Processo nº 728/2020
Data do Acórdão: 15OUT2020
Assuntos:
Falência
Indeferimento liminar
Despacho de aperfeiçoamento
Oneração de bens integrados na massa falida
Aplicação analógica
Argumento a maiori ad minus
SUMÁRIO
O cumprimento de uma promessa de constituição da hipoteca sobre bens integrados na massa falida não é situação análoga à do cumprimento do contrato de compra e venda, directamente contemplada no artº 1109º/3 do CPC, nem representa um minus dessa última situação. Portanto, o normativo desse artº 1109º/3 do CPC não se aplica ao cumprimento de uma promessa de constituição da hipoteca sobre bens integrados na massa falida, quer pela analogia quer com a interpretação enunciativa baseada no argumento a maiori ad minus.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 728/2020
Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I
No âmbito dos autos da acção ordinária, registada sob o nº CV1-19-0002-CFI-DQ, do 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, foi a acção liminarmente indeferida pelo seguinte despacho:
O A. pede a execução específica de um contrato de promessa de hipoteca e subsidiariamente o reembolso ao A. do montante de HKD$26.000.000,00 em que a insolvente é devedora.
O efeito da execução específica de um contrato de promessa consiste em obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso se não oponha a natureza da obrigação assumida (cfr. o disposto do n.° 1 do artigo 820.º do CCM).
Nos presentes autos, a parte contrária foi declarada insolvente (cfr. sentença nos autos principais de insolvência).
Nos termos do artigo 1095.º n.º 1 ex vi artigo 1187.º, todos do CPCM, a declaração da insolvência produz a inibição da insolvente para administrar e dispor dos seus bens presentes ou futuros os quais passam a integrar à massa falida.
Os bens que o A. pretende fazer valer a execução específica do contrato de promessa de hipoteca encontram-se integrados na massa falida.
Como se vê, uma vez declarada insolvente, à insolvente lhe é inibido administrar e dispor dos seus bens, por outro lado, os referidos bens já integraram à massa falida, evidentemente a pretensão do A. não pode proceder.
Quanto ao pedido subsidiário, também não é a presente acção o meio adequado para a sua efectivação.
Se o A. afirme que é credor da insolvente, deve lançar mão ao instituto de reclamação de créditos estipulado no n.º 1 do artigo 1140.º do CPC.
Nestes termos, indefere-se liminarmente o pedido do A. nos termos do artigo 394.º n.º 1 al d) do CPC.
Custas pelo A.
Notifique.
Não se conformando com o decidido, veio o Autor recorrer do mesmo para este Tribunal de Segunda Instância, concluindo e pedindo:
a) O Tribunal a quo indeferiu liminarmente os pedidos argumentando que a declaração de insolvência da R. produz a inibição da insolvente para administrar e dispor dos seus bens presentes ou futuros os quais passam a integrar a massa falida e que os bens sobre os quais o A. pretende fazer valer a execução específica do contrato-promessa de hipoteca encontram-se integrados na massa falida.
b) Tais argumentos são manifestamente insuficientes para o indeferimento liminar da petição inicial com fundamento no disposto na alínea d) do n.º 1 do art.º 394.º do CPC, pois não é evidente que a pretensão do A. não possa proceder.
Antes pelo contrário,
c) Nos termos do art.º 1109.º, n.º 3, do CPC no que concerne ao contrato-promessa de compra e venda cabe ao administrador da falência optar pelo cumprimento ou pela resolução dele, ficando salvo ao promitente comprador o direito a reclamar da massa falida a indemnização pelos danos sofridos.
d) Assim, a circunstância dos imóveis objecto do pedido de execução específica da promessa de hipoteca integrarem a massa falida não é impedimento da concretização do negócio prometido no contexto do processo falimentar, tal como ele foi delineado pelo legislador.
e) O administrador da falência assume a representação do falido para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessam à falência - art.º 1095.º, n.º 3, do CPC.
f) Este preceito legal tem a mesma redacção do art.º 81.º, n.º 4, do CIRE (Código de Insolvência e Recuperação de Empresas).
g) No contexto deste dipositivo do CIRE, a doutrina tem entendido que os negócios prévios à declaração de falência/insolvência devem ser respeitados pelo administrador da falência.
h) Da atribuição de poderes de representação do falido ao administrador da falência resulta a possibilidade da contraparte exigir à massa falida o cumprimento das suas obrigações.
i) Aquilo que no caso concreto se poderia admitir ao Tribunal de 1.ª instância era um despacho de aperfeiçoamento da petição inicial, no sentido de que a falida fosse representada nos autos pelo administrador da falência.
j) Sendo que no caso concreto nada impedia o Tribunal a quo de ordenar a citação o administrador da falência para contestar a acção ao abrigo do princípio da economia processual.
k) Pelos fundamentos expostos, também o pedido subsidiário era processualmente viável, por via da aplicação analógica da segunda parte do n.º 3 do art.º 1109.º do CPC à promessa de hipoteca, pois configura um pedido indemnizatório pelos danos sofridos com a eventual resolução do contrato-promessa.
1) Acresce que, no caso concreto a promessa de hipoteca não se encerra em nenhuma das situações previstas no art.º 1104.º do CPC.
m) Na decisão recorrida foi feita uma errada aplicação do disposto no art.º 394.º, n.º 1, alínea d), do CPC.
n) O Tribunal a quo fez, ainda, uma errada interpretação e aplicação das normas do processo falimentar ao caso concreto.
o) A acção deveria ter sido considerada viável aplicando-se o disposto no art.º 1095.º, n.º 3, do CPC e, por analogia, a previsão da segunda parte do n.º 3 do art.º 1109.º do CPC.
p) Por outro lado, ao não proferir despacho de aperfeiçoamento no sentido do suprimento da falta de capacidade judiciária da falida, ao abrigo do art.º 413.º, alínea c), e do art.º 427.º, n.º 1, alínea a), ambos do CPC, o que deveria ter feito ao abrigo do poder de direcção previsto no art.º 6.º, n.º 1, do CPC., o Tribunal a quo omitiu um poder/dever, o que constitui nulidade processual nos termos do art.º 147.º, n.º 1 do CPC, por preterição de acto vinculado.
Termos em que a decisão de fls. 66 a 66v. deverá ser revogada e substituída por outra que, cumprindo os preceitos legais aplicáveis, admita a viabilidade da acção e convidando o A. a aperfeiçoar a petição inicial para suprimento da falta de capacidade judiciária da falida, prosseguindo o processo os ulteriores termos.
Justiça!
II
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
Em face das conclusões tecidas na petição do recurso, a única questão que constitui o objecto da nossa apreciação consiste em saber se, em vez de indeferir liminarmente a acção, o Tribunal a quo deve proferir um despacho de aperfeiçoamento convidando o Autor para suprir a ilegitimidade passiva passando a intentar a acção contra o administrador de falência, pois, na sua óptica, face ao disposto no artº 1109º/3 do CPC, se o legislador previu a solução para a eventualidade de acto dispositivo a praticar pelo administrador da falência de coisa propriedade do falido que passou a integrar a massa falida, parece evidente que no caso de oneração de coisa propriedade do falido ……não pode resultar solução de maior gravame para o credor. E na esteira desse raciocínio, deve ser citado para esta acção o administrador da falência, a quem cabe a representação do falido para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à falência nos termos do disposto no artº 1095º/3 do CPC, a fim de este fazer a opção pelo cumprimento da promessa de constituir hipoteca, com a eventual autorização do M. P., nos termos permitidos no artº 1109º/3 do CPC.
A questão nestes termos colocada pode e deve analisada a montante e a jusante.
A montante, há que averiguar se o administrador pode, tal como defende o recorrente, optar pelo cumprimento da promessa de onerar os dois imóveis da ora falida XXX, já integrados na massa falida por efeito da declaração da sua falência, ao abrigo do disposto no invocado artº 1109º/3 do CPC.
E a jusante, em caso afirmativo, se o Tribunal a quo deve convidar o Autor, ora recorrente, para suprir a ilegitimidade passiva da ora falida.
Então vejamos.
Ao que parece, o ora recorrente pretende convencer este Tribunal de recurso de que a promessa de constituir hipoteca, assumida pela falida, pode ser cumprida pelo administrador da falência, ao abrigo do disposto no artº 1109º/3 do CPC, mediante o recurso à aplicação analógica ou a interpretação enunciativa baseada no argumento a maiori ad minus do mesmo normativo.
E na esteira desse entendimento, o administrador da falência deve ser citado para a presente acção da execução específica.
O artº 1109º do CPC encontra-se localizado na subsecção II da secção IV dedicada aos efeitos em relação aos negócios jurídicos do falido, do Capítulo III do Título XII do Livro V do CPC que visa regular os processos especiais.
E tem a seguinte redacção:
Artigo 1109.º
(Compra e venda ainda não cumprida)
1. Na compra e venda em que o falido seja comprador e em que não haja ainda total cumprimento do contrato por ambas as partes à data da declaração da falência, tem o vendedor a faculdade de realizar ou completar a sua prestação, sujeitando-se ao recebimento do preço segundo as forças da massa falida.
2. Se o vendedor não exercer a faculdade prevista no número anterior, mantém-se suspenso o cumprimento do contrato até que o administrador da falência, com a autorização do Ministério Público, declare querer cumpri-lo, mantendo todas as obrigações do comprador, ou resolvê-lo, liberando a massa falida dessas obrigações; o vendedor pode, contudo, fixar um prazo razoável ao administrador da falência para este exercer a sua opção, findo o qual o contrato se considera resolvido.
3. O contrato de compra e venda não se extingue se o vendedor for o falido e a propriedade da coisa se tiver já transmitido à data da declaração da falência; no caso contrário, cabe ao administrador da falência, com a autorização do Ministério Público, optar pelo cumprimento do contrato ou pela resolução dele, ficando salvo ao comprador o direito a reclamar da massa falida a indemnização pelos danos sofridos.
Foquemos apenas a nossa atenção no seu nº 3, invocado pelo ora recorrente, para sustentar a sua tese.
Tal como a própria epígrafe indica, o artº 1109º do CPC visa regular a compra e venda ainda não cumprida.
Pela letra da lei, o contrato-promessa de constituição da hipoteca não deve ser considerado abrangido no âmbito da sua aplicação.
Nos termos do disposto no artº 9º/1 do CC, os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos.
Então vamos averiguar se as situações directamente contempladas pelo artº 1109º/3 do CPC são análogas ou não ao contrato-promessa de constituição da hipoteca.
As situações contempladas no artº 1109º/3 do CPC reportam-se a à compra e venda.
Trata-se de contratos sinalagmáticos ou bilaterais, que impõem obrigações recíprocas a ambas as partes contraentes.
Não obstante a sua natureza real quoad effectum, do contrato de compra e venda resulta os efeitos obrigacionais da entrega da coisa e do pagamento do preço.
Assim, no caso de ser vendedor o falido, a opção pelo cumprimento do contrato pode ser vantajosa e beneficiante da massa falida (imagina-se a venda a um bom preço, e. g. bem superior ao do mercado), cremos, é por isso, que o nosso legislador permite, algo excepcionalmente, a saída de bens já integrados na massa falida com a declaração da falência.
Todavia, o que já não sucede com o eventual cumprimento de uma promessa de constituir hipoteca sobre determinados bens já integrados na massa falida, pois não obstante não implique a diminuição da massa falida, a constituição da hipoteca coloca o beneficiário da promessa em lugar privilegiado em relação aos credores comuns que não beneficiarem da garantia especial.
Não se vendo razões justificativas desse privilégio na satisfação dos seus interesses na futura graduação dos créditos, é de concluir que o cumprimento de uma promessa de constituir hipoteca sobre bens integrados na massa falida não é análogo às situações contempladas no artº 1109º/3 do CPC.
Quanto ao argumento a maiori ad minus, é de rejeitar uma vez que, conforme acabamos de ver supra, o cumprimento do contrato de compra e venda de bens integrados na massa falida e o cumprimento da promessa de constituição de hipoteca sobre o mesmo tipo de bens são qualitativamente diversos e não quantitativamente diversos.
O que de per si já demonstra a impertinência do argumento a maiori ad minus.
Finalmente, no que diz respeito ao indeferimento liminar do pedido subsidiário de condenação da falida a reembolsar ao Autor o montante de débito no valor de HKD$26.000.000,00, é de manter a decisão recorrida, uma vez que constituindo o pretendido reembolso sempre um acto de disposição que implica necessariamente diminuição da massa falida, a tal pretensão é manifestamente improcedente.
Face ao exposto, torna-se uma questão falsa o despacho de aperfeiçoamento, peticionado em sede do presente recurso.
Em conclusão:
O cumprimento de uma promessa de constituição da hipoteca sobre bens integrados na massa falida não é situação análoga à do cumprimento do contrato de compra e venda, directamente contemplada no artº 1109º/3 do CPC, nem representa um minus dessa última situação. Portanto, o normativo desse artº 1109º/3 do CPC não se aplica ao cumprimento de uma promessa de constituição da hipoteca sobre bens integrados na massa falida, quer pela analogia quer com a interpretação enunciativa baseada no argumento a maiori ad minus.
Resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam julgar improcedente o recurso interposto, mantendo na íntegra o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente.
Registe e notifique.
RAEM, 15OUT2020
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
Ac. 728/2020-11