremente.”
16. Entendem-se por Tai Ki, os bens que a mulher leva para o casal, dados pelo pai ou adquiridos por ela antes do casamento mas não mencionados no contrato ante-nupcial.”
17. A questão consiste em saber se o conceito utilizado na escritura pública de 30 de Abril de 1982 para aquisição das fracções autónomas em causa vale para as considerarem como bens próprios.
18. Aquando da aquisição das fracções “G-2” e “D1R/C”, foi mencionado em ambas escrituras que as referidas fracções foram compradas com o próprio dinheiro da Inventariada XXX, pelo que as referidas fracções tem natureza dos seus bens de “Si Ki”.
19. Já as fracções “LR/C”, “KR/C”, “JR/C” e “OR/C” foram adquiridas pela Inventariada XXX por escritura outorgada em 30/04/1982, sendo que nesta escritura consta que as referidas fracções “LR/C”, “KR/C”, “JR/C” e “OR/C” foram adquiridas com o dinheiro dos bens próprios de XXX e reservados da sua livre administração e disposição, mas não mencionando se têm natureza “Si Ki”.
20. Em todas as referidas aquisições foi obtido o consentimento do marido da Inventariada XXX.
21. E o que é certo é que em todos os registos efectuados na Conservatória do Registo Predial de Macau relativamente a todas as fracções supra referidas “LR/C”, “KR/C”, “JR/C”, “OR/C”, “G-2” e “D1R/C” consta que as fracções são bens próprios de XXX não fazendo qualquer diferenciação quanto à natureza de “Si Ki”.
22. Aliás, à expressão “Si Ki” utilizada nas escrituras de 1971 e 1973, antecede a locução coordenativa “pelo que”, que tem um valor conclusivo. Pelo que da simples omissão desta expressão “Si Ki”, não se pode concluir que estes bens não são bens próprios da Inventariada, pois consta expressamente na referida escritura de 1982 que esses bens são adquiridos pela Inventariada como bens próprios.
23. O termo “Tai Ki” ou “Si Ki” utilizado no Código de Usos e Costumes Chineses tem a sua origem na palavra chinesa “體己”ou “私己”ou “私房”, o que tem o sentido específico de poupança ou dinheiro próprio da mulher. Portanto a palavra “Tai Ki” ou “Si Ki” é semelhante à expressão de bens próprios em português.
24. Assim sendo, com a expressa menção dos outorgantes na escritura pública de aquisição dos imóveis, não restam quaisquer dúvidas que esses bens devem ser considerados como bens próprios da mulher, ou seja, a Inventariada.
25. Em suma, sublinha-se que, como bem entendeu o douto Tribunal “a quo”, que o regime aplicável aos Inventariados é o regime supletivo da lei da China conforme melhor explicado no despacho de fls. 429 dos autos e ainda que os bens “LR/C”, “KR/C”, “JR/C”, “OR/C”, “G-2” e “D1R/C” são considerados como bens próprios da Inventariada XXX.
26. Pelo que sinceramente não se enxerga quais os vícios assacados ao douto despacho, por os mesmos não existirem, pois entende-se que não existe qualquer facto ou fundamento que abale as declarações prestadas numa escritura pública, sendo as suposições do Recorrente, salvo o devido respeito, meras interpretações restritivas e viciadas.
27. Considerando todo o exposto entende-se que muito bem andou douto Tribunal “a quo” quando decidiu:首先,就爭執的部份,本院認同利害關係人A、B及C的見解,在無婚前協定的情況下,兩名被繼承人的婚姻財產制度不應單純視作是取得共同財產制。然而,有關財產制度也不能單純被視作是分別財產制。基於此,本院決定將待分割財產管理人的聲明中,就兩名被繼承人的婚姻財產制度,更正為中國法律候補財產制度。e, consequentemente declarou然而,就“JR/C”,“KR/C”, “LR/C”,“OR/C”,“D1R/C”,“D2R/C”及“G2”的應否屬第一被繼承人的個人財產的問題上,除應有尊重及更佳見解外,本院不認同利害關係人A、B、C及E的見解。(…)因此,被上訴判決雖然裁定待分割財產管理人須將遺漏了的“D2R/C”不動產重新列入財產目錄內,但卻決定將“D2R/C”不動產及上述“JR/C”,“KR/C”, “LR/C”,“OR/C”,“D1R/C”及“G2”羅列於第二被繼承人的財產清單當中,並作為其個人財產。” donde deve improceder o presente recurso, não se enxergando quais os vícios assacados ao douto acórdão, por os mesmos não existirem.
- Às alegações de recurso de B e C:
1. Os recorrentes não concordaram em que o tribunal a quo no supracitado despacho determinou: 1) O regime de bens do casamento dos dois autores da herança é o regime de bens supletivo da lei da China; 2) Os imóveis “JR/C”, “KR/C”, “LR/C”, “OR/C”, “D1R/C”, “D2R/C” e “G2” são os bens próprios da 2ª autora da herança; e 3) Quanto ao imóvel “D2R/C” deve ser enumerado na relação de bens da 2ª autora da herança, como bem próprio seu.
2. O motivo principal do recurso dos recorrentes é: os dois autores da herança casaram-se no sexto dia do décimo primeiro mês lunar do ano de trinta e um da República Chinesa, ou seja, no dia 22 de Janeiro de 1942, em Macau, segundo os usos e costumes chineses, devendo ser regularizado pelo “Código de Usos e Costumes Chineses” de Macau que ainda vigorava até 1948 com a aprovação pelo Decreto de 17 de Junho de 1909;
3. Especialmente, eram aplicáveis os artigos 3o e 5o do supracitado diploma e através de hipótese e raciocínio, excluiu a possibilidade de que a 2ª autora da herança tinha “Si Ki”, pelo que, entende que os imóveis adquiridos em 1971, 1973 e 1982 pela 2ª autora da herança foram também comprados após o casamento, apesar de o 1º autor da herança ter concordado ser o “Si Ki” da 2ª Autora da herança, também era considerado como os bens do 1º autor da herança.
4. Assim sendo, entenderam a existência de erro da explicação jurídica e de vício da violação da lei na decisão do despacho recorrido.
5. Quanto ao ponto de vista dos recorrentes, a recorrida não concorda com isso e considera como recurso interposto sem fundamento, salvo o devido respeito.
I. O “Código de Usos e Costumes Chineses” era aplicável ao regime de bens do casamento
6. A recorrida não tem dúvida em relação ao casamento contraído no sexto dia do décimo primeiro mês lunar do ano de trinta e um da República Chinesa, ou seja, no dia 22 de Janeiro de 1942, em Macau, segundo os usos e costumes chineses e ao efeito do casamento produzido com base no “Código de Usos e Costumes Chineses” vigente naquela altura (vigorou entre 1909 e 1948).
7. No entanto, a questão de se o “Código de Usos e Costumes Chineses” era aplicável ou não ao regime de bens do casamento dos dois autores da herança, a recorrida tem o seguinte ponto de vista:
8. Em primeiro lugar, o “Código de Usos e Costumes Chineses” foi promulgado pelo Decreto de 17 de Junho de 1909, tratando-se de um código relacionado com o casamento, família, sucessão, etc…No qual, as normas envolvidas nas pessoas do sexo feminino e enteados eram muitas, salientando que os bens do casal eram geralmente dispostos pelo marido, isso mostrava que a posição do marido no aspecto dos bens era muito preponderante, a desigualdade entre homens e mulheres era muito intensa na sociedade feudal.
9. No entanto, o “Código de Usos e Costumes Chineses” foi revogado em 24 de Julho de 1948 pelo Decreto no 36987 do governo português, obviamente, o referido Código foi abandonado com justificação, pelo que, precisamos, através da história, de lançar um olhar retrospectivo para saber da motivação de revogação.
10. O teor do Decreto 36987:
“Atendendo ao que propôs o Governo da colónia do Macau no sentido de ser actualizada naquela colónia a legislação respeitante aos usos e costumes dos chineses, aprovada por Decreto de 17 de Junho de 1909;
Considerando que se impõe a necessidade de tal providência legislativa, pelo facto de, particularmente em resultado do movimento revolucionário nacionalista ocorrido naquele país, terem evoluído os usos e costumes chineses, sofrendo radicais transformações, destacando-se, entre outras, a igualdade de tratamento concedida pelas actuais leis aos homens e mulheres;
Atendendo a que ao Governo da colónia têm sido apresentadas exposições solicitando a revogação do Código de Usos e Costumes Chineses, posto em vigor pelo Decreto de 17 de Junho de 1909, por estar desactualizado quanto às leis chinesas, podendo da sua aplicação advir graves prejuízos aos chineses residentes em Macau;
Tendo em vista o artigo 10.o da Carta Orgânica do Império Colonial Português;
Ouvido o Conselho do Império Colonial:
Usando da faculdade conferida pelo artigo 28.o do Acto Colonial, o Governo decreta e eu promulgo o seguinte:
Artigo 6.o (sic.) Ficam sujeitos às leis civis portuguesas os indivíduos naturais de Macau que, nos termos do Decreto de 3 de Novembro de 1905, forem portugueses de nacionalidade.
Artigo 7.o (sic.) Os chineses naturais de Macau que não forem portugueses de nacionalidade, e bem assim os indivíduos de nacionalidade chinesa, ficam sujeitos às leis civis chinesas em tudo o que se refere a direitos de família e sucessórios.
Artigo 8.o (sic.) O disposto nos dois artigos precedentes não impedirá, todavia, que produzam todos os efeitos civis os casamentos que se celebrem entre contraentes chineses com as formalidades próprias da sua religião.
Artigo 9.o (sic.) Ressalvam-se as situações criadas anteriormente à promulgação deste decreto, ao abrigo dos usos e costumes chineses codificados pelo Decreto de 17 de Junho de 1909.
Artigo 10.o (sic.) Os bens que na vigência dos usos e costumes chineses codificados pelo Decreto de 17 de Junho de 1909 foram separados para sacrifícios da família são alienáveis, mediante acordo expresso de todos os beneficiários vivos.
Publique-se e cumpra-se como nele ao contém.
Paços do Governo da República, 24 de Julho de 1984.
-- António Óscar de Fragoso Carmona, Presidente
-- António de Oliveira Salazar, Presidente do conselho de ministros
-- Teófilo Duarte, Ministro da Colónia
(Traduzido pelo autor)”
(Negrito e sublinhado colocado posteriormente, citado da obra《澳門總覽》(Visão Global de Macau) editada por Sr. Wong Hon Keong e Sr. Ng Chi Leong, publicada pela Fundação Macau, 1996, fls. 69)
11. Na realidade, após a Revolução XinHai, a lei da família da China e o conceito e pensamento dos chineses sofreram mudança intensa, tendo promovido a igualdade entre homens e mulheres e respeitado a vontade autónoma; e, o regime de bens do casamento regularizado pelo “Código de Usos e Costumes Chineses” é exactamente uma interpretação da desigualdade entre homens e mulheres.
12. O “Código de Usos e Costumes Chineses” seguia o conceito de “o estatuto das mulheres era mais baixo do que o dos homens”, salientando que os bens do casal eram maioritariamente dispostos pelo marido e que a filha não tinha o direito de sucessão, isso era obviamente desactualizado e não era adequado, tendo o estatuto demasiadamente inclinado entre homens e mulheres, a continuidade da sua aplicação ia prejudicar gravemente os direitos e interesses dos chineses de Macau.
13. Pelo que, o “Código de Usos e Costumes Chineses” foi cancelado pelo Decreto 36987 de 24 de Julho de 1984; obviamente, admitiu-se a diversificação da lei de Macau e segundo os princípios gerais da lei privada internacional, estendeu-se pela primeira vez o efeito jurídico da china a Macau.
14. É percebido através do Decreto 36987, apesar de o “Código de Usos e Costumes Chineses” ser cancelado,
1. “não impedirá, todavia, que produzam todos os efeitos civis os casamentos que se celebrem entre contraentes chineses com as formalidades próprias da sua religião.”, isto é, ainda admite os casamentos que se celebrem entre contraentes chineses com as formalidades próprias da sua religião na vigência do referido diploma;
2. “Ressalvam-se as situações criadas anteriormente à promulgação deste decreto, ao abrigo dos usos e costumes chineses codificados pelo Decreto de 17 de Junho de 1909.” Como por exemplo, o facto de o marido já ter tomado uma concubina ainda se ressalva.
15. Pelo que, a recorrida concorda com a opinião do Juiz a quo de definir o regime de bens do casamento dos dois autores da herança no regime de bens supletivo da lei da China.
16. Não devendo o “Código de Usos e Costumes Chineses” (sobretudo, as situações aludidas nos artigos 3º e 5º do referido diploma) continuar a aplicar ao regime de bens do casamento dos dois autores da herança, mas, sim, ficando sujeitos às leis civis chinesas, caso contrário, a revogação do referido diploma não faz sentido.
17. Pelo menos, pode excluir a sua aplicação -- -- a possibilidade de todos os mais bens serem considerados próprios do marido, excepto o “Si Ki”.
II. “Si Ki” -- -- bens próprios da 2ª. autora da herança
18. Como atrás descrito, a recorrida entende que não era aplicável o “Código de Usos e Costumes Chineses” ao regime de bens do casamento dos dois autores da herança; porém, para que a recorrida possa ter uma plena defesa, vem dar resposta em relação ao “Si Ki” aludido nos artigos 29º a 37º do recurso dos recorrentes e à questão sobre os imóveis adquiridos pela 2ª autora da herança após o casamento;
19. De facto, os fundamentos alegados pelos recorrentes com a intenção de ilidir a parte de “Si Ki” da 2ª autora da herança são muito fracos;
20. Em primeiro lugar, o significado de “Si Ki” é como o alegado no despacho recorrido: “o termo ‘Tai Ki’ ou ‘Si Ki’ utilizado no Código de Usos e Costumes Chineses tem a sua origem na palavra chinesa ‘體己’ ou ‘私己’ ou ‘私房’, o que tem o sentido específico de poupança ou dinheiro próprio da mulher. Portanto, a palavra ‘Tai Ki’ ou ‘Si Ki’ é semelhante à expressão de bens próprios em português.” Ou seja, o “Si Ki” indica o dinheiro próprio pertencente à mulher, por outras palavras, os bens próprios da mulher.
21. Em segundo lugar, quanto às duas escrituras públicas de compra e venda assinadas respectivamente em 1971 e 1973 e envolvidas os imóveis “D1R/C”, “D2R/C” e “G2”, os dois autores da herança também participaram, aliás, o 1º autor da herança declarou claramente consentir que a 2ª autora da herança adquiriu os supracitados imóveis por forma de “Si Ki”;
22. Acto este, revelou indubitavelmente que a vontade subjectiva do 1o. autor da herança é que admitiu e consentiu que a 2ª autora da herança adquiriu os supracitados imóveis por forma de “Si Ki”, bem como considerou que tais imóveis eram os bens próprios da 2ª autora da herança, caso contrário, não valia para colocar uma menção especial.
23. O mais importante é que, o 1º autor da herança era na altura a pessoa que obteve o benefício de maior valor, quando se falava do prejuízo directo, o prejuízo que o 1º autor da herança sofreu foi absolutamente o maior, então, os recorrentes, na qualidade de herdeiros, com base em qual podiam gritar que ficassem directamente lesados respeitante aos seus benefícios e, de seguida, negaram a declaração do 1º autor da herança e as escrituras públicas de compra e venda assinadas pelo mesmo.
24. Para isso, os recorrentes não tinham prova para proceder à prova em contrário contra as escrituras públicas, apenas dependente de uma dedução pessoal simples para negar o “Si Ki” possuído pela 2ª autora da herança.
25. Por que é que a 2a autora da herança não podia adquirir os imóveis trinta a quarenta anos após o casamento com os bens dados pelo seu pai em dote do casamento?
26. Aliás, também não havia restrições para que, com qual a forma, o “Si Ki” fosse transformado em outros bens; pelo que, os imóveis obtidos pela 2ª autora da herança com o seu “Si Ki” e através do meio de aquisição deve também ser considerado como “Si Ki” ou bens próprios.
27. Nestes termos, os imóveis “JR/C”, “KR/C”, “LR/C”, “OR/C”, “D1R/C”, “D2R/C” e “G2” são os bens próprios da 2ª autora da herança.
28. Face ao exposto, no despacho do Juiz do tribunal a quo não existem o erro da explicação jurídica e o vício da violação da lei, deve ser mantida a decisão do tribunal a quo.

Foram colhidos os vistos.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Nestes autos são inventariados K e XXX, e interessados F, G, D, A, E, B e C.
Nestes autos foi proferida a seguinte decisão, a qual é objecto deste recurso:
«Os interessados A (A), B (B) e C (C) deduziram impugnação contra as declarações da cabeça-de-casal, indicando que o regime de bens do casamento dos dois autores da herança devia ser o regime de separação de bens do regime de bens supletivo da lei da China, mas, não o regime da comunhão de adquiridos. Ao mesmo tempo, os três interessados ainda apresentaram reclamação contra a relação de bens, indicando haver omitido enumerar o imóvel “D2R/C” e pediram a sua enumeração.
Além disso, o interessado E (E) apresentou também reclamação contra a relação de bens, para além de indicar a omissão de enumerar o imóvel “D2R/C”, indicou ainda que devia o imóvel “D2R/C” ser juntado com “JR/C”, “KR/C”, “LR/C”, “OR/C”, “D1R/C” e “G2” no total de sete imóveis para serem enumerados na relação de bens do 1º autor da herança K.
Quanto às supracitadas impugnação e reclamação, a cabeça-de-casal não deu qualquer opinião depois de ter sido notificada.
Em primeira lugar, quanto à impugnação, este Juízo concorda com o ponto de vista dos interessados A (A), B (B) e C (C), sendo que em situação de não haver convenção antenupcial, o regime de bens do casamento dos dois autores da herança não deve ser simplesmente considerado como regime da comunhão de adquiridos, no entanto, o respectivo regime de bens não pode também ser considerado como regime de separação de bens, neste sentido, este Juízo determina rectificar o regime de bens do casamento dos dois autores da herança nas declarações da cabeça-de-casal para o regime de bens supletivo da lei da China.
Quanto à reclamação à relação de bens, através da informação escrita do registo predial, revela-se que existe certamente a omissão de enumerar o imóvel “D2R/C”, pelo que, é procedente esta parte da reclamação.
No entanto, quanto à questão de que se “JR/C”, “KR/C”, “LR/C”, “OR/C”, “D1R/C”, “D2R/C” e “G2” devem ou não pertencer aos bens próprios do 1º autor da herança, salvo o devido respeito e a melhor opinião, este Juízo não concorda com o ponto de vista dos interessados A (A), B (B), C (C) e E (E).
A escritura pública de compra e venda envolvida nos imóveis “JR/C”, “KR/C”, “LR/C”, “OR/C” assinada em 1982 junta-se aos autos a fls. 32 a 36.
A escritura pública de compra e venda envolvida nos imóveis “D1R/C” e “D2R/C” assinada em 1973 junta-se aos autos a fls. 420 a 426.
A escritura pública de compra e venda envolvida no imóvel “G2” assinada em 1971 junta-se aos autos a fls. 408 a 419.
No acto de assinatura das duas escrituras públicas em 1971 e 1973 envolvidas nos imóveis “D1R/C” e “D2R/C” e “G2”, participaram simultaneamente os dois autores da herança. Nas supracitadas escrituras públicas, o 1º autor da herança declarou claramente consentir que a 2ª autora da herança adquiriu os supracitados imóveis por forma de “Si Ki”, nestas circunstâncias e em situação de não haver prova em contrário neste processo, devem ser considerados os respectivos bens como o “Si Ki” indicado nos usos e costumes chineses, ou seja, os bens próprios da 2ª autora da herança.
Quanto à natureza dos imóveis “JR/C”, “KR/C”, “LR/C”, “OR/C”, de facto, a respectiva questão chegou a ser julgada no processo no CV2-10-0007-CIV da forma seguinte:
“Conhecendo.
Os inventariados casaram segundo os usos e costumes chineses em Macau em 1942.
Na data de celebração do casamento, vigorava em Macau o Código Civil de 1 de Julho de 1867.
Por Decreto promulgado em 17 de Junho de 1909. Porém, ao casamento celebrado entre os cidadãos da nacionalidade chinesa e segundo os usos e costumes chineses são aplicáveis o regime previsto no Código dos Usos e Costumes Chinês.
Preceitua-se o arto 3º do referido Código relativo ao regime dos bens do casal:
“O marido pode, sem outorga da mulher, dispor dos bens próprios e estar em juízo, salvo estipulação antenupcial em contrário.
§1º - São bens comuns do casal os bens imóveis dotais, destes o marido só pode dispôs com outorga da mulher.
§2º - São bens próprios da mulher os bens denominados Tai Ki, as jóias e vestuários dados pelo pai em dote do casamento, e deles pode ela dispor livremente.
§3º - Todos os mais bens são considerados próprios do marido.
§4º - Entendem-se por Tai Ki, os bens que a mulher leva para o casal, dados pelo pais ou adquiridos por ela antes do casamento mas não mencionados no contrato ante-nupcial.”
A questão de cerne assenta em saber se a estipulação expressa de aquisição como bem próprio da contraente-mulher XXX, com o consentimento do seu marido, constante da escritura pública de 30 de Abril de 1982 que titulou a aquisição das fracções autónomas em causa vale para as considerarem como bens próprios daquela.
Na óptica dos interessados E, B, C e H, apesar dessa declaração, como segundo as disposições do Código de Usos e Costumes Chineses, são considerados como bens próprios da mulher os bens denominados por “Tai Ki”, os que não sejam assim denominados hão de ser integrados nos bens comuns do casal.
Afigura-se que essa posição não deixa de ser uma interpretação restritiva da norma em causa.
Com efeito, essa norma visa-se determinar quais os bens devem ser considerados como bens próprios da mulher.
Apesar de na escritura pública de compra e venda não ter mencionado expressamente que os imóveis foram adquiridos pela XXX com “Tai Ki” ou “Si Ki” ou fazem parte do “Tai Ki”, mas não é menos verdade que consta aí expressamente que esses bens são adquiridos por ela como bens próprios.
No fundo, quer bens próprios quer bens comuns são conceitos abstractos que carece da definição por lei, isto é, a determinação dos factos concretos que se encaixam nesses conceitos. Segundo o Código de Usos e Costumes Chinês, são considerados bens próprios os bens denominados por “Tai Ki”, os vestuários e as jóias dados pelo pai, etc.
No caso em pareço, em vez de menção de bens denominados por “Tai Ki”, os contraentes declararam directamente que esses imóveis eram bens próprios da mulher. O termo adoptado talvez não se correspondesse exactamente com os respectivos normativos acima referidos. Mas a vontades dos declarantes não é muito clara no sentido de atribuir a esses bens a natureza de bens próprios da mulher?
Não é absurdo e ilógico a desconsideração desses bens como bens próprios da mulher somente por não ter usado o termo de “Tai Ki” mas ter dito expressamente tratarem de bens próprios de um dos cônjuges.
Ademais, o termo “Tai Ki” ou “Si Ki” utilizado no Código de Usos e Costumes Chineses tem a sua origem na palavra chinesa “體己” ou “私己” ou “私房”, o que tem o sentido específico de poupança ou dinheiro próprio da mulher. Portanto, a palavra “Tai Ki” ou “Si Ki” é semelhante à expressão de bens próprios em português.
Assim sendo, com a expressa menção dos outorgantes na escritura pública de aquisição dos imóveis, não restam quaisquer dúvidas que esses bens devem ser considerados como bens próprios da mulher, ou seja, a inventariada XXX.”
A supracitada opinião incisiva é certa, pelo que, este Juízo a mantém e cujo fundamento aqui se dá por integralmente reproduzido, como parte integrante da presente decisão.
Por outro lado, começando do acontecimento de outrora referente ao facto de que os dois autores da herança comprometeram-se a que a 2ª autora da herança adquiriu os imóveis “D1R/C”, “D2R/C” e “G2” por forma de “Si Ki”, é difícil fazer alguém acreditar que no momento de aquisição dos imóveis “JR/C”, “KR/C”, “LR/C”, “OR/C”, a intenção de compromisso de os respectivos bens serem os “bens próprios” não fosse considerada que os quatro imóveis fossem o “Si Ki” da 2ª autora da herança.
Com base na supracitada razão, este Juízo determina:
- A impugnação deduzida pelos interessados H, B e C contra as declarações da cabeça-de-casal fica parcialmente procedente, ordena rectificar as declarações em causa de acordo com o teor acima mencionado;
  - Quanto ao imóvel “D2R/C”, este Juízo julga procedente o requerimento de ter omissão de enumeração apresentado pelos interessados e determina enumerá-lo na relação de bens da 2ª autora da herança, como bem próprio seu;
  - Quanto às restantes partes da reclamação deduzida pelos interessados, fica improcedente.
  *
  Notifique a cabeça-de-casal de apresentar uma nova relação de bens de acordo com o teor acima determinado, na qual devendo assinalado o valor da verba no 1».
  
  No processo de inventário que correu termos no TJB sob o nº CV2-10-0007-CIV, eram inventariados K e XXX, e interessados F, G, D, A, E, B e C.
  No processo de inventário que correu termos no TJB sob o nº CV2-10-0007-CIV, a fls. 485 e 486, em 04.07.2012, foi proferida a seguinte decisão:
  «Fls.461 a 467, 471 a 484 :
  A cabeça de casal requereu a correcção da relação de bens para que as verbas nºs 5 a 8 passem a ser bens próprios da inventariada XXX e não bens comuns dos dois inventariados, justificando para tal que nas escrituras públicas da aquisição dos respectivos imóveis constam expressamente que os tais bens foram adquiridos pela XXX como bens próprios.
  Posteriormente, foram juntos pela cabeça-de-casal, a certidão do registo predial respeitantes as fracções autónomas supra referidas, na qual passa a constar o na alínea de facto: aquisição, como bem próprio.
  Notificado o requerimento da cabeça-de-casal aos restantes interessados, vêm os E, B, C e H oporem-se à correcção da relação de bens, com os fundamentos constantes do requerimento a fls. 471 a 475.
  Conhecendo.
  Os inventariados casaram segundo os usos e costumes chineses em Macau em 1942.
  Na data de celebração do casamento, vigorava em Macau o Código Civil de 1 de Julho de 1867.
  Por Decreto promulgado em 17 de Junho de 1909. Porém, ao casamento celebrado entre os cidadãos da nacionalidade chinesa e segundo os usos e costumes chineses são aplicáveis o regime previsto no Código dos Usos e Costumes Chinês.
  Preceitua-se o artº 3º do referido Código relativo ao regime dos bens do casal:
  “O marido pode, sem outorga da mulher, dispor dos bens próprios e estar em juízo, salvo estipulação antenupcial em contrário.
  §1º - São bens comuns do casal os bens imóveis dotais, destes o marido só pode dispôr com outorga da mulher.
  §2º - São bens próprios da mulher os bens denominados Tai Ki, as jóias e vestuários dados pelo pai em dote do casamento, e deles pode ela dispor livremente.
  §3º - Todos os mais bens são considerados próprios do marido.
  §4º - Entendem-se por Tai Ki, os bens que a mulher leva para o casal, dados pelo pais ou adquiridos por ela antes do casamento mas não mencionados no contrato ante-nupcial.”
  A questão de cerne assenta em saber se a estipulação expressa de aquisição como bem próprio da contraente-mulher XXX, com o consentimento do seu marido, constante da escritura pública de 30 de Abril de 1982 que titulou a aquisição das fracções autónomas em causa vale para as considerarem como bens próprios daquela.
  Na óptica dos interessados E, B, C e H, apesar dessa declaração, como segundo as disposições do Código de Usos e Costumes Chineses, são considerados como bens próprios da mulher os bens denominados por “Tai Ki”, os que não sejam assim denominados hão de ser integrados nos bens comuns do casal.
  Afigura-se que essa posição não deixa de ser uma interpretação restritiva da norma em causa.
  Com efeito, essa norma visa-se determinar quais os bens devem ser considerados como bens próprios da mulher.
  Apesar de na escritura pública de compra e venda não ter mencionado expressamente que os imóveis foram adquiridos pela XXX com “Tai Ki” ou “Si Ki” ou fazem parte do “Tai Ki”, mas não é menos verdade que consta aí expressamente que esses bens são adquiridos por ela como bens próprios.
  No fundo, quer bens próprios quer bens comuns são conceitos abstractos que carece da definição por lei, isto é, a determinação dos factos concretos que se encaixam nesses conceitos. Segundo o Código de Usos e Costumes Chines, são considerados bens próprios os bens denominados por “Tai Ki”, os vestuários e as jóias dados pelo pai, etc.
  No caso em apreço, em vez de menção de bens denominados por “Tai Ki”, os contraentes declararam directamente que esses imóveis eram bens próprios da mulher. O termo adoptado talvez não se correspondesse exactamente com os respectivos normativos acima referidos. Mas a vontades dos declarantes não é muito clara no sentido de atribuir a esses bens a natureza de bens próprios da mulher?
  Não é absurdo e ilógico a desconsideração desses bens como bens próprios da mulher somente por não ter usado o termo de “Tai Ki” mas ter dito expressamente se tratarem de bens próprios de um dos cônjuges.
  Ademais, o termo “Tai Ki” ou “Si Ki” utilizado no Código de Usos e Costumes Chineses tem a sua origem na palavra chinesa “體己” ou “私己” ou “私房”, o que tem o sentido específico de poupança ou dinheiro próprio da mulher.1 Portanto, a palavra “Tai Ki” ou “Si Ki” é semelhante à expressão de bens próprios em português.
  Assim sendo, com a expressa menção dos outorgantes na escritura pública de aquisição dos imóveis, não restam quaisquer dúvidas que esses bens devem ser considerados como bens próprios da mulher, ou seja, a inventariada XXX.
  Pelo que, verificada efectivamente a existência do erro manifesto e relevante na descrição dos activos sob as verbas nº 5 a 8, deve proceder a sua rectificação.
  Nem se diga que com o decurso do prazo de reclamação a que se refere o artº 985º do C.P.C, a relação de bens não pode ser alterada por força do caso julgado formal.
  Para já, até ao momento, não há decisão judicial sobre a homologação da relação de bens apresentada pela cabeça-de-casal.
  Mesmo haja sentença homologatória da partilha, se tiver erro de facto na relação ou qualificação dos bens, é sempre permitida a sua emenda ao abrigo do disposto do artº 1024º e 1025º do C.P.C..
  Pelo que não se vê qualquer obstáculo legal na rectificação da relação de bens, nesse momento processual, ao verificar a manifesta discrepância na qualificação desses bens com a indicada nos documentos comprovativos da aquisição dos mesmos imóveis.
  Nestes termos, é admitida a correcção da relação de bens nos termos requeridos pela cabeça-de-casal.
  Em consequência da correcção, notifique a cabeça-de-casal para pronunciar sobre a natureza do direito de crédito inerentes aos imóveis em causa e indicados sob as vernas nº 1 a 3º.
  Custas do incidente em 3 Uc pelos interessados E, B, C e H.
  Notifique.».
  
  Dessa decisão proferida no processo CV2-10-0007-CIV, não foi interposto recurso, tendo a mesma transitado em julgado.
  Por despacho de 27.05.2014 no processo CV2-10-0007-CIV foi julgada deserta a instância (cf. fls. 507 do indicado processo).
  
  Apreciando.
  
  Da excepção do caso julgado.
  Rezam os artº 416 e 417º do CPC, o seguinte:
Artigo 416.º
(Conceitos de litispendência e caso julgado)
  1. As excepções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admita recurso ordinário, há lugar à excepção do caso julgado.
  2. Tanto a excepção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.
  3. É irrelevante a pendência da causa perante jurisdição do exterior de Macau, salvo se outra for a solução estabelecida em convenção internacional aplicável em Macau ou em acordo no domínio da cooperação judiciária.
Artigo 417.º
(Requisitos da litispendência e do caso julgado)
  1. Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
  2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
  3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
  4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico, considerando-se como causa de pedir nas acções reais o facto jurídico de que deriva o direito real e, nas acções constitutivas e de anulação, o facto concreto ou a nulidade específica que a parte invoca para obter o efeito pretendido.
  De acordo com o disposto nos artº 412º, 413º al. j) e 414º todos do CPC o tribunal deve conhecer oficiosamente das excepções dilatórias.
  Mostra-se adequado transcrever o que Paulo Ramos Faria escreve em O Julgamento da Deserção da Instância Declarativa, «1.2. Efeitos da deserção. O efeito extintivo da concreta instância em desenvolvimento – não do direito à ação – permite que se tome a deserção por uma forma de caducidade (art. 298º, nº 2, do CC). De algum modo, por efeito do decurso do tempo, caduca o direito do demandante de manter constituída a concreta instância e de promover os termos do processo em que se desenvolve. O direito de ação não é afectado pela decisão, assim como não o é, directamente, o direito substantivo exercido.
  As decisões interlocutórias da instância julgado extinta, que não tenham por objeto o mérito da causa, não produzem caso julgado material.».
  Do trecho acima transcrito resulta a concordância “a contrário” que as decisões proferidas sobre o mérito da causa no processo julgado deserto produzem caso julgado material.
  Aliás nem de outro modo se poderia entender, bastando para tal equacionar um processo em que em sede de saneador venha a ser proferida decisão quanto a determinados pedidos, prosseguindo apenas para apreciação de outros, vindo após o despacho saneador a ser julgada deserta a instância. Sem dúvida alguma que na situação configurada a decisão proferida quanto aos pedidos de que se conheceu no despacho saneador, tendo transitado em julgado, têm efeito de caso julgado sobre a matéria que incidem.
  O mesmo pode acontecer em sede de inventário.
  João António Lopes Cardoso e Augusto Lopes Cardoso, em Partilhas Judiciais, 5ª Edição, Vol. I, pág. 587 e 588, sustenta que as decisões proferidas nos incidentes suscitados no inventário têm força de caso julgado material quanto ao mérito da matéria apreciada (que não sejam, efectivamente, questões de forma/processuais). Assim será quando no inventário se decide que o bem pertence à herança, ou é bem comum, ou bem próprio, etc., sendo a respectiva decisão vinculativa para os interessados dentro e fora do processo.
  No mesmo sentido se decidiu em Jurisprudência comparada, no Tribunal da Relação de Guimarães de 10.11.2004, Processo 1841/04.1, consultado em www.dgsi.pt, e onde consta que:
«I
  Não faz sentido requerer uma tutela jurisdicional que antes se tinha já requerido e peticionar um efeito já estabelecido na ordem jurídica. Tal ordem de princípios conduz às excepções dilatórias de caso julgado e de litispendência (artº 494º nº1 al.i) C.P.Civ.). O caso julgado pressupõe o ne bis in idem, ou seja, que, sendo idêntico o objecto do litígio, é inadmissível (não faz sentido) uma decisão repetida, em face de uma decisão anterior (Jauernig, Direito Processual Civil, §62). A litispendência visa afastar o risco de decisões contraditórias que aniquilem o êxito processual das partes e prejudiquem o crédito da justiça (Jauernig, op. cit., §40-2) – mantém-se até ao trânsito em julgado da sentença ou até à extinção, por qualquer outro modo, da primeira acção. Ambas as excepções pressupõem, todavia, que sejam idênticos os sujeitos e idênticos os objectos dos processos – artº 498º nº1 C.P.Civ. E é esse o cerne do recurso: saber se, de uma questão incidental suscitada e julgada num processo de inventário divisório pendente, pode resultar seja a excepção de caso julgado (como entendeu a Mmª Juiz “a quo”), seja a excepção de litispendência, para a presente demanda em acção declarativa comum. Ora, não se tendo decidido ainda o inventário por decisão final com trânsito em julgado, encontrando-se o inventário ainda em curso, deve optar-se pela verificação em concreto da excepção de litispendência (artº 497º nº1 C.P.Civ.), excepção de conhecimento oficioso e da qual, como assim, poderá sempre este tribunal conhecer, no presente momento.
  Mais do que ao critério formal do artº 498º C.P.Civ., olhamos à directriz substancial do artº 497º nº2 C.P.Civ. – existe litispendência nos autos a fim de evitar que, aqui, o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior, ainda que, no primeiro processo, tal questão haja sido colocada por excepção ou impugnação (neste sentido, Varela, Bezerra e S. e Nora, Manual, 1ªed., §94). Dir-se-à, no sentido da verificação de caso julgado, que a questão se encontra decidida no inventário, uma vez que transitou em julgado o suscitado incidente de reclamação da relação de bens; todavia, só a sentença homologatória da partilha estabiliza definitivamente os efeitos da mesma partilha quanto aos interessados na herança (como decorria claramente da inserção sistemática do artº 1397º C.P.Civ., hoje revogado – cf. também, neste sentido, Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, II/4ªed./§430). Uma vez que, no momento em que a presente acção foi proposta, o inventário ainda se encontrava pendente, a excepção que se verificará, no caso concreto, será por força a de litispendência, constatação que não assume relevância para o efeito, já decretado em 1ª instância, de absolvição do Réu da instância – artº 493º nº2 C.Civ., isto caso seja de considerar verificada tal excepção. É do que cuidaremos seguidamente.
II
  Desde logo há que afastar a ideia que poderia resultar de que o processo de inventário tem um objecto diverso de uma acção de reivindicação.
É que não prejudica a identidade objectiva o facto de serem de diversa natureza os processos concernentes às duas acções (neste sentido, confrontando o processo declarativo com os processos executivo e de falência, A. dos Reis, Anotado, III, pgs. 102 e 118). De resto, o processo de inventário assume uma natureza mista, tanto graciosa como contenciosa. Se no respectivo decurso surgirem questões entre os interessados, designadamente as que são tipificadas na lei processual, a controvérsia terá de ser dirimida por uma decisão judicial. A natureza contenciosa do processo de inventário surge, as mais das vezes, do facto de os interessados não se encontrarem de acordo a respeito dos bens a partilhar, acusando tal falta logo com a relação de bens apresentada.
Tal natureza encontra-se há muito estabelecida na doutrina - A. dos Reis, Processos Especiais, II/381, e Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, 4ªed., §1º-17. Significativamente, este último Autor: “Os autos ou termos deste processo são tanto ou mais complicados que outros quaisquer; os prazos, até pela sua versatilidade, não acusam diminuição sensível, e dentro dele podem suscitar-se ou resolver-se todas as questões que interessem para a organização da partilha; o actual diploma consente a produção de qualquer espécie de prova, obriga o juiz a proferir decisão sobre as questões suscitadas e só remete os interessados para os meios ordinários quando elas exijam uma larga instrução; a índole sumária ou sumaríssima não se compadece com os novos princípios orientadores do processo de inventário, diversos dos que inspiraram outros diplomas”. Finalmente, Alberto dos Reis escreveu: “há evidentemente questões que podem e devem decidir-se no processo de inventário; quanto a elas, o processo funciona precisamente como uma acção, assume o aspecto de processo contencioso” (Anotado, III, pg.117). Ou seja, para o caso que nos ocupa, a démarche a efectuar consiste, em primeiro, na verificação da identidade tríplice de sujeitos, pedido e causa de pedir. Confronte-se ainda, neste particular, a doutrina dos Ac.R.L. 25/6/92 Col.III/216 (que versou sobre hipótese muito semelhante à dos presentes autos) e, mutatis mutandis, Ac.S.T.J. 6/7/00 Bol.498/173.
III
  É irrefutável a identidade de sujeitos – as partes no inventário divisório para partilha dos bens do extinto casal são as mesmas que agora litigam, Autora e Réu. No tocante à identidade de pedido, a Recorrente entende que uma coisa é peticionar a alteração de uma relação de bens, outra coisa é formular um pedido de reivindicação para um património comum.
  Não tem razão, nesse particular. De acordo com o disposto no artº 498º nº3 C.P.Civ., há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico. E o efeito jurídico pretendido é o do reconhecimento de que os bens integraram a comunhão conjugal formada por Autora e Réu. Não é exacto afirmar que o objecto da presente acção (posterior) não está incluído no objecto da primeira, na medida em que nesta segunda acção se peticiona uma restituição de um bem, enquanto na primeira se analisou tão só a titularidade de um direito (caso em que as acções se encontrariam numa relação de prejudicialidade – Teixeira de Sousa, As Partes, O Objecto e A Prova, §19º-3). O incidente de reclamação contra a relação de bens visa, também ele, a inclusão do bem em falta num património comum, e não meramente a apreciação acerca da titularidade de um direito.».
  Notificadas os interessados nos termos do nº 3 do artº 3º do CPC para se pronunciarem sobre a eventual excepção do caso julgado vieram os Recorrentes fazê-lo alegando em síntese que não há caso julgado porque nunca foi junta a relação de bens corrigida de acordo com o despacho em causa.
  Porém, não lhes assiste razão.
  No final do despacho em causa não há qualquer comando ou ordem no sentido de ser apresentada nova relação de bens.
  A parte dispositiva daquele despacho consiste em:
  «Nestes termos, é admitida a correcção da relação de bens nos termos requeridos pela cabeça-de-casal.
  Em consequência da correcção, notifique a cabeça-de-casal para pronunciar sobre a natureza do direito de crédito inerentes aos imóveis em causa e indicados sob as vernas nº 1 a 3º.».
  O que dali resulta é que é admitida a correcção que havia sido requerida (a fls. 461 daqueles autos), nada mais havendo a fazer e menos ainda, terem os ali interessados vencidos, direito, a mais se pronunciarem sobre a questão, como se refere no artº 9º do requerimento agora apresentado a fls. 477, uma vez que já o haviam feito e a questão dos bens serem próprios ou comuns já estava decidida.
  Por outro lado, e ainda que se entendesse que a dita relação de bens “corrigida” havia que ser apresentada tal mais não seria do que cumprir o comando contido na decisão judicial, nunca ficando, o efeito de caso julgado da mesma condicionado a tal efeito, razão pela qual não colhem os argumentos invocados.
  
  Destarte, face a todo o exposto, a situação dos autos não poderia revestir maior simplicidade.
  No caso em apreço nem sequer estamos numa situação de inventário versus acção declarativa, o que ocorre, é que tendo-se iniciado o inventário para partilha das heranças dos aqui inventariados e com estes interessados, vieram as partes por inércia a deixar que a instância viesse a ser declarada deserta.
  Tempo volvido, vieram novamente requerer a instauração de inventário, repetindo-se a causa quanto aos sujeitos, objecto e pelos vistos quanto às questões em que não estão de acordo.
  Contudo quanto às fracções autónomas “JR/C”, “KR/C”, “LR/C”, “OR/C”, “D1R/C”, “D2R/C” e “G2”, já na decisão proferida no processo CV2-10-0007-CIV houve pronuncia transitada em julgado no sentido de que estes bens são próprios da inventariada XXX (decisão esta que aliás se reproduziu na decisão sob recurso), pelo que, por força do efeito do caso julgado não pode o tribunal ser colocado na situação de apreciar novamente questão já antes decida.
  Assim sendo, pese embora essa decisão seja igual à decisão recorrida, uma vez que esta (a decisão recorrida) se pronuncia sobre questão que já havia sido julgada por decisão transitada em julgado, impõe-se anular a decisão recorrida nesta parte (da titularidade dos bens), havendo que observar o que havia já sido decidido no processo CV2-10-0007-CIV.
  
  É também objecto deste recurso a decisão recorrida na parte relativa ao regime de bens do casamento dos “de cujus”.
  O segmento da decisão recorrida que se pronuncia sobre esta matéria é o seguinte:
  «Em primeira lugar, quanto à impugnação, este Juízo concorda com o ponto de vista dos interessados A (A), B (B) e C (C), sendo que em situação de não haver convenção antenupcial, o regime de bens do casamento dos dois autores da herança não deve ser simplesmente considerado como regime da comunhão de adquiridos, no entanto, o respectivo regime de bens não pode também ser considerado como regime de separação de bens, neste sentido, este Juízo determina rectificar o regime de bens do casamento dos dois autores da herança nas declarações da cabeça-de-casal para o regime de bens supletivo da lei da China.».
  O conteúdo da decisão recorrida não é outro que não seja o de mandar aplicar aos “de cujus” o regime de bens supletivo vigente na lei chinesa ao tempo em que aqueles casaram um com o outro, ou seja, em 1942.
  Pretende o 1º Recorrente que o tribunal determine em substituição que os “de cujus” casaram entre si segundo o regime de bens regulado no artº 3º e 5º do Código dos Usos e Costumes dos Chineses de Macau e pretendem os 2º e 3º Recorrentes que se diga que o regime de bens daqueles é o supletivo da lei Chinesa.
  Ora, face a tudo quanto se diz na decisão recorrida após o momento em que se determina que o regime de bens do “de cujus” é o supletivo da lei da China, somos a entender que a decisão é no sentido de que se aplica ao caso o disposto nos artº 3º e 5º do Código dos Usos e Costumes dos Chins de Macau aprovado por Decreto de 17.06.1909 publicado no Boletim Oficial de Governo da Província de Macau de 31.07.1909.
  No entanto entre o que se diz na decisão recorrida e nas alegações de recurso há alguma imprecisão nos termos usados que levam à confusão e alguma dúvida sobre o sentido da decisão.
  Consta do indicado decreto de 1909 o seguinte:
  «Considerando que o decreto de 18 de Novembro de 1869, tornando extensivas às províncias ultramarinas as disposições do Código Civil de 1 de Julho de 1867, ressalvou na província de Macau (artigo 8., §1.) os usos e costumes dos chins nas causas da competência do procurador dos negócios sínicos;
  Considerando a necessidade de elevar à categoria de direitos e obrigações jurídicas alguns usos e costumes dos chins de Macau no tocante à constituição de famílias e sucessões;
  Attendendo ao que me representou o governador da província de Macau;
  Tendo ouvido a Junta Consultiva do Ultramar e o Conselho de Ministros; e
  Usando da faculdade concedida ao Governo pelo §1. Do artigo 15. Do Primeiro Acto Addicional a Carta Constitucional da Monarchia;
  Hei por bem decretar o seguinte:
  Artigo 1.º São mantidos e ressalvados aos chins de Macau os seus usos e costumes especiaes e privativos revistos e coditicados nas disposições seguintes.
  § único. Não são aplicáveis aos chins catholicos as disposições deste código contrarias as leis que regem o casamento catholico.
  Art. 2.º O casamento celebrado entre contrahentes chins, segundo o rito da sua religião, produz todos os efeitos civis que as leis do reino reconhecem no casamento catholico e no civil.
  Art. 3.º O marido pode, sem outorga da mulher, dispor dos bens próprios e estar em juízo, salvo estipulação antenupcial em contrario.
  § 1.º São bens communs do casal os bens immoveis dotaes, destes o marido só pode dispor com outorga da mulher.
  § 2.º São bens próprios da mulher os bens denominados Tai-Ki, as jóias e vetuarios dados pelo pae em dote do casamento, e deles pode ella dispor livremente.
  § 3.º Todos os mais bens são considerados próprios do marido.
  § 4.º Entendem-se por Tai-Ki os bens que a mulher leva para o casal, dados pelo pae ou adquiridos por ells antes do casamento, mas não mencionados no contrato antenupcial.
  Art. 4.º Ao marido incumbe a administração dos bens do casal.
  § único. Exceptuam-se os bens denominados Tai-Ki, cuja administração pertence a mulher.
  Art. 5.º É licito aos cônjuges, em acto antenupcial, estipular que os bens que a mulher levar para o casal e ainda os que por qualquer titulo venha a adquirir na constancia do matrimonio sejam administrados por ella.».
  Face à redacção do diploma em causa dúvidas não há que no caso em apreço, tendo os “de cujus” casado entre si segundo os usos e costumes chineses em 1942, o regime de bens que se lhes aplicava ao tempo do casamento é o que resulta daquele Decreto de 17.06.1909.
  Sem prejuízo de que o que ali consta quanto ao regime de bens poder ser igual ao regime de bens aplicável ao tempo na então China2 (ainda imperial), o que nesta sede não cabe de cuidar, o certo é que, o Decreto que institui o chamado Código de Usos e Costumes dos Chins de Macau não remete para qualquer outra legislação nem tão pouco para o regime supletivo da China.
  Tão pouco fala de algum regime de separação de bens.
  Institui normas que podem ser iguais ou semelhantes àqueles regimes, mas não remetendo para eles nem lhes dando nome e tendo normas próprias a única forma correcta de o designar será o regime de bens de casamento regulado no Código de Usos e Costumes dos Chins de Macau aprovado por Decreto de 17.06.1909 publicado no BO de 31.07.1909.
  Quanto às especificidades do regime são as que daquele diploma legal – transcrito supra nesta parte – resultam, sendo bens próprios do cônjuge mulher, bens próprios do cônjuge marido e bens comuns os ali indicados3.
  
  Contudo, posteriormente, em 24 de Julho de 1948 pelo Decreto nº 36987 vêm a ser alteradas as regras aplicáveis aos casamentos celebrados entre os Chineses naturais de Macau que não fossem portugueses de nacionalidade.
  Dos elementos a fls. 143 e 155 resulta que os “de cujus” tinham nacionalidade Chinesa, pelo que lhes era aplicável o artº 2º do mencionado Decreto o qual determinava que «os chineses naturais de Macau que não forem portugueses de nacionalidade, e bem assim os indivíduos de nacionalidade chinesa, ficam sujeitos às leis civis chinesas em tudo o que se refere a direitos de família e sucessórios».
  Atente-se que no preâmbulo do diploma se justifica a alteração legislativa por na China ter passado a vigorar a igualdade de tratamento entre homens e mulheres.
  O artº 3º do indicado Decreto é inócuo para a questão que nos ocupa, uma vez que ressalva apenas que produzem efeitos civis, isto é, que são válidos os casamentos celebrados entre chineses de acordo com as formalidades próprias da sua religião, leia-se independentemente da nacionalidade que tenham. Ou seja, de nacionalidade portuguesa, chinesa ou outra são válidos os casamentos de acordo com os usos e costumes chineses.
  Os artigos 4º e 5º do indicado diploma podem já ter interesse para a decisão do caso em apreço, uma vez que o artº 4º ressalva as situações criadas ao abrigo do Código de Usos e Costumes Chineses – onde a situação dos autos não se enquadra porque a aquisição dos bens aqui em causa é posterior – e o artº 5º estabelece que por acordo de todos os beneficiários vivos os bens que hajam sido separados para sacrifício da família são alienáveis, o que pressupõe, que havendo acordo dos cônjuges – como foi o caso dos autos na aquisição dos bens que se concluiu serem próprios do cônjuge mulher -, nada obsta que se alterem as regras e oi destino dos bens que antes resultava do regime fixado.
  Destarte, contrariamente ao que os Recorrentes sustentam nas suas alegações o que resulta desde diploma não é que o regime do Código de Usos e Costumes Chineses se perpetuou, bem antes pelo contrário, uma vez que a partir desta manda aplicar aos chineses naturais de Macau que não tenham nacionalidade portuguesa o direito de família e sucessório da China Continental por força da igualdade de direitos entre homens e mulheres, situação que o Código de Usos e Costumes de modo algum salvaguardava e que os Recorrentes querem perpetuar (a desigualdade).
  Mas as alterações não se ficaram por aqui.
  No Diário do Governo (de Portugal) de 04.09.1967 vem a ser publicada a Portaria nº 22869 a qual torna extensível a Macau o Código Civil aprovado pelo Decreto-Lei nº 47344 de 25.11.1966.
  Os artigos 11º a 15º da indicada Portaria estabelecem regras quanto às normas que se aplicam aos casamentos celebrados até 31.12.1967.
  Nomeadamente do artº 12º da indicada Portaria resulta aplicarem-se aos casamentos celebrados até 31.12.1967, no que se enquadra o caso do casamento dos “de cujus”, o disposto nos artº 1671º a 1697º, atente-se na redacção original do Código e posteriormente com as alterações que vieram a ser introduzidas pelo Decreto-Lei 496/77 de 25.11, das quais desde logo resulta ao longo do tempo alterações ao regime de Administração dos bens do casal, alienação de bens, regime de dívidas dos cônjuges, alienação de bens, regime das doações entre casados, etc., sendo que as normas referentes ao regime de bens resultantes do Código de 1966 são aplicáveis na medida em que forem interpretativas do direito vigente.
  De realçar que as normas quanto à administração de bens, disposição e possibilidade de aquisição de bens passam a aplicar-se às situações existentes por estarem em causa direitos fundamentais tais como o da igualdade dos cônjuges consagrado no Decreto-Lei 496/77.
  Logo a partir da entrada em vigor em Macau do Código Civil de 1966, por força do artº 13º da citada Portaria nº 22869, estando o regime de bens resultante do Código dos Usos e Costumes dos Chins de Macau mais próximo do regime da separação de bens e do Dotal, é à luz destes regimes de bens que deve ser interpretado em caso de dúvida.
  Nomeadamente, e em contrário do que se defende, depois da publicação do Decreto-Lei 496/77 nada obstando que cada um dos cônjuges – que haja casado segundo o regime do indicado Código dos Usos e Costumes dos Chins de Macau – venha a adquirir bens como bens próprios, uma vez que tal é possível em qualquer um dos regimes de bens consagrados no Código, aplicando-se às situações vigentes nos termos do indicado artº 13º da Portaria nº 22869.
  Destarte, sendo certo que os “de cujus” se casaram segundo o regime de bens consagrado no Código de Usos e Costumes dos Chins de Macau, também, não deixa de estar esse regime de bens sujeitos às normas aplicáveis aos regimes de bens decorrente do Código Civil de 1966 e suas posteriores alterações por força do Decreto-Lei 496/77 na medida em que for interpretativo do direito vigente (leia-se dos regimes de bens pré-existentes) tendo em consideração direitos fundamentais, tais como o da igualdade dos cônjuges.
  Aqui chegados, e uma vez que a decisão recorrida não é clara quanto ao regime de bens aplicável aos “de cujus”, entendemos ser de conceder provimento ao recurso nesta parte, no sentido de fixar que o regime de bens do casamento celebrado pelos Autores da herança entre si é o regime que resulta do Código de Usos e Costumes dos Chins de Macau aprovado pelo decreto de 17.06.1909, sem prejuízo do que resultar das alterações e interpretações resultantes do direito aplicável posteriormente.
  Quanto a custas o que resulta é que ambas as partes, entendendo-se como tal Recorrentes e Recorrido, obtêm vencimento embora por razões de direito diversas das invocadas, pelo que, entendemos ser de equidade que as custas sejam suportadas em partes iguais, cabendo metade aos Recorrentes e metade ao Recorrido.
  
III. DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, concedendo-se provimento ao recurso, embora por fundamentos de direito diferentes dos invocados:
- Revoga-se a decisão recorrida no que concerne à titularidade das fracções autónomas “JR/C”, “KR/C”, “LR/C”, “OR/C”, “D1R/C”, “D2R/C” e “G2” por violação do caso de julgado da decisão proferida no processo CV2-10-0007-CIV a qual já definiu a situação;
- Revoga-se a decisão recorrida no que concerne ao regime de bens do casamento celebrado pelos Autores da herança determinando que estes casaram entre si segundo o regime de bens que resulta do Código de Usos e Costumes dos Chins de Macau aprovado pelo Decreto de 17.06.1909, publicado no Boletim Oficial do Governo da Província de Macau de 31 de Julho de 1909, sem prejuízo do que resultar das alterações e interpretações resultantes do direito aplicável posteriormente.

Custas em partes iguais, cabendo metade aos Recorrentes e metade ao Recorrido.

Registe e Notifique.

RAEM, 17 de Setembro de 2020.

Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
1 Ver Dicionário “辭海”, editora 中華書局pág.987
2 A então República da China só foi criada em 1 de Janeiro de 1912 em Nanjing, tendo existido até 1949, ano que passa a chamar-se República Popular da China.
3 Atenção que isto em nada afecta a decisão tomada no processo que correu termos no TJB sob o nº CV2- 10-0007-CIV quanto às fracções “JR/C”, “KR/C”, “LR/C”, “OR/C”, “D1R/C”, “D2R/C” e “G2” onde já está decidido por decisão transitada em julgado que são bens próprios do cônjuge mulher.
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155/2020 CÍVEL 1