Processo n.º 1049/2019 Data do acórdão: 2020-10-8
Assuntos:
– arbitramento oficioso da indemnização
– recorribilidade da decisão
– art.o 390.o, n.o 2, do Código de Processo Penal
– erro notório na apreciação da prova
S U M Á R I O
1. A decisão que arbitra oficiosamente indemnização no processo penal não deixa de ser uma decisão de natureza materialmente civil – cfr. o art.o 73.o do Código de Processo Penal (CPP).
2. Não ultrapassando a quantia indemnizatória civil arbitrada oficiosamente na sentença condenatória penal do Tribunal Judicial de Base a metade do valor da respectiva alçada em matéria cível, não se pode, independentemente da indagação do demais, admitir o recurso dessa parte civil da decisão, por comando do n.o 2 do art.o 390.o do CPP.
3. Há erro notório na apreciação da prova aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 1049/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): B
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 133 a 143 do Processo Comum Singular n.o CR4-19-0154-PCS do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), ficou o arguido B condenado, como autor material apenas de um crime consumado de ofensa à integridade física por negligência no exercício da condução, p. e p. pelo art.o 142.o, n.o 1, do Código Penal (CP), conjugado com os art.os 93.o, n.o 1, e 94.o, n.o 1, da Lei do Trânsito Rodoviário (LTR), na pena de 150 dias de multa, à quantia diária de MOP250,00, no total, pois, de MOP37.500,00 (trinta e sete mil e quinhentas patacas) de multa (multa esta convertível em cem dias de prisão, no caso de não ser paga nem substituída por trabalho), com inibição de condução por seis meses, para além de ficar condenado no pagamento, a favor do ofendido XXXX (XXXX), de MOP3.660,00 (três mil e seiscentas e sessenta patacas) de indemnização cível (sendo MOP3.600,00 dessa quantia destinada à reparação dos danos morais, e as restantes MOP60,00 destinadas para indemnização das despesas médicas), arbitrada oficiosamente pela M.ma Juíza autora da mesma sentença, com juros legais.
Inconformado, veio o arguido recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), tendo alegado, na sua essência, e rogado o seguinte, na sua motivação apresentada a fls. 188 a 223 dos presentes autos correspondentes:
– a decisão condenatória recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP), porquanto os elementos probatórios dos autos não permitem concluir que a alegada contusão no joelho do ofendido se tenha devido ao embate na viatura conduzida na altura pelo próprio arguido, nem que esse embate tenha sido provocado pela mesma viatura, até porque nomeadamente das imagens de videovigilância constantes de fls. 51 e 52 dos autos, não resulta nítido que tenha havido sequer toque entre essa viatura e o joelho do ofendido; resulta sim que o ofendido, aproveitando-se da velocidade reduzida a que circulava essa viatura, terá, propositadamente, deixando-se ficar no ângulo de passagem da lateral esquerda da traseira do veículo, mesmo levantado a perna esquerda no sentido de se fazer embater pela lateral esquerda da traseira da viatura;
– e afinal, que parte da viatura atingiu o corpo do ofendido? Que parte do corpo do ofendido foi atingido pela viatura do arguido? O ofendido foi efectivamente atingido pela viatura do arguido? O arguido afinal ia devagar ou depressa?
– e fosse como fosse, não deixaria de haver excesso na medida da pena da multa feita pelo Tribunal sentenciador (tanto no número de dias da pena de multa, como no montante diário da multa), e também na medida da duração da pena acessória de inibição de condução;
– por outro lado, dos autos não resultou provado se a conduta do arguido foi susceptível de provocar ao ofendido quaisquer danos não patrimoniais, nem tão pouco que a esses danos fosse susceptível de se atribuir o valor de MOP3.600,00;
– devendo, pois, o arguido ser absolvido do crime por que vinha condenado, ou ser, pelo menos, feita a redução das penas, e revogada também a decisão de arbitramento oficioso da indemnização.
Ao recurso, respondeu a Digna Representante do Ministério Público a fl. 226 a 234v dos presentes autos, preconizando a improcedência do recurso.
Subidos os autos, a Digna Procuradora-Adjunta emitiu parecer a fls. 244 a 246 dos autos, opinando pela manutenção do julgado.
Por despacho do ora relator de fl. 247, foi notificado o arguido da eventualidade de o seu recurso na parte referente à impugnação da decisão judicial de arbitramento oficioso da indemnização não ser conhecido nos termos do art.o 390.o do CPP, veio responder o arguido a fls. 250 a 252, pugnando pelo conhecimento também desta parte do recurso.
Em sede de conclusão do exame preliminar dos autos a fl. 253, decidiu o relator relegar a decisão daquela questão para final.
Corridos os vistos pelos dois M.mos Juízes-Adjuntos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que a sentença ora recorrida pelo arguido se encontrou proferida a fls. 133 a 143, cujo teor integral (incluindo a respectiva fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui integralmente reproduzido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas ao mesmo tempo nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, decidindo.
Desde já, há que decidir da questão, suscitada pelo relator aquando do exame preliminar dos autos, de eventual irrecorribilidade da decisão de arbitramento oficioso da indemnização tomada na sentença.
Nota-se que do disposto no art.o 73.o do CPP, fica claro que a decisão que arbitra oficiosamente indemnização no processo penal não deixa de ser uma decisão de natureza materialmente civil.
No caso, o arguido ficou condenado a pagar MOP3.660,00 ao ofendido dos autos, a título de indemnização dos danos patrimoniais (despesas médicas no valor de MOP60,00) e morais deste. Ora, como o valor total indemnizatório em causa nem ultrapassa a metade da alçada do TJB em matéria cível prevista no art.o 18.o, n.o 1, da Lei de Bases da Organização Judiciária da Região Administrativa Especial de Macau, não se pode, independentemente da indagação do demais por desnecessária, admitir efectivamente o recurso dessa decisão judicial de arbitramento oficioso da indemnização (nomeadamente na parte sobre a reparação dos danos morais do ofendido), por comando do n.o 2 do art.o 390.o do CPP.
Agora do recurso do arguido na sua parte penal:
O arguido começou por apontar à decisão condenatória penal recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova na parte circunscrita ao “embate” da viatura no ofendido.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, mesmo que não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do CPP manda atender também aos elementos constantes dos autos, para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
No caso dos autos, após vistos em global e de modo crítico os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória do aresto recorrido no tocante à problemática do embate ou não da viatura no corpo do ofendido, opina o presente Tribunal de recurso que o resultado de julgamento de factos a este respeito a que chegou o Tribunal recorrido não chegou a violar quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal das provas, ou quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou quaisquer leges artis, pelo que não pode ter havido qualquer erro notório, por parte desse Tribunal, na apreciação da prova, ou problema de insuficiência da prova, no tangente aos factos dados por assentes na sentença impugnada sobre o embate da viatura então conduzida pelo arguido no corpo do ofendido.
Aliás, a M.ma Juíza a quo já explicou em detalhes (nos últimos dois parágrafos da página 10 do texto da sua sentença e nos dois primeiros parágrafos da página 11 do mesmo texto, a fls. 137v a 138 dos autos) e com congruência lógica o processo de formação da sua livre convicção sobre os factos relativos a esse embate, explicação dada essa que já rebateu materialmente a versão fáctica defendida na motivação do recurso.
É, pois, de decidir da remanescente questão da medida das penas:
O arguido ficou condenado como autor material de um crime consumado de ofensa (simples) à integridade física por negligência no exercício da condução, p. e p. pelo art.o 142.o, n.o 1, do CP, conjugado com os art.os 93.o, n.o 1, e 94.o, n.o 1, da LTR, na pena de 150 dias de multa, à quantia diária de MOP250,00, no total, pois, de MOP37.500,00, e na inibição de condução por seis meses.
Nos termos do art.o 93.o, n.o 1, da LTR, os crimes por negligência cometidos no exercício da condução são punidos com as penas cominadas na lei geral agravadas, no seu limite mínimo, com um terço da sua duração máxima, se sanção mais grave não for aplicável por força de outra disposição legal.
Por isso, a moldura inicial (de 10 a 240 dias de multa – cfr. também os art.os 45.o, n.o 1, e 142.o, n.o 1, do CP) do crime de ofensa simples à integridade física por negligência do arguido, por o próprio crime ter sido cometido no exercício da condução, passa a ser de 90 a 240 dias de multa.
Vistas as circunstâncias fácticas já apuradas em primeira instância a respeito desse crime, com pertinência à medida concreta da pena aos padrões dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, a pena de 150 dias de multa aplicada na sentença recorrida já não admite mais margem para a pretendida redução.
E quanto à quantia diária da multa (entre MOP50,00 e MOP10.000,00 – art.o 45.o, n.o 2, do CP), é de louvar o juízo de valor já emitido pela M.ma Juíza, atendendo a que o arguido tem poupança (cfr. a circunstância fáctica referida na 11.a linha da página 5 do texto da sentença, a fl. 135) e a que o valor diário de MOP250,00 é também perto do mínimo legal de MOP50,00.
Por fim, no concernente à duração da pena de inibição de condução, o art.o 94.o, alínea 1), da LTR dispõe que sem prejuízo de disposição legal em contrário, é punido com inibição de condução pelo período de 2 meses a 3 anos, consoante a gravidade do crime, quem for condenado por qualquer crime cometido no exercício da condução.
Assim sendo, ante o circunstancialismo fáctico provado relativo ao crime de ofensa simples à integridade física por negligência em causa, já não se afigura plausível a redução da duração da pena de seis meses de inibição já achada na sentença.
Naufraga, pois, a parte penal do recurso do arguido, enquanto não é admissível o recurso da decisão de arbitramento oficioso da indemnização.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar improcedente a parte penal do recurso do arguido, e não admitir o recurso por ele interposto da decisão de arbitramento oficioso da indemnização tomada na sentença recorrida.
Custas da parte penal do recurso pelo arguido, com quatro UC de taxa de justiça. E custas da parte civil do recurso, também a cargo dele, com uma UC de taxa de justiça.
Comunique a presente decisão ao ofendido.
Macau, 8 de Outubro de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunta)
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